O Poço do Conde
Por Ailton Fernandes*
A política tem a sua fonte na perversidade e não na grandeza humana.
Voltaire
Esse texto tem a pretensão de sugerir várias imagens a respeito da extração do Petróleo no Brasil, em especial a descoberta recente do petróleo existente na camada de pré sal no litoral de nosso país.
Entre os litorais de Santa Catarina e Espirito Santo, numa distância entre 100 e 300 km de nossa costa e numa profundidade que pode chegar até 5.300 metros, existem 13 bilhões de barris de petróleo depositados na camada do pré-sal. Alguns analistas recentemente calculam que esse depósito pode chegar à incrível marca de 55 bilhões de barris (dados da Fecombustiveis), o que transformaria o Brasil num dos maiores produtores de petróleo do mundo, senão o maior.
A posse dessa riqueza, a extração dela, a necessidade de desenvolver tecnologias para a sua extração e refino, a logística de distribuição, enfim, todas as atividades paralelas à essa extração petrolífera geraria um incremento fantástico na economia do país pois criaria um número gigantesco de empregos de todos os tipos, desde os mais qualificados tecnicamente, até para aqueles trabalhadores com baixa formação profissional.
De fato é impressionante a produção de petróleo brasileira: nos últimos anos essa extração tem ocorrido de forma cada vez mais eficaz e batendo sucessivos recordes de produção. Para se ter uma ideia, em dezembro de 2010 a Petrobrás produzia 114 mil barris/dia; no dia 8 de maio de 2016 ela bateu a impressionante marca de 1 milhão de barris/dia! Não resta dúvida que essa produção só pode ocorrer com o desenvolvimento de uma tecnologia sofisticada própria para a extração desse petróleo, que, mais uma vez, está a quilômetros de profundidade e ainda coberto por uma camada de sal que pode chegar a ter dois mil metros de espessura.
Junto com o petróleo, há também a produção de gás natural, e ambos configuram uma riqueza que significa muito para o país, pois a sua correta utilização significaria um salto econômico muito grande refletindo em todas as áreas, principalmente na área social.
Faço um corte nesse momento para considerar uma outra imagem.
Em 1937 Monteiro Lobato publicou um dos seus livros mais significativos “ O poço do Visconde”. Nele ocorre uma das muitas aventuras da turma do “Sitio do Pica Pau Amarelo”. Lobato havia declarado que seria mais fácil falar para as crianças, do que para os adultos. Que seria mais rico dialogar com os pequenos, do que com os grandes, já que estes possuíam interesses próprios que dificultariam a percepção de várias situações que Lobato denunciava ou teses que defendia. O subtítulo desse livro era “Geologia para as crianças” e nele Lobato, mais do que nunca, defendia uma ideia que o acompanhava desde os tempo em que ele fora adido comercial nos EUA: o desenvolvimento da indústria petroquímica representaria um salto desenvolvimentista enorme para a economia de qualquer país.
Mas Lobato era um grande escritor, ao mesmo tempo que pregava para as crianças, defendia suas ideias para a sociedade. De posse de muitos conhecimentos geológicos, oriundos de atividades que desenvolveu nessa área, tornou o livro para crianças um libelo que defendia a ideia de que no Brasil havia petróleo. Bandeira estranha naquela época difícil, em que o país ainda lambia as feridas da grande crise de 29 e que via na agricultura a saída para essa crise. A defesa intransigente de Lobato na tese de exploração de petróleo nacional criou para ele inimigos poderosos que fizeram que ele passasse algum tempo na cadeia da ditadura de Vargas.
Por ironia do destino, dois anos após o publicação do livro, o primeiro poço de petróleo é aberto no interior da Bahia, numa cidade chamada Lobato, cidade essa que não fazia nenhuma homenagem ao escritor mas sim referia-se ao dono daquelas terras que era homônimo de Monteiro Lobato.
A outra ironia é que o governo, o mesmo que mandou prender Monteiro Lobato, criou em 03 de Outubro de 1953 (alguns meses antes do suicídio de Vargas) a Petrobrás. A fundação dessa importante companhia brasileira foi fruto da intensa luta de Lobato, e de outros brasileiros, na defesa do desenvolvimento da industria nacional em todas as áreas, sobretudo na indústria petroquímica que cada vez mais se desenvolvia no mundo inteiro. O Brasil, segundo essa campanha, não poderia ser um eterno coadjuvante nesse contexto.
Qual a imagem que fica nesse relato? A de que pessoas determinadas e determinantes lutavam por uma identidade nacional. Os livros de Lobato traziam para o centro do palco as diversas figuras brasileiras, mas também essa identidade tinha a ver com um projeto de nação que previa o desenvolvimento econômico do país utilizando os recursos naturais aqui existentes e negados com tanta veemência naqueles tempos.
