Objetivo das PECs 186 e 187 é a ruptura do Estado Social
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
No último episódio da segunda geração (Next Generation) da espetacular série “Jornada nas Estrelas” (Star Trek) — criada pela genialidade de Gene Roddenberry —, exibido em 1994 com o título “All good things” (com tradução livre “Todas as coisas boas têm fim”), o capitão Picard, hipnotizado pelo enigmático ente “Q” — eterno no tempo e onipresente no espaço —, sofre de contínuas alucinações, percorrendo, simultaneamente, o futuro e o passado, provocando, nas incursões ao futuro, enorme anomalia espaço temporal.
Como o antitempo inverte a ordem dos acontecimentos, a anomalia temporal projetou-se para o passado, tornando-se gigantesca e incontrolável, chegando à linha de tempo dos primórdios da Terra, com gravíssima ameaça à formação da vida, sendo estancada antes que destruísse a humanidade em seu berço.
O Brasil, como que confirmando a ironia do escritor inglês Oscar Wild — para quem a vida imita arte, muito mais do que é por ela imitada —, acha-se diante de colossal distorção social e econômica, que destrói o presente e o futuro e o arremessa ao passado, que todos pensavam morto, dele restando tão somente as tristes marcas.
Essa incomensurável distorção teve início com Temer, a partir da Emenda Constitucional (EC) 95, que congela os investimentos sociais por 20 anos); da Lei N. 13.429/2017, que rompe todas as barreiras legais que controlavam a terceirização; e a Lei N. 13.467/2017, que reescreve a CLT, transformando-a em consolidação das leis do capital, estrangula as entidades sindicais e amordaça a Justiça do Trabalho.
Agora, é levada ao extremo, por Bolsonaro, com a extinção do MTE; com a Lei 13.874/2019, da liberdade econômica; a EC 103, que destrói a Previdência Social; a MP 905; que cria o contrato verde amarelo, em que o trabalhador tem emprego, mas não tem direitos, e taxa os desempregados para desonerar as empresas; e com as PECs 186,187 e 188, que devassam o Estado de Bem-Estar Social.
Não foi por mera coincidência que Michel Temer, em evento do nazifascista “Movimento Brasil Livre”, realizado ao dia 16 de novembro corrente, teceu loas ao governo Bolsonaro; ambos têm objetivos comuns: a destruição do Estado Social, implantado pela CF de 1988.
Como a análise de todas as distorções socioeconômicas provocadas pelos dois governos demanda arrazoado de porte, atém-se, nesse brevíssimo opúsculo, a comentários superficiais das medidas letais insertas nas PECs 186 e 187, recém-chegadas ao Senado Federal.
Tais PECs têm como escopo a conclusão da ruptura do “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos” da sociedade brasileira, preconizado no Preâmbulo da CF.
A PEC 186, denominada de emergencial — como salienta, com propriedade, o jornalista Antônio Augusto de Queiroz, em artigo publicado no Portal do Diap ao dia 11 de novembro corrente —, inclui na CF os Arts. 167-A e 167-B, que propõem três mudanças estruturais nas finanças públicas, a saber, conforme o seu registro:
“1) torna permanente o Teto de Gasto Público, de que trata a EC 95;
2) estende a sua aplicação aos estados, Distrito Federal e municípios; e
3) vincula a aplicação do Teto de Gasto à chamada ‘Regra de Ouro’”.
Vê-se, pois, que a PEC sob realce, por mais inverossímil que pareça, consegue ser muito mais cruel e letal do que a EC 95/2016, posto que, enquanto o congelamento dos investimentos sociais (educação, saúde, previdência social etc.), determinado por essa EC tem duração de 20 anos contados de 2017 inclusive, ou seja, até 31 de dezembro de 2036, aquela torna esse congelamento permanente, isto é, sem prazo para acabar, pouco importando se há crescimento demográfico e de demandas sociais.
