‘Nem a ditadura militar criou mecanismos tão rigorosos de controle dos professores’

A Frente Gaúcha Escola Sem Mordaça e o Centro dos Professores do RS (Cpers) promoveram na manhã de segunda-feira (12) um debate sobre os projetos de lei do movimento “Escola Sem Partido” em tramitação no Congresso Nacional e em diversos Estados e municípios, como no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre. Palestrante do evento, Fernando Penna, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e criador do movimento “Professores Contra a Escola Sem Partido”, afirmou que, se aprovados, esses projetos resultarão no “empobrecimento da qualidade de ensino” e criarão um sistema de coação de professores que não existia nem na ditadura militar.

Para Penna, o Escola Sem Partido é um movimento que defende que professores não são educadores e, portanto, não podem discutir valores e a realidade dos alunos em sala de aula. “Se ele for implementado, as consequências para a escola enquanto espaço para formação da cidadania, enquanto espaço de debate, está duramente ameaçado”, afirma.

Penna pondera que um dos artigos do Projeto de Lei nacional da Escola Sem Partido veda a realização de qualquer atividade que possa ir contra os valores e crenças morais e religiosas das famílias. “Isso impediria a escola de discutir uma ampla gama de assuntos que são importantíssimos para uma formação, para a cidadania”, disse, salientando, por exemplo, que pais poderiam se sentir ofendidos pelo ensino da cultura afrobrasileira e africana nas escolas, o que passou a ser obrigatório em 2003. “Algumas pessoas veem as religiões afrobrasileiras como algo que não pode ser discutido. Se houver um aparato legal, você vai ter a proibição de discutir outras culturas. Para mim, é gravíssimo”, diz.

O professor salienta que o movimento surgiu em 2004, mas ganhou força em 2014, quando o primeiro projeto de Escola Sem Partido foi apresentado no Rio de Janeiro. “Eu acho que esse avanço do pensamento conservador ajudou bastante a espalhar esse projeto pelo Brasil inteiro”, diz.

Segundo ele, a Escola Sem Partido segue tendências conservadoras internacionais e se baseou em uma iniciativa americana chamada de “No Indocrination” (Não à Doutrinação, na tradução livre), que era um site de denúncias. Por outro lado, pondera que não há nenhum exemplo de outros países de legislação nesse sentido e nem durante a ditadura militar brasileira se investiu em mecanismos legais para coagir o professor a não abordar certos temas em sala de aula. “A gente sabe da repressão e tudo mais, mas nem a própria ditadura pensou em mecanismos tão rigorosos para controlar a atuação do professor. E eu não conheço outras iniciativas internacionais nesse caminho”, afirma.

Penna fez uma palestra sobre as consequências da aprovação de projetos do movimento Escola Sem Partido | Foto: Maia Rubim/Sul21

Penna critica o fato de o movimento criar uma “dicotomia” entre escola com e sem partido para esconder seus reais interesses. “Se você pegar só o projeto sem conhecer a discussão que está por trás dele e a atuação do movimento Escola Sem Partido, você vai ver que eles defendem ali o pluralismo de ideias. Se você vai ver a atuação do movimento, é incompatível com o discurso”, afirma. “Muito gente só vê o nome e acha bom, mas quando vai ler e conhecer a atuação vai ver que é uma roubada”, complementa.

Denuncismo

Um dos maiores problemas apontados no debate foi o fato de que o projeto abre as portas para “a caça às bruxas” a professores por permitir a investigação de condutas supostamente impróprias. Um dos recursos propostos pelo projeto é a criação de um canal de denúncia anônima diretamente entre alunos e secretaria de Educação, que levariam então os casos para o Ministério Público e este ficaria responsável pelas ações legais contra o professor. Para Penna, isso cria um ambiente de “denuncismo” e constrange a atuação dos professores.

“Imagina um professor dando aula temeroso se o que ele vai falar às vezes pode ser mal interpretado por um aluno, que não vai dialogar com ele com relação ao que está achando estranho, mas vai fazer uma denúncia anônima. Se você tem um problema, por que não falar com o professor? A escola já é equipada para lidar com esse tipo de caso quando ele acontece, não é necessário um projeto de lei que cria um canal de denúncia anônima. Só ia aumentar um clima de denuncismo, o professor temendo discutir assuntos importantes para a formação do aluno por medo das repercussões”, afirma.

Por outro lado, o professor também considera impossível, mesmo que fossem aprovados, a aplicação desses projetos na prática. “Quando eles dizem que está vedado em sala de aula a realização de qualquer atividade que possa estar em conflito com as crenças morais e religiosas das famílias, isso é impossível de ser aplicado. Uma sala de aula tem 40, 50 alunos, das mais diferentes crenças e valores, se o professor, ao preparar a sua aula, ficar com medo de não contradizer qualquer uma delas, não vai poder falar absolutamente nada”, avalia.

Fernando Penna é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense | Foto: Maia Rubim/Sul21

Desqualificação do professor

Outro elemento do projeto seria a promoção de um processo de “desqualificação” dos professores. Penna afirma que um dos livros recomendados como bibliografia pelos defensores do movimento é a obra “Professor não é educador” (Armindo Moreira), que, segundo ele, visa promover a dissociação entre o ato de educar, que seria responsabilidade das famílias e da religião, e a instrução técnica, que seria a única responsabilidade do professor.

“O professor só poderia transmitir conhecimento, sem discutir a realidade do aluno. Isso é um empobrecimento absoluto da escola. Eu era professor de história na educação básica, para tornar significativo o ensino do Brasil Império, por exemplo, relacionava com temas atuais. Não poder fazer isso seria um empobrecimento enorme”, afirma.

Ele ainda pondera que esse processo de “desqualificação do professor” pode abrir a porta para a privatização do ensino público no país, seja através da cessão da administração de escolas para Organizações Sociais (OSs), como ocorre em Goiás e é tema de projeto do governo José Ivo Sartori, ou pela substituição gradual da rede pública pela compra de vagas em instituições privadas por meio de vouchers. “Ao desqualificar o professor como alguém que não tem competência, ele cria a necessidade de algo suprir (essa lacuna)”, diz.

Do site Sul21

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