O que faz o Brasil ser líder em violência contra pessoas trans
Tentativa de assassinato de travesti no Recife chama atenção para marginalização do grupo que mais sofre dentro da comunidade LGBT. Trans que atuam como profissionais do sexo são particularmente vulneráveis
Sem-teto, a travesti Roberta Nascimento da Silva, de 32 anos, quase foi assassinada na noite do último dia 25 de junho, em Recife. Enquanto ela dormia, um adolescente de 17 anos jogou álcool em seu corpo e ateou fogo. Com 40% do corpo queimado, Silva foi levada para o hospital. O menor foi detido algumas horas depois do crime.
Lembrada em protesto realizado na última segunda-feira (28/06) na capital pernambucana, Dia Internacional do Orgulho LGBT, Silva é um rosto do ódio que parece só aumentar no Brasil: o país ocupa a nada honrosa posição de líder do ranking mundial de homicídios de pessoas transexuais e travestis.
De acordo com o balanço anual realizado pelo Trans Murder Monitoring, 350 pessoas trans foram assassinadas entre 1º de outubro de 2019 e 30 de setembro de 2020. Na primeira posição, com 152 casos reportados, aparece o Brasil. México (com 57 homicídios), Estados Unidos (com 28), Colômbia (com 21) e Argentina (12) fecham as cinco primeiras posições.
Produzido em conjunto pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) e pelo Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), o Dossiê: Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020 confirma essa tendência. Segundo os dados nele compilados, em todo o ano de 2020 foram 175 assassinatos de pessoas trans. Foi o segundo maior número de toda a série histórica, pouco abaixo dos 179 registrados em 2017.
“Toda essa violência a que travestis e mulheres trans estão submetidas no Brasil deve-se à nossa herança colonial, que coloca o homem como centro de referência de tudo, gerando uma sociedade patriarcal, baseada no machismo e na violência de gênero. Então, essa violência é uma violência de gênero, tanto mais quando rompemos com a expectativa da binaridade de gênero”, argumenta a geógrafa Sayonara Nogueira, diretora do IBTE.
Segundo ela, essas pessoas acabam ocupando “o lugar do não humano”, “de uma cidadania de segunda categoria”. “Vivemos uma morte social diariamente. Nossa morte começa antes do tiro, devido ao processo de exclusão social que nossa comunidade sofre”, acrescenta. “É importante refletir toda essa conjuntura numa perspectiva de classe, racial, geracional, pois quem está morrendo é a mulher periférica, negra e trans. São elas que lideram essa triste estatística no país.”
Subnotificação e discurso de ódio
É preciso ainda lembrar que há muita subnotificação. O levantamento é realizado basicamente por meio de notícias publicadas em jornais e sites noticiosos, já que os registros oficiais geralmente não evidenciam se tratar de transfobia — na maioria das vezes nem sequer consideram a identidade social da vítima.
“Isso é fruto da desumanização da comunidade LGBTI+. E dentro da comunidade, as pessoas trans são as mais discriminadas”, avalia o pedagogo e ativista Toni Reis, diretor-presidente da organização Aliança Nacional LGBTI+. “A causa está nesse discurso de ódio.”
De acordo com o levantamento Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil, realizado anualmente pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) desde 1980, 2020 foi o primeiro ano em que as travestis e transexuais superaram os gays em número de mortes. Entre os 237 LGBTs assassinados no ano passado, segundo esses dados, 71% eram desse grupo.
De acordo com boletim divulgado pela Antra, referente aos quatro primeiros meses de 2020, o Brasil deve seguir na liderança desse ranking. De janeiro a abril foram compilados pela entidade 56 homicídios de pessoas trans no país — nos Estados Unidos foram 19 no mesmo período.
Misoginia, preconceito contra prostitutas e homofobia
“Em 2020, 71% dos assassinatos [de pessoas trans] aconteceram em espaços públicos, tendo sido identificado que pelo menos oito vítimas se encontravam em situação de rua”, pontua o dossiê da Antra e do IBTE.
“Também foi identificado que pelo menos 72% dos assassinatos foram direcionados contra travestis e mulheres transexuais profissionais do sexo, que são as mais expostas à violência direta e vivenciam o estigma que os processos de marginalização impõem a essas profissionais.”
O documento afirma que as travestis e transexuais femininas “constituem um grupo de alta vulnerabilidade à morte violenta e prematura no Brasil” e que a expectativa de vida desse grupo pode ser estimada como sendo de 35 anos de idade — enquanto a da população brasileira em geral é de 74,9.
“Desgraçadamente, as travestis e transexuais que vivem da prestação de serviços sexuais na pista, e que representam por volta de 90% do segmento trans, são as principais vítimas da violência na comunidade LGBT, pois concentram três estigmas: a misoginia, o preconceito contra prostitutas e a homofobia”, analisa o antropólogo Luiz Mott, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB).
Reis lembra que as pessoas trans já começam sendo discriminadas dentro das famílias. “Há estudos [realizados pela Antra] que mostram que elas em média são expulsas de casa com 13 anos. São desumanizadas”, comenta. “São poucas as famílias que acolhem e aceitam. Por isso, sem possibilidade de sobrevivência, muitas vão para a prostituição.”
Nas ruas, encontram um cenário marcado “por grande violência moral e física”, pontua o antropólogo Mott, elencando que o trabalho costuma ser “altamente insalubre” e “socialmente agravado pelo consumo de drogas, álcool, extorsões, assaltos e violência policial”, além de violência dos clientes.
Os dados apresentados pelo dossiê da Antra e do IBTE reforçam o quadro. “Podemos verificar que existe um perfil prioritário que tem sido vitimado pela violência transfóbica, que é a travesti ou mulher trans, negra, pobre, que é percebida dentro de uma estética travesti socialmente construída e, principalmente, profissionais do sexo que atuam na prostituição nas ruas”, observa o documento.
Dentro os 175 assassinatos reportados em 2020, 124 ocorreram em espaços públicos. Já considerando as 77 tentativas de homicídio registradas pelo relatório, 56% foram nas ruas.
E o recente caso de Recife mais uma vez ilustra o tipo de violência direcionada contra essas pessoas — felizmente, não acabou em morte. O dossiê aponta que, no caso dos assassinatos de trans, 77% dos casos foram “com requintes de crueldade”.
“Isso denota um elemento facilmente identificado em crimes de ódio nos casos e denuncia a transfobia presente neste tipo de crime. Vimos notícias de corpos gravemente mutilados, tendo objetos introduzidos no ânus das vítimas, tendo seus corpos incendiados, esquartejados e repetidamente golpeados”, ressalta o texto.
Representatividade e ameaças
De acordo com a Antra, 30 pessoas trans foram eleitas para câmaras municipais nas últimas eleições. A representatividade, contudo, nem sempre significa o pleno exercício dos direitos.
Ocupante de uma cadeira no legislativo de Niterói, no Rio, Benny Briolly recebeu ameaças de morte e, assustada, decidiu sair do país em maio. Retornou alguns dias depois, incluída no Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos (PPDDH) — foi escoltada até sua casa.
Uma enquete realizada pelo Instituto Marielle Franco com as pessoas trans eleitas apurou que 23% delas receberam algum tipo de violência ou ameaça durante o exercício do mandato, por conta da sexualidade.
Em janeiro, a vereadora Erika Hilton e a covereadora Carol Iara — ambas de São Paulo — também foram alvo de ameaças. Hilton foi agredida nas redes sociais e teve seu gabinete invadido por um ativista evangélico. Iara teve sua casa alvejada por dois tiros.