Ministra Cármen Lúcia vota para proibir Ministério da Justiça de elaborar dossiê contra antifascistas
Segundo a relatora, o uso da máquina estatal para a colheita de informações de servidores com postura política contrária a qualquer governo caracteriza, pelo menos em tese, desvio de finalidade
A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 722, votou nesta quarta-feira (19) pelo deferimento de medida cautelar para suspender qualquer ato do Ministério da Justiça e Segurança Pública que tenha por objetivo produzir ou compartilhar informações sobre a vida pessoal, as escolhas pessoais e políticas, as práticas cívicas de cidadãos e de servidores públicos federais, estaduais ou municipais identificados como integrantes do movimento político antifascista, professores universitários e quaisquer outros que exerçam seus direitos políticos de se expressar, se reunir e se associar, dentro dos limites da legalidade. “O uso ou abuso da máquina estatal, mais ainda para a colheita de informações de servidores com postura política contrária a qualquer governo, caracteriza, sim, desvio de finalidade, pelo menos em tese”, afirmou a ministra.
A relatora foi a única a votar na sessão de hoje. Antes de seu voto, se manifestaram representantes da Rede Sustentabilidade, autora da ação, da Conectas Direitos Humanos, admitida como terceira interessada (amicus curiae), da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da União. O julgamento da ADPF 722 deve prosseguir na sessão de amanhã (20), com os votos dos demais ministros.
Investigação sigilosa
A Rede questiona uma investigação sigilosa que teria sido aberta pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública contra um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança e três professores universitários identificados como integrantes do “movimento antifascismo”. A ação foi ajuizada a partir de notícia veiculada na imprensa de que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça teria produzido um dossiê com nomes e, em alguns casos, fotografias e endereços de redes sociais das pessoas monitoradas, todos críticos do governo do presidente Jair Bolsonaro, e distribuído um relatório às administrações públicas federal e estaduais.
Legítimo direito de manifestação
De acordo com a ministra, não pode ser considerada legítima a atuação de órgãos estatais que, sob o pretexto de cuidar da atividade de inteligência, investiguem, sem observar o devido processo legal, cidadãos que exercem o legítimo direito de manifestação. Ela salientou que a jurisprudência do STF é clara no sentido de que a livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, com o objetivo de proteger, além de pensamentos e ideias, opiniões, crenças, formação de juízos de valor e críticas a agentes públicos, de forma a garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva.
Limites constitucionais
Cármen Lúcia observou que a existência dos serviços de inteligência do Estado para a segurança pública e para a segurança nacional é necessária, mas sua atividade deve ser desempenhada dentro dos estreitos limites constitucionais e legais. Ela considera que, caso isso não ocorra, em vez de defender o estado, a sociedade e a própria democracia podem ser comprometidas.
“Catacumbas”
Segundo a relatora, a elaboração de dossiês, pastas, relatórios e informes sobre a vida pessoal de brasileiros e suas escolhas pessoais não é novidade na vida do país. Assim, é justificável e razoável que cidadãos se sintam ameaçados pelo eventual retorno dessa prática. “A República não admite catacumbas, a democracia não se compadece com segredos, a não ser para se lembrar de situações que precisamos ter como superadas”, afirmou. “Direitos fundamentais não são concessões estatais, são garantias aos seres humanos conquistadas antes e para além do Estado, e seu objetivo é possibilitar o sossego pessoal e a dignidade individual”.