A campanha “O petróleo é nosso” marcou uma época em que o Brasil ainda era conhecido apenas pela produção cafeeira e por ter florestas imensas. Pode-se afirmar que ele foi um visionário e marcou várias gerações brasileiras com a sua defesa num projeto de nação para o país.
Vamos para outra imagem.
Em 2008 foi lançado um filme muito interessante, “Sangue Negro” com a direção de Paul Thomás Anderson e tendo como protagonista Daniel Day- Lewis. Esse filme retrata a descoberta de petróleo na Califórnia no final do século XIX. Essa obra retrata o início da extração de petróleo nos EUA, inicio difícil, com a exploração primitiva, inúmeras explosões e mostra também um fenômeno que ocorria desde o inicio da revolução industrial, que era a expulsão das populações da terra, pois, ou essas terras eram compradas a preço baixo de trabalhadores individados ou simplesmente capangas armados expulsavam as pessoas de suas propriedades.
Numa das cenas mais marcantes do filme, o personagem Daniel tem dificuldades para conseguir um terreno muito rico em petróleo, o proprietário não estava endividado e por outro lado tinha como se defender de qualquer ameaça fisica que sofresse.
O que faz Daniel, então? Compra as terras vizinhas a esse terreno e com sondas e mangueiras começa a retirar o óleo do subsolo do vizinho. Quando ele explica essa ação para o proprietário ele usa um canudinho de refrigerante para explicar como ocorria esse roubo. O canudo vai por baixo da terra e suga a riqueza pela bomba do terreno de Daniel. Mas é possível imaginar outra metáfora para tal ato: penso num longo canino de um vampiro que crava seus dentes nas vitimas e delas retira toda a vida, exaurindo a sua energia até a inevitável morte. Dessa forma a riqueza do subsolo que estava escondida é totalmente explorada pelo petroleiro Daniel.
Façamos mais um corte.
No dia cinco de outubro de 2016 os deputados federais brasileiros aprovaram, sem emendas, projeto idealizado pelo senador José Serra que determina o fim da obrigatoriedade da Petrobrás em participar de pelo menos 30% da exploração de todos os poços de petróleo do pré-sal.
Antes disso a nossa principal companhia sofreu um processo de desgaste midiático jamais visto na história republicana. Sendo acusada de ser um covil de corruptos e corruptores, a Petrobrás foi desmontada por uma intensa campanha publicitária veiculada nos principais veículos de comunicação do Brasil visando unicamente o seu desgaste e ocultando da população a intensa pesquisa realizada na área de extração e refino do petróleo bruto, assim como os sucessivos recordes de extração dos poços.
Sabemos que isso já aconteceu com outras estatais e a finalidade desse processo sempre foi fazer um projeto de privatização que somente fortalecia os grandes grupos econômicos, sem se preocupar com os prejuízos para a nação e muito menos com as vidas humanas e o meio ambiente. O exemplo mais dramático desse processo foi quando ocorreu a privatização da “Vale do Rio Doce” que provocou, entre outras tragédias, o rompimento da barreira da “Samarco” em Mariana (MG) causando um desastre que não apenas atingiu Minas Gerais, mas também se estendeu ao litoral do Espirito Santo, já que o Rio Doce tem o seu leito nessa direção.
Uma pequena nota no painel da “Folha de São Paulo” no dia 07 de outubro de 2016 explicita o que vai ocorrer: “Quero furar poço. Pouca horas depois da aprovação da nova lei do pré-sal na Câmara, nesta quarta feira (5), o consulado brasileiro em Houston recebeu sete pedidos de investidores estrangeiros para avaliar o mercado nacional de óleo e gás”.
Apesar de sabermos que os preços das comodites sofrem variações conforme os humores do mercado; apesar de denunciarmos que o combustível sólido é responsável direto pela elevação da temperatura mundial; apesar de sabermos que um país depender unicamente do extrativismo vegetal ou mineral não o levará ao pleno desenvolvimento. Apesar de tudo isso, não podemos abrir mão de nossas riquezas!
As grandes corporações petrolíferas como a Chevron, a Esso, Shell, BP e outras viram o enorme potencial de lucro que a privatização da exploração pode oferecer. Recentemente o preço do barril de petróleo aumentou no mercado internacional, alcançando o preço de 50 dólares, a sua produção custa em torno de 8 dólares o barril, portanto, temos um lucro de quase 5 vezes a seu custo. Levando em consideração o recorde de produção do pré-sal de 1 milhão de barris num único dia, observamos o grande lucro advindo dessa exploração, agora aberta ao capital internacional. Afora esse lucro irá no pacote, também, toda a tecnologia desenvolvida pela Petrobrás na extração desse tipo de petróleo e que, com toda certeza, deve existir em outras partes do mundo onde essas grandes corporações atuam e irão implementar a nossa tecnologia nacional sem pagar nada por essa utilização.
