Obesidade não é ‘só problema de ricos’ e custa US$ 2 tri à economia global, diz criador do Fome Zero e diretor da FAO
À frente do segundo mandato como diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação), o brasileiro José Graziano da Silva faz projeções preocupantes em relação à alimentação no mundo.
Ao mesmo tempo em que prevê a tendência de aumento do número de pessoas que passam fome – que atualmente se aproxima dos 815 milhões no mundo – ele também afirma que corremos o risco de “perder uma geração” por causa da obesidade, que custa à economia global US$ 2 trilhões a cada ano.
“As pessoas pensam que a obesidade é um problema dos ricos. Não é. Ela afeta também os pobres, que baseiam suas dietas em produtos mais baratos, concentrados em açúcar e farináceos. Vamos perder uma geração se continuarmos aceitando a obesidade sem uma intervenção pública”, afirma José Graziano.
Ele cita dados da FAO e da Organização Pan-Americana de Saúde, apontando que o sobrepeso afeta a 54% da população brasileira. Quase 20% dos homens e 24% das mulheres estão obesas. Entre as crianças menores de cinco anos, 7,3% registram sobrepeso no país.
Por outro lado, a fome também preocupa. Segundo o diretor da FAO, em 2016 verificou-se pela primeira vez um aumento da fome em escala mundial após uma sucessão de quedas que durou uma década. O Brasil deve seguir essa mesma tendência internacional.
A FAO prepara um novo mapa da fome, que deve ser lançado no meio do segundo semestre, e, neste mês, está em campo recolhendo dados sobre a situação do orçamento familiar.
Para Graziano, a situação do Brasil preocupa e há o risco de o país voltar ao mapa da fome. “O mais preocupante, no caso brasileiro, é o aumento do desemprego, decorrente do baixo nível de crescimento e a redução dos gastos sociais do governo”, diz o diretor-geral da FAO, que teceu críticas aos governos de Dilma Rouseff e de Michel Temer – os quais, segundo ele, não conseguiram manter o mesmo patamar de investimentos sociais registrados no governo Lula.
Coordenador inicial do Fome Zero no primeiro mandato de Lula (2003-2007), Graziano tem mandato à frente da FAO até julho de 2019. Leia a entrevista que ele concedeu à BBC Brasil por e-mail, após participar de um seminário em Londres.
BBC Brasil – O senhor disse recentemente que o Brasil foi um dos primeiros países a erradicar a fome e é o único a fazê-lo em dez anos. Também já afirmou que corremos o risco de ver o país de volta ao mapa da fome. Quais são as reais chances de retrocesso dado o cenário de baixo crescimento econômico e desemprego? É possível fazer uma estimativa de quantos milhões de famílias pioraram sua segurança alimentar no Brasil?
José Graziano da Silva – Esses indicadores construídos pela FAO são checados com informações da Pesquisa de Orçamento Familiar, a POF, que atualmente está a campo e deve encerrar em maio de 2018. Quando os resultados da nova POF estiverem disponíveis, a FAO poderá recalcular a posição do Brasil, que em geral ocorre no início do segundo semestre.
Em todo caso, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar que figurou pela última vez na Pnad 2013 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) apontou que dois terços das famílias pobres e metade das famílias em situação de extrema pobreza estavam em condições severas de insegurança alimentar e nutricional.
Isso nos faz presumir que o crescimento da extrema pobreza entre 2014 e 2015, em razão do aumento do desemprego e da redução dos gastos governamentais nas várias políticas sociais, pode ter levado muitas famílias a uma piora da sua segurança alimentar. A fome no Brasil está fundamentalmente relacionada à geração de empregos decorrente do crescimento econômico, ao nível de emprego, e do nível do salário mínimo e às políticas de transferência de renda.
O que estamos vendo como mais preocupante, no caso brasileiro, é o aumento do desemprego, decorrente do baixo nível de crescimento e a redução dos gastos sociais do governo.
BBC Brasil – A FAO identificou tendência de crescimento no número de pessoas que passam fome entre 2015 e 2016. Algum indicativo de que essa tendência continua no mundo?
José Graziano – Em 2016, verificou-se pela primeira vez um aumento da fome em escala mundial após uma sucessão de quedas que durou uma década. Atribuímos esse aumento à escalada de conflitos e às consequências desastrosas da mudança climática, como secas prolongadas e alteração no regime de chuvas.
Infelizmente, os números já disponíveis indicam que essa tendência do aumento no número de pessoas que passam fome continuou em 2017, basicamente nas mesmas regiões afetadas por conflitos e secas. Enquanto não for possível promover a paz sustentável, a resiliência dos meios de subsistência e políticas sólidas de segurança alimentar por meio de mecanismos de proteção social, não poderemos garantir que esse ano foi um mero ponto fora da curva.
BBC Brasil – Onde o senhor considera a situação mais grave e por quê?