Como se não bastasse, acrescenta Parágrafo único ao Art. 111 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que suspende, por prazo indeterminado, a correção anual dos referidos investimentos pelo INPC/IBGE, previsto na EC 95/2016.
Já a PEC 188, denominada de PEC do pacto federativo, de plano acrescenta Parágrafo único ao Art. 6º da CF, que abre o Capítulo II do Título I, que trata dos direitos sociais, com a finalidade de condicionar o direito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e infância e à assistência aos desamparados ao atendimento de um monstro sem rosto, de letal malignidade, formado por um substantivo e dois adjetivos que o caracterizam, intitulado de equilíbrio fiscal intergeracional, consoante a seguinte redação: “Parágrafo único. Será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional.” (NR)
Extrai-se desse parágrafo, que inviabiliza a concretização de todos os citados direitos, sem os quais não há ordem democrática, que, ao talante dos governantes que se sucederem, o futuro estará sempre oprimindo o presente, bastando, para tanto, que se alegue que a garantia deles romperá o equilíbrio fiscal das gerações vindouras. Haja cinismo e desfaçatez.
É forçoso concluir que o comentado parágrafo nada mais representa do que o congelamento perene dos investimentos sociais, de forma muito mais requintada e maléfica do que a imposta pela EC 95/2016.
Aqui, tem-se a efetivação do risco que a anomalia espaço-temporal provocada pela Enterprise quase acarretou à humanidade. Se o acréscimo proposto ao Art. 6º da CF não ameaça o próprio desenvolvimento da vida biológica, como quase o fizera a anomalia da Enterprise, por certo decretará a morte da vida social digna preconizada pela CF.
Frise-se que o destacado Art. da CF já fora modificado duas vezes pelas ECs 26/2000 (era Fernando Henrique) e 64/2010 (governo Lula). Mas, ao contrário da mudança ora proposta, ambas as modificações nele introduzidas foram para lhe ampliar o alcance: a primeira EC acrescentou-lhe o direito à moradia; a segunda, à alimentação.
A PEC retira ainda do inciso X do Art. 37 a expressão “assegurada revisão geral anual”, para deixar os servidores públicos efetivos sem nenhuma garantia de revisão de sua remuneração.
A redação atual, dada pela EC 19/1998, dispõe:
“X – a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices”.
A redação proposta é a seguinte:
“X – a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o §4° do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso”.
Altera o inciso XV também do Art. 39 para autorizar a redução da carga horária e da remuneração dos servidores públicos em até 25%, em conformidade com o inciso I-A do §3º do Art. 169, criado por essa PEC.
A redação vigente do inciso XV do Art. 39 dada pela EC 19/1998 reza:
“XV – o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, §4º, 150, II, 153, III, e 153, §2º, I”
A redação proposta pela PEC 188 para esse inciso, e para o I-A do §3º do Art. 169 da CF, por ela criado, estipula:
“XV – o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4°, 150, II, 153, lll, 153, § 2°, I, e 169, §3°, 1-A.
I – A redução temporária da jornada de trabalho, com adequação proporcional dos subsídios e vencimentos à nova carga horária, em, no máximo, vinte e cinco por cento, com base em ato normativo motivado de cada um dos Poderes que especifique a duração, a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objetos da medida, bem corno o exercício de outras atividades profissionais por aqueles que forem alcançados por este dispositivo”.
Adiciona §7º ao Art. 198 para autorizar que se deduza do percentual da receita da União, dos estados e dos municípios reservados à saúde pelo Art. 198 da CF o investimento em educação que exceder aos percentuais, também, constitucionalmente vinculados, quais sejam de 18% para a União e 25%, para estados e municípios da receita de impostos (Art. 212, da CF).
“Art. 198
§7° Para fins de cumprimento do disposto no §2°, fica autorizada, na elaboração da proposta orçamentária e na respectiva execução, a dedução do montante aplicado na manutenção e desenvolvimento do ensino que exceder o mínimo aplicável nos termos do art. 212, caput, desta Constituição” (NR).