Cometemos um duplo crime: damos de mão beijadas uma riqueza imensa e transferimos tecnologia sem nenhuma contrapartida.
O blogueiro Fernando Brito do site “Tijolaço” faz uma denuncia absolutamente dramática: No dia 29/07/16 o presidente Michel Temer aprovou a venda do campo de extração de Petróleo de Carcará na Baía de Santos por 8,5 bilhões de reais para a estatal norueguesa Statoil, e ainda de forma parcelada. Numa conta conservadora, especialistas afirmam que o campo tem capacidade de gerar riquezas na casa dos 33 bilhões de reais!
Essa informação foi vinculada na grande mídia? Não vi. Quando a grande mídia quer denunciar, o faz através de notinhas escondidas nas páginas internas de seus jornais ou revistas.
Façamos mais um corte.
Não é por acaso que a Noruega tem sido sucessivamente a líder de qualidade de vida no ranking da ONU. Os índices sociais são altíssimos, nem sempre foi assim.
Cito outro site, “Universo do Petróleo” para apontar o que foi feito com a riqueza descoberta na Noruega nos 70:
Com reservas de petróleo e gás natural em grande quantidade, a Noruega é atualmente a sétima maior nação produtora e a terceira maior exportadora de petróleo do mundo. Porém, o principal destaque do país é o destino dos recursos de sua exploração. Ao se iniciar o processo de exploração, nos anos 70, o país se dedicou a dividir os royalties e lucros do novo mercado que se abria de forma a melhorar os sistemas públicos do país com a criação de um Fundo Social, programa que também será reproduzido aqui com os royalties do pré-sal.
É importante lembrar que a empresa norueguesa que comprou “Carcará” é uma estatal, portanto tem como principal função a de propiciar aos cidadãos noruegueses qualidade de vida, e não dividir lucros com acionistas que nada fizeram para que a riqueza produzida pelo petróleo brasileira fosse descoberta e explorada.
Importante lembrar, também, que o governo brasileiro, quando da descoberta do petróleo do pré-sal destinou, em lei, que grande parte dos seus recursos iriam para as áreas sociais, em especial a educação.
Epílogo.
É significativo que o autor da Lei que tira da Petrobrás a exclusividade da exploração do Petróleo seja o senador José Serra de São Paulo. Ele foi um dos artífices do processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef. Durante os últimos dez anos os governos brasileiros resistiram a ceder os recursos da Petrobrás para a iniciativa privada, pois imaginavam que essa riqueza deveria ter o mesmo destino do modelo norueguês. Era uma política de Estado. Ao mesmo tempo da descoberta, novas tecnologias nacionais foram criadas para essa exploração, não faltou boa vontade no investimento dessas pesquisas. Agora tudo está à disposição do capital das grandes corporações para aumentarem seus lucros, produzirem bem estar social nos seus países de origem, criar empregos lá enquanto o Brasil abandona sua política de Estado e volta a ser coadjuvante no mercado internacional vivendo uma situação de colonialismo, como quando à época da exploração de ouro em Minas Gerais e Goiás no século XVII.
Hoje a figura de Monteiro Lobato se multiplicou na nossa sociedade, inúmeros jornalistas, blogueiros, pensadores, trabalhadores, professores, gente comum mesmo nas redes sociais, denunciam o entreguismo que estamos vivendo, tempos difíceis da política. O processo de impeachment, e o golpe na democracia brasileira, abriu outra “caixa de Pandora”, agora no Brasil. Caixa essa que, utilizando o velho maniqueísmo da politica brasileira, tirará da nossa nação a perspectiva de um futuro promissor, pois que entrega de mãos beijadas todas as nossas riquezas aos especuladores nacionais e internacionais.
Voltando ao senador responsável por tal lei, é irônico que ele, no cenário político nacional, seja chamado de vampiro pelos seus inimigos políticos. Eu penso de outra forma: voltando à metáfora que fiz no filme “Sangue Negro” eu digo que ele é apenas os caninos que as grandes corporações irão colocar na jugular do povo brasileiro. E é também por isso que esse artigo leva o nome que levou, para fazer referência ao conde… Drácula.
*Ailton Fernandes é diretor da Contee, da Fepesp e do Sinpro-SP e professor da rede privada e pública de São Paulo