José Graziano – Hoje há mais de 815 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar (em 2015 foram registrados menos de 800 millhões). O que mais nos preocupa são os países em que essa insegurança alimentar é severa e crítica. No fim de março, lançamos o relatório sobre crises alimentares agudas, que atestou que 124 milhões de pessoas em 51 países passam pelo pior índice de insegurança alimentar.
Essas pessoas necessitam de ação humanitária urgente para sobreviver, para manter seus meios de vida e para superar a fome e a má nutrição. Quase um quarto desse contingente se localiza no Sudão do Sul, na Somália, no Iêmen e no nordeste da Nigéria: são 32 milhões de pessoas que necessitam de assistência alimentar.
Os conflitos continuam a ser os principais fatores da insegurança alimentar em pelo menos 18 países, onde há mais de 74 milhões de pessoas passando fome extrema. Metade dessas pessoas estão em países sob conflito na África, e um terço no Oriente Médio, e 60% das pessoas atualmente em estado de necessidade alimentar estão localizadas em países sob conflito.
BBC Brasil – A fome em crianças de 0 a 3 anos também aumenta, na mesma ou em proporção maior que a fome em adultos? É a que mais preocupa?
José Graziano – Coletamos esses dados da Organização Mundial de Saúde, que oferece estatísticas alarmantes: há mais de 150 milhões de crianças com atraso no crescimento devido à desnutrição, e 52 milhões com baixo peso. Além dessa deficiência de micronutrientes – que compromete não apenas o desenvolvimento motor e físico, mas também o desenvolvimento mental – ainda há uma outra face da má nutrição, igualmente preocupante: a obesidade e o excesso de peso.
Trata-se de males que preocupam o mundo todo, afetando indistintamente países pobres e ricos. As pessoas pensam que a obesidade é um problema dos ricos. Não é. Ela afeta também os pobres, que baseiam suas dietas em produtos mais baratos, concentrados em açúcar e farináceos.
Vamos perder uma geração se continuarmos aceitando a obesidade sem uma intervenção pública. Porque não é apenas um problema de saúde e de nutrição, mas também tem impactos na gestão pública.
A obesidade tem um preço exorbitante. Custa à economia global mais de US$ 2 trilhões a cada ano, quase 3% do PIB global. Trata-se do terceiro ônus social mais dispendioso causado pelo homem, atrás apenas do fumo e da violência armada/guerra/terrorismo. No México, a obesidade é o ônus social mais caro, equivalente a 2,5% do PIB. O Brasil, o Marrocos, e a África perdem parcelas semelhantes de suas economias nacionais para os custos crescentes da obesidade.
BBC Brasil – Em que a fome no Brasil difere da fome identificada no continente africano ou no sudeste asiático?
Graziano – Quando implantamos o Fome Zero durante o início do primeirmo governo Lula, detectamos que a fome na Amazônia era também tão grave quanto no Nordeste. Não se pode pensar que uma população que está na beira do Rio Amazonas desfrute necessariamente de uma dieta rica e saudável. Esse contingente possui uma série de deficiências nutricionais.
A fome tem muitas caras, e a cara da fome no Brasil é de uma mulher, de meia idade, com muitas crianças e que vive no meio rural.
Em geral, o marido migra e não a leva, resultando em grande parte no abandono da família. Essa família tem de ser beneficiária de mecanismo de proteção social – senão, jamais irá deixar a condição de miséria em que vive, assim como os seus filhos. Essa é a geração que pode ser comprometida pela ausência de políticas sociais. Então, por mais deficiências que possam ter programas de transferência de renda – e que geralmente não têm, pois são facilmente corrigidos – não se justifica deixar sem um mínimo atendimento a pessoas que não têm condições de terem acesso à alimentação.
BBC Brasil – Por que o senhor acredita que multiplicar a produção de alimentos não deve ser prioridade?
Graziano – O grande problema da fome não é falta da produção de alimentos já que se produz quantidade suficiente para alimentar a todos, exceto em alguns bolsões, principalmente na África Subsaariana e nos pequenos países insulares.
A questão passa necessariamente pelo acesso: as pessoas não possuem renda suficiente para ter uma alimentação saudável e de qualidade. Em geral, é uma questão de escassez de recursos monetários para se manter uma alimentação saudável. (…) O Brasil é um grande reflexo dessa realidade: um dos maiores produtores agrícolas mundiais, mas que não consegue traduzir isso em maior acesso a alimentos de qualidade à maior parte da população. No Brasil, tem-se observado o consumo de alimentos cada vez menos saudáveis, em razão de a comida de qualidade ser muitas vezes mais cara do que fast food. Tais hábitos têm feito a obesidade no Brasil, assim como em toda a América Latina, disparar.
Também nos preocupa a questão das perdas alimentares, especialmente nos países mais pobres, em que as condições de armazenamento e de transporte são, muitas vezes, deficitárias. Trabalhamos em conjunto com governos para mobilizar recursos que financiem uma melhor infraestrutura que ajude a minimizar essas perdas.
BBC Brasil – Que tipo de iniciativas internacionais se mostram eficientes e aplicáveis ao Brasil no combate à fome e à desigualdade?
Graziano – O Brasil, durante boa parte dos governos Lula e Dilma, desenvolveu uma série de programas sociais que, na verdade, serviram de inspiração para vários países. Políticas de transferência de renda para comunidades rurais carentes que ajudam a financiar a agricultura familiar de suas localidades são comprovadamente mecanismos de fomento à economia, de desenvolvimento, e, consequentemente, de redução da insegurança alimentar.
Cada país possui realidade diferente, mas a essência da aplicação de programas de proteção social e de políticas sólidas de segurança alimentar será, de maneira geral, bem-sucedida em ambientes distintos. Recentemente, lançamos um livroque reúne as experiências brasileiras no combate à fome e à pobreza, especialmente com enfoque na inclusão produtiva e na transferência de renda. Vale a pena dar uma olhada.
BBC Brasil – Uma das grandes críticas ao governo petista é que a desigualdade de renda não caiu no Brasil entre 2001 e 2015, apesar de o país ter conseguido sair do mapa da fome. Acredita ser preciso fazer uma autocrítica em relação às políticas adotadas, que foram incapazes de reduzir as disparidades na distribuição de renda?
José Graziano – Não dou por certo que não houve queda na desigualdade. Essas informações são auferidas de maneira autodeclaratória: o pobre sabe e diz exatamente quanto ganha. O rico, não. Em conversa que mantive com o professor Rodolfo Hoffmann, da Unicamp, que tem estudos consagrados sobre o tema, ele chamou a atenção para uma questão importante sobre a desigualdade da renda no Brasil, como o do Marc Morgan (economista irlandês e discípulo de Thomas Piketty). O trabalho faz um grande esforço para “melhorar” a qualidade das informações básicas existentes, incluindo dados do imposto de renda. Mas Morgan, em seu trabalho, não dispõe dos dados de 2001 a 2007, que é o início da série que vai até 2015. Para esse período de sete anos, os dados foram imputados, estimados.
Então por que aceitar como certas as conclusões dele? E depois, o trabalho de Morgan, assim como o de outros, chamam a atenção pela estabilidade da distribuição da renda no Brasil. As mudanças são muito pequenas. Assim, não creio que se possa contestar que o crescimento do valor real do salário mínimo (desde 1996) e as políticas de transferência de renda – aposentadoria rural, BPC (Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social), Bolsa Escola, Bolsa Família – contribuíram para reduzir a pobreza, especialmente pobreza extrema nos dois períodos do governo Lula.
BBC Brasil – De acordo com estudo da equipe do Thomas Piketty, a renda nacional da faixa intermediária da população caiu e essa queda se deve ao fato de esse segmento não ter sido beneficiado diretamente pelas políticas sociais e trabalhistas e/ou ter tirado proveito de lucros, dividendos, renda de imóveis e aplicações financeiras. O senhor acha que foi uma questão de escolha ou faltou políticas específicas para esse segmento – e quais?
Graziano – Foi uma questão de prioridade aos mais pobres entre os pobres. Quando Lula assumiu, deu uma declaração que parecia utópica: “meu governo não será bem-sucedido enquanto todos os brasileiros não puderem tomar café da manhã, almoçar e jantar”. Assim, os esforços de desenvolvimento social do governo se concentraram em eliminar o Brasil da escória da fome, de um mal que o acompanhou desde o seu nascimento.
Mais de 30 milhões de brasileiros deixaram essa condição com o Fome Zero e, principalmente, com o Bolsa Família. O governo Dilma, infelizmente, não conseguiu manter o patamar de investimentos sociais no mesmo ritmo de seu antecessor, em cenário também influenciado pelo agravamento da crise econômica mundial. Isso se refletiu em 2015 e 2016 e se mantém no atual governo. A manutenção de políticas de fomento social a médio prazo è condição fundamental para a redução da desigualdade.
BBC Brasil – Na palestra em Londres, o senhor chamou a atenção para o fato de a desigualdade estar relacionada também à tributação de impostos que não necessariamente taxa os mais ricos. Na ocasião, o senhor questionou como é possível falar em meritocracia se não se taxa a herança. Aqui vai uma pergunta provocativa: o senhor pretende deixar heranças para o neto do senhor?
José Graziano – Não se questiona o direito de herança. O que se questiona é o direito de se transferir tudo de uma geração para outra que não participou da geração dessa riqueza. É assim que perpetuamos a desigualdade da renda no Brasil. Sou favorável a que se taxe a herança no Brasil de maneira mais justa. Esse valor poderia ser de uma alíquota de pelo menos 10 a 20%, com uma alíquota progressiva para grandes patrimônios. Trata-se de uma enorme discrepância especialmente quando se compara isso a países ricos, que taxam em 50% ou mais. É um dividendo que poderia estar sendo absorvido pelo governo e destinado a camadas mais pobres da população.