Igual acréscimo, e com o mesmo danoso objetivo, é feito no Art. 212 da CF, adicionando-lhe §7º, que autoriza os entes federados, na elaboração e na execução do orçamento, a deduzir dos percentuais constitucionalmente vinculados à educação (18% para União e 25% para estados, municípios e Distrito Federal) o investimento em saúde que exceder aos percentuais do mesmo modo constitucionalmente vinculados pelo Art. 198, § 2º (no mínimo 15% da receita líquida, para a União).
“Art. 212
§7° Para fins de cumprimento do disposto no caput, fica autorizada, na elaboração da proposta orçamentária e na respectiva execução, a dedução do montante aplicado em ações e serviços públicos de saúde que exceder o mínimo aplicável, nos termos do art. 198, § 2°, desta Constituição” (NR).
Suprime do inciso VII do Art. 208 da CF, que trata dos deveres do Poder Público quanto ao financiamento da educação pública, o adjetivo “suplementar”, para reduzir o alcance dessa garantia.
A redação atual dada pela EC 59/2009 dispõe:
“VII – atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde”.
A redação proposta estipula:
“VII – atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde” (NR).
Retira do § 4º do Art. 212 da CF a expressão “e outros recursos orçamentários” com o mesmo nefasto propósito apontado na alteração do inciso VII do Art. 208, qual seja: reduzir o alcance da garantia constitucional.
Aliás, não por acaso esse parágrafo se refere ao financiamento dos programas de que trata o inciso VII do citado Art. 208 da CF.
A redação vigente estabelece:
“§4º Os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previstos no art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários”.
A redação proposta diz:
“§4° Os programas previstos no art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais, repassados na forma do § 6° deste artigo, e outros recursos orçamentários dos Estados, Distrito Federal e Municípios”.
Com idêntico vil propósito, altera o §6º igualmente do Art. 212 para lhe acrescentar a marota e restritiva expressão “nos termos da lei”.
A redação em vigor, incluída pela EC 53/2006, assevera:
“§6º As cotas estaduais e municipais da arrecadação da contribuição social do salário-educação serão distribuídas proporcionalmente ao número de alunos matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas de ensino”.
A redação dada pela comentada PEC reza:
“§6° A arrecadação da contribuição social do salário-educação será integralmente distribuída, nos termos da lei, aos Estados, Distrito Federal e Municípios, considerando o número de alunos matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas de ensino, observando-se o disposto no art. 3°, III, desta Constituição”.
Modifica o §1º do Art. 213 para garantir a compra de vagas em escolas particulares, em detrimento de sua ampliação em escolas públicas.
Essa garantia é almejada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) desde o início de 1980, tendo como defensora mais enfática, naqueles idos, a então ministra da Educação Ester Figueiredo Ferraz, do governo do general Figueiredo, que representava os interesses do grupo Mackenzie.
A redação vigente do §1º do Art. 213 afirma:
“§1º – Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade”.
A redação ditada pela PEC 188 é a seguinte:
“§1° Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino básico, na forma da lei, para os interessados inscritos e selecionados que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver instituições cadastradas, segundo requisitos definidos em lei, na localidade da residência do educando”.
Extrai-se do cotejo entre o dispositivo vigente e o proposto que este simplesmente suprime o período sintático que delimita os parâmetros para o financiamento de bolsas de estudo em escolas particulares, que especifica “quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade”.
É a cabal e total privatização do ensino.
As PECs acima comentadas, somadas às ECs 95/2016 e 103/2019 e mais leis e medidas provisórias que deformaram a legislação trabalhista, constituem-se na total e impiedosa ruptura do Estado Democrático, implantado pela CF 1988, substituindo-o pelo estado de negação e de mal-estar social e coroando o momento satânico vivido pelo Brasil, parafraseando o escritor húngaro Karl Polanyi, no livro “A Grande Transformação”, escrito e publicado no início da década de 1940.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee