O que está em jogo no trabalho remoto e na modalidade EaD?
Por Adércia Bezerra Hostin dos Santos*
Algumas percepções distorcidas encontram eco na afirmação de que os professores deveriam estar aptos a lidar com as tecnologias digitais do século XXI. A normalização desse processo de distanciamento social — e de como ele afeta a privacidade, de um lado, e leva à exclusão, de outro —, bem como a romantização de que temos que dar conta dessa demanda a todo custo, como troca dos processos de aulas presenciais, irão aprofundar ainda mais as desigualdades sociais educacionais do país, agora com ênfase no acesso à internet, um serviço ainda caro e prestado com má qualidade.
Não se faz trabalho remoto apenas migrando o conteúdo das aulas presencias para as plataformas virtuais.Precisamos lidar com o fato de que a imensa maioria dos docentes não tem especialização no uso das tecnologias e que as próprias instituições de ensino muitas vezes não dispõem do aparato tecnológico para essas demandas. A prioridade no momento deveria ser garantir o acesso universal dos estudantes às ferramentas de ensino tecnológicas, a capacitação dos professores e os processos de acompanhamento e avaliação das aulas não presenciais. A questão é que essa sequência de fatores necessários não se dá no meio de uma crise sanitária de nível mundial, ainda mais quando são irrelevantes para o governo federal e para o próprio Ministério da Educação.
A desigualdade em números
O censo escolar de 2017 já media que “a presença de recursos tecnológicos como laboratórios de informática e acesso à internet ainda não é realidade para muitas escolas brasileiras. Apenas 46,8% das escolas de ensino fundamental dispõem de laboratórios de informática; 65,6% das escolas tem acesso à internet; em 53,5% das escolas a internet é por banda larga”.
A pesquisa TIC Domicílios 2018 colocava que 85% dos usuários de internet das classes D e E acessavam a rede exclusivamente pelo celular. E somente 13% se conectavam tanto pelo aparelho móvel quanto pelo computador. Na classe A, a tendência se inverte. As desigualdades se ampliam devido à qualidade da conexão e aos limites das franquias de dados. Um estudo promovido pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aponta que 55% dos acessos móveis do país são pré-pagos e que boa parte dos usuários pós-pago são clientes “Controle”, que pagam uma taxa fixa mensal, mas com limite, em geral bastante restrito, de tráfego de dados.
A questão também vai ao encontro dos depoimentos dos estudantes de áreas periféricas, que desnudam o fato de que “possuir acesso” não garante a qualidade ou a estabilidade do sinal encontrado. É o que relatam alunos da rede pública em reportagem publicada pelo Portal UOL.
Às vezes, a internet da associação de moradores falha e perco a continuidade das leituras. Às vezes, a velocidade não é suficiente para assistir a uma videoaula. Sigo estudando por materiais aleatórios, mas com dificuldades. Tenho tentado não parar, mas às vezes bate a desmotivação. Não ter internet nesse momento em que não podemos sair de casa é um obstáculo enorme
Luiz Menezes, estudante, morador do Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, que se prepara, com dificuldade, para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)
“O meu sinal não é wi-fi, então não consigo baixar os arquivos. Quase sempre os materiais chegam atrasados. Além disso, deixamos de ter aulas, ao vivo ou gravadas, em pleno ano de vestibular. A escola nos fornece uma série de PDFs e vídeos que não são dos nossos professores”, lamenta o também vestibulando Pablo Henrique Saldanha, morador da favela da Vila São Luiz, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. “É como se tivéssemos perdido o vínculo com a nossa formação, com os estudos”.
Inclusão em risco; privacidade também
A exclusão não se restringe à questão do acesso à Internet. A estandardização de matérias e métodos não pode se confundir com marcos de aprendizagem. Alunos com necessidades educativas especias sentem grande dificuldade no modelo remoto que tem sido utilizado neste momento de excepcionalidade. Nesse caso, a responsabilidade do professor de lidar com a heterogeneidade é considerável e transferir todas essas e outras especificidades da sala de aula e da relação aluno x professor para um ambiente virtual é apenas “disfarçar com ares de modernidade” que atendem muito bem às expectativas do marketing, mas não atendem à educação como deveriam.
Mas, além dessa análise inicial, pouco se tem ouvido falar do risco à privacidade de estudantes, famílias e docentes na utilização de plataformas digitais. A pesquisa Educação Vigiada mostra que 65% das universidades públicas e secretarias de educação do país utilizam tecnologias das cinco maiores empresas, englobadas na sigla Gafam — Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft —, que possuem como modelo de negócio a exploração dos dados pessoais a fim de gerar tendências de comportamento futuro dos usuários.
Os dias vindouros ainda não mostram sinais de boas novas. Seja no Enem, no trabalho remoto ou nos riscos representados pelas tentativas mercantis de se valer do momento de fragilidade e da excepcionalidade do trabalho remoto para implementar a modalidade EaD na educação básica, é necessário destacar que o direito constitucional à educação gratuita, laica, inclusiva também se configura em igualdade de acesso e permanência na educação escolar. A escola sempre foi e será o local em que o pensamento crítico deve ser construído de forma ampla e democrática, organizado e responsável por uma sociedade que seja livre, emancipada e, acima de tudo, sem mordaças.
*Adércia Bezerra Hostin dos Santos é pedagoga, mestranda do curso de Sociologia e Ciências Políticas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), presidente do Sindicato dos Professores de Itajaí e Região /SC (Sinpro), Coordenadora da secretaria de Assuntos Educacionais da (Contee) e membro da diretoria do Fórum Nacional de Educação (FNPE). Autora da Coluna “Para onde caminha a educação” no Tribuna Universitária.