O alvo de José Serra não é a Venezuela e sim o Mercosul
O ministro interino das Relações Exteriores do Brasil, José Serra, protagonizou esta semana mais um episódio comprometedor para a história da chancelaria brasileira ao tentar persuadir o Uruguai a se posicionar contra a Venezuela no Mercosul. Dois dias depois que a denúncia do chanceler uruguaio Rodolfo Nin Novoa foi vazada pela imprensa local, Montevidéu se retratou por meio de uma nota oficial e disse que tudo não passou “de um mal entendido”.
Por Mariana Serafini
O Brasil, junto com o Paraguai e a Argentina tentam isolar a Venezuela no Mercosul, mas o objetivo real do governo Temer é enfraquecer o bloco. José Serra em visita à Argentina com o presidente Mauricio Macri
Conversamos com a professora de Relações Internacionais da PUC-SP, Terra Bodini, especialista em Integração Regional, sobre este impasse entre os dois países e para ela, o alvo do governo interno está longe de ser a Venezuela, é, na verdade próprio o Mercosul. “A gente pode compreender este impasse político de tentar isolar a Venezuela e enfraquecer o Mercosul como algo que é parte de uma estratégia do Brasil. É intencional, é a política que está sendo adotada pelo Brasil para o Mercosul porque isto enfraquece o bloco”.
Para Terra, o impasse criado pelo Brasil e Paraguai – principalmente – com apoio da Argentina para tentar isolar a Venezuela vai paralisar as decisões importantes que o bloco precise tomar daqui pra frente e isto abre caminho para reforçar as críticas de setores mais conservadores ao Mercosul. “Desde que o Serra foi candidato à presidência em 2010 já estava no programa de governo dele que o Mercosul não tinha que ser o que temos hoje, mas sim um bloco comercial. É exatamente isso que a criação deste impasse vai fazer, vai enfraquecer o bloco. Contribui para um tipo de proposta que eles [governo interino que promoveu o golpe] já dizem há muito tempo que é de diminuir o caráter do Mercosul como um projeto de integração e tê-lo como um bloco comercial ou talvez menos que isso”, explica a professora.
O objetivo de enfraquecer o Mercosul, segundo Terra, é abrir caminhos para o Brasil, e os demais países membros (Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela), negociar sozinhos com outros blocos e tratados internacionais. “Isso, na prática, significa o fim do Mercosul. A criação desta crise é muito menos sobre a Venezuela, me parece parte desta estratégia”.
Ela pondera que, entre a intenção do governo interino e a capacidade de ação há um longo caminho. Portanto não se pode “exagerar no grau de sucesso” dos golpistas. “É um tipo de impasse que reforça a narrativa de que o Mercosul é um problema e fortalece a estratégia do governo interino de fazer acordo comercial sozinho. Se vão conseguir estes acordos é outra história, não é tão simples, não depende só do Brasil”.
A falta de “diplomacia” da chancelaria brasileira
O ministro interino José Serra é o único, desde o governo de Fernando Collor, sem carreira diplomática. Todos os chanceleres da história recente eram diplomatas. Este fato tem sido alvo de muitas críticas entre especialistas porque o Brasil tem uma tradição em sua chancelaria e nos últimos anos desempenhou um papel importante no mundo na promoção de diálogos e da solidariedade com outros países. Em poucos meses, Serra conseguiu “desfazer” este trabalho com bastante eficiência.
A falta de habilidade do tucano atingiu seu ápice neste episódio com o Uruguai. Mesmo que Montevidéu tenha emitido uma nota onde afirma que a “tentativa de comprar voto” foi um “mal entendido”, para Terra é notório que esta afirmação do ministro uruguaio Rodolfo Nin Novoa de fato tenha acontecido. “Não é que o episódio não aconteceu, acredito que nas declarações do chanceler uruguaio na Câmara, ele registrou um mal-estar com o chanceler interino brasileiro que foi ao Uruguai até acompanhado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e fica muito claro o que é esta estratégia do Brasil de fabricar esta crise no Mercosul”.
A declaração de Nin Novoa, de que o Brasil teria tentado “comprar o voto” do país para evitar que a Venezuela assumisse a presidência pró-tempore do Mercosul foi feita na Câmara Federal e posteriormente vazada à imprensa e divulgada pelo jornal El País. “As declarações terem vazado é que transformou a questão num problema diplomático”, explica a professora. “O Uruguai é o único dos países do Mercosul que manteve uma posição firme, coerente, de apelo aos tratados [do Mercosul], de que se cumprisse as regras jurídicas”.
Diferente da trajetória diplomática Brasileira, que costumava até então mediar conflitos, Serra conseguiu criar uma rusga com o Uruguai e acentuar o impasse sobre a Venezuela com o Mercosul, cujo pivô tem sido o Paraguai. “A princípio o papel da diplomacia é mediar conflitos, procurar fomentar entendimentos, fazer a mediação. Em casos passados, mesmo com a Venezuela, o Brasil sempre teve o papel de manter o diálogo e agora está fazendo exatamente o oposto”, recorda Terra.
Limites éticos que devem ser respeitados
Terra vê com naturalidade que no âmbito da diplomacia os países façam propostas e tentem negociar interesses comuns. Como foi o caso do Brasil, que supostamente propôs ao Uruguai inclui-lo em negociações com outros mercados na África e no Irã. Mas ao fazer isso em troca de boicote a outro país, Serra feriu o limite ético desta política. “O Brasil está pedindo para um país desprezar a interpretação jurídica e assumir uma interpretação política em troca de algum tipo de vantagem. Apesar das negociações e as barganhas fazerem parte do jogo diplomático, existe um limite, neste caso, foi além e causou um mal-estar”.
“O fato de o Uruguai retirar as acusações, como nada está escrito, como está no âmbito da conversa, fica uma situação ambígua que tem espaço para tentar minimizar os efeitos da declaração [de Nin Novoa]. O Uruguai é uma economia menor, é complicado imaginar que esteja disposto a escalar este mal-estar com o Brasil. Mas de qualquer forma, do ponto de vista da diplomacia brasileira, me pareceu um episódio bastante lamentável porque expõe uma falta de habilidade diplomática”, pontuou.
A fragilidade do Mercosul
Quando Fernando Lugo, presidente do Paraguai, foi deposto em 2012 com um golpe parlamentar, o país foi afastado do Mercosul até realizar novas eleições presidenciais e, supostamente, restabelecer a democracia. Terra acredita que não há a mínima possibilidade de isto acontecer agora contra o Brasil porque o Mercosul “é composto por instituições frágeis, se comparadas com outros mecanismos”.
Caso o golpe contra Dilma Rousseff seja efetivado na votação no Senado brasileiro no final deste mês de agosto, dificilmente o país sofrerá uma represália como aconteceu com o Paraguai. “O bloco não tem um poder independente dos Estados, isso faz com que os maiores e os mais poderosos tenham um papel mais relevante. Portanto é difícil imaginar que o Mercosul vá constranger o Brasil porque não tem este peso institucional forte”.