Negação do racismo no Judiciário é “cinismo desesperado por privilégios”, diz jurista
Seminário da ABJD discutiu a tradição autoritária da Justiça, o racismo institucional e a operação Lava Jato
“É um cinismo desesperado pela manutenção de privilégios, de um lado; do outro lado, vejo um grupo de pessoas que talvez só consiga enxergar o mundo com a sua própria lente de privilégios. Não conseguem enxergar a forma como a raça é um fator determinante de desigualdades”, declarou Livia Maria Santana e Sant’Anna Vaz, promotora de justiça do Estado da Bahia, sobre o negacionismo do racismo entre as instituições judiciárias.
Representantes de várias instituições debateram nesta sexta-feira (4) quais são e como lidar com os descompassos estruturais do sistema judiciário brasileiro, durante um seminário online promovido pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Entre os temas abordados, discutiu-se a tradição autoritária da Justiça, o racismo institucional, os erros cometidos em trabalhos como a Operação Lava Jato e a má formação acadêmica de profissionais.
Segundo Livia, a formação do sistema de justiça já é propícia à manutenção das desigualdades. “Esse sistema de justiça, que é branco, masculino, heterossexual e cristão tem participado desse negacionismo do racismo, quando deveria promover igualdade racial em nosso país”.
Citando a ativista Angela Davis, a promotora encerrou: “Democracia não é só inclusão, mas é só sobre os termos da inclusão. Então temos que pensar em nossos termos. Quem estamos incluindo e como estamos incluindo?”.
A primeira fala foi feita pela juíza federal Claudia Maria Dadico, de Florianópolis. Ela abordou, essencialmente, como a democracia no Brasil, entendida classicamente como o governo do povo, ainda não se consolidou e como o Poder Judiciário ainda reproduz autoritarismo.
“No Brasil há uma tradição autoritária, marcada pelo colonialismo e a escravidão, com a qual nem mesmo a Constituição da República de 88, promulgada após a ditadura militar de 1974, foi capaz de romper”, disse.
Ela citou o jurista Rubens Casara para explicar como o autoritarismo ainda é vigente principalmente entre juízes. “Intérpretes autoritários, com base em seus preconceitos, suas visões de mundo e os valores que carregam, produzem ações e normas autoritárias, mesmo diante de textos tendencialmente democráticos”.
Para a juíza, a Justiça opera baseada em ódio, um elemento estrutural do Estado moderno. “[O ódio] se expressa na realidade brasileira por uma violência, que não apenas não é evitada pelo sistema de justiça, mas me atrevo a dizer que ela é desejada, é querida, é cultivada, é direcionada à exclusão e, em alguns casos, ao extermínio de contingentes populacionais não ajustados aos padrões de normalização dominante”.
O defensor público Rafson Saraiva Ximenes, também da Bahia, relembrou os abusos cometidos por procuradores e juízes, especialmente o ex-juiz Sergio Moro, durante a operação Lava Jato. Para ele, as violações foram legitimadas por um sistema moralista.
“O cerne da operação Lava Jato e do impeachment é esse: é entender que a ilegalidade cometida pelo procurador da República é aceitável porque ele representa o bem e a moral, pode passar por cima de tudo e ser legitimado por tudo o que ele faz”, ironizou.
Ximenes aponta como exemplo o fato dos procuradores da Lava Jato se considerarem fundadores de uma nova República.
“Os discursos mais contundentes pelas pessoas que atuavam na operação Lava Jato ou que as apoiavam de perto era dizer que elas estavam fundando a República, que, depois de mais de um século, finalmente a República tinha chegado”, aponta.
O jurista compara ainda a atuação dos procuradores da Lava Jato com os militares envolvidos na fundação da República brasileira por se acharem “moralmente superiores”.
“É curioso que a República foi fundada no Brasil em torno dos militares, que também se achavam moralmente superiores, também se achavam mais honestos do que os outros, também achavam que as leis não se aplicavam exatamente a eles. E a fundação da ‘nova República’, nesse discurso, tem o mesmo fundamento, as mesmas bases e parte do mesmo equívoco do que é do que não é, essencialmente, democracia”.
Por fim, o advogado Eduardo Corrêa, professor de Direito Civil e Agrário, destacou os problemas de formação dos estudantes de Direito. “60 mil novos formandos [uma estimativa por ano no país] que fazem parte, incipiente ainda, do sistema de justiça, são marcados por uma formação acadêmica notadamente conservadora, sempre foi. Muitos desses novos profissionais não têm noção de que estão assumindo posições conservadoras”.