Os neonazistas saíram das sombras

Professora negra eleita vereadora pelo PT em Joinville é ameaçada de morte

Por Adércia Bezerra Hostin dos Santos* e José Isaías Venera**

Em Os irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski, encontramos a passagem: “Em todo homem, é claro, habita um demônio oculto: […] o demônio do prazer voluptuoso frente aos gritos da vítima torturada”. Podemos traduzir esse prazer voluptuoso pela expressão gozo, na qual há um “prazer” com sofrimento alheio. No sadismo, há o gozo em submeter o outro à dor. Quando deslocamos essa estrutura psíquica (perversa) para o plano social, o gozo sádico se expressa no ataque a grupos de pessoas no qual o prazer está em fazê-las sofrer. Os sujeitos submetidos ao gozo dos sádicos são destituídos de sua humanidade, naturalizando a barbárie. É como se os sádicos tivessem uma carta branca que os autorizassem nas suas ações.

Quem dá carta branca para a crescente onda neonazista?

Em Sigmund Freud encontramos dois afetos de ligação dos laços sociais: o amor e a agressividade (ódio). De um lado, o amor à figura do líder, e, de outro, o ódio àqueles identificados como ameaça ao amo. Na cena brasileira, o presidente Jair Bolsonaro funciona na posição de líder de um grupo ao qual negros, índios, LGBTQIA+ e mulheres empoderadas são apenas algumas das personas de ameaça.

Por essa via, podemos entender os ataques à primeira vereadora negra eleita, no dia 15, em Joinville, SC, a petista Ana Lúcia Martins. Ainda no domingo, antes da divulgação dos resultados da eleição, Ana passou a sofrer ataques. Entre eles, de um perfil falso do Twitter com referência a “Juventude Hitlerista” e que defendia sua morte, para que, com isso, seu suplente, branco, assumisse a cadeira na Câmara de Vereadores. Perfis falsos propagando o terror têm sido corriqueiros nesse Brasil de milicianos. O problema maior neste lamentável episódio é que se integra aos discursos de ódio um radialista local que atua na rádio Jovem Pan (rádio que transmite as lives semanais do presidente Jair Bolsonaro, ao qual são recorrentes falsas notícias, além de discursos de ódio).

É preciso dar um passo atrás

O filósofo esloveno Slavoj Žižek nos mostra uma importante lição no livro Violência, de que é preciso da um passo atrás para “desembaraçar-nos do engodo fascinante da violência ‘subjetiva’, claramente visível”, como essa acometida à vereadora recém-eleita. Tanto o perfil anônimo quanto o discurso do radialista (poderíamos citar também a governadora interina de Santa Catarina, Daniela Reinehr — sem partido —, que não condenou o nazismo em sua primeira coletiva no cargo, após ser questionada sobre seu pai, José Altair Reinehr, que já defendeu Hitler e negou o holocausto) são apenas as materialidades visíveis de um fundo adjacente que deve manter-se imperceptível. A violência subjetiva é também simbólica na medida que uma injúria racial existe a partir da linguagem, e a linguagem como constituidora do sujeito, neste caso, do sujeito racista. Mas Žižek nos adverte para a violência objetiva, responsável por naturalizar o sentido das coisas.

Enquanto se combate a violência subjetiva, é dado como natural que Joinville, e boa parte do Sul do país, tem identidade germânica, segregando outros grupos da partilha da cidade, como os negros. Outro exemplo é quando se naturaliza o binarismo de gênero, segrega-se as outras formas de construção da sexualidade, abrindo espaço para a violência subjetiva que insulta grupos LGBTQIA+.

A naturalização da superioridade é um fetiche

Quando Freud publicou Psicologia das massas e análise do eu, em 1922, o antissemitismo, oriundo do século 19 com base em preconceito e notícias falsas, já dava sinais de que chegaria às instâncias máximas de poder, implantando, assim, sua política de segregação e de morte, como na experiência nazista (1933-1945).

No Brasil, o culto a origens europeias, em especial a germânica, parece ocupar, no imaginário social, o que os objetos de fetiche funcionam nas relações sexuais. Como falta um passado de glória, inventa-se um. O problema não é a fabricação de um passado, mas o ódio que gera a tudo o que pode colocar em xeque a veracidade dessa fantasia, tornando-se também objeto de ódio.

Assim, em muitas cidades do Sul do Brasil, ser negro já o classifica como uma persona que coloca em suspenso a veracidade dessa fantasia, resultando em discursos e práticas de ódio. A segregação afirma-se neste espaço de naturalização, como no campo religioso, passando ao largo a presença e contribuição dos negros na história da cidade nos conteúdos escolares sobre a cidade, ou nas festas comemorativas, assim como a presença das religiões afro-brasileiras, sobretudo os terreiros de umbanda e candomblé.

Neonazistas no Sul

Em novembro de 1995, chegava às bancas a primeira edição da revista Atenção!, com a manchete de capa, “Neonazistas do Brasil: eles crescem nas sombras”. De lá para cá, poderíamos dizer que eles saíram das sombras, ocupam bancada de rádios, estão nas redes digitais e em esferas políticas. O editorial poderia ser publicado hoje que representaria bem nossos dias, ao qual podemos ler: “A capa desta edição anuncia uma reportagem sobre os objetivos, os ritos e o crescimento dos neonazistas no Brasil, particularmente entre jovens. Seus ancestrais ideológicos foram os campões da discriminação racial e religiosa, e em certo memento histórico comandaram milhões para a guerra, a destruição e o genocídio”.

Na reportagem de Clarinha Glock, na Atenção!, a primeira fonte é Wandercy Publiese, que “reforça a imagem de líder da nova geração nazista”. Em 2014 voltaria a ser notícia quando a tripulação de um helicóptero da polícia flagrou a imagem de uma suástica ao fundo de uma piscina, na residência em Pomerode do professor Wander, como é conhecido. Neste ano, ao se lançar candidato a vereador pelo Partido Liberal (PL), voltou a ser notícia, o que o levou à desistência da candidatura.

A naturalização do discurso fascista

Para além desses grupos organizados, a naturalização da superioridade faz funcionar a violência objetiva ao qual Žižek de chama a atenção. Quando o radialista da Jovem Pan diz que “a eleita voltará a colocar as pautas na esquerda em ação […], virá com o feminismo ideológico […], o PT não deveria existir mais”, evoca um conjunto de vozes na esteira da ordem discursiva da segregação. Entre as manifestações, a do perfil falso do Twitter: “Agora só falta a gente m4t4r el4 e entra o suplente que é branco”.

O radialista não fez injúria racial, mas fez um discurso fascista que não aceita a existência do que difere do seu ponto de vista. Falas cada vez mais recorrentes, que naturalizam práticas discursivas de ódio e incitam a violência como caminho para a efetivação da exclusão. Como profissional da comunicação, ele sabe sobre a responsabilidade do que comunica, mesmo que não tenha consciência sobre esse traço fascista de seu discurso. O debate não pode se reduzir a um grupo organizado, ou a falas que se propagam pela imprensa, mas deve se voltar à violência objetiva, cuja função é naturalizar a realidade e tornar “aceitável” que alguns possam ser matáveis.

*Adércia Bezerra Hostin dos Santos é pedagoga, mestranda em Sociologia e Ciências Políticas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), presidente do Sindicato dos Professores de Itajaí e Região/SC, coordenadora da Secretaria de Assuntos Educacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e membro da diretoria do Fórum Nacional de Educação (FNPE).

**José Isaías Venera é jornalista, doutor em Ciência da Linguagem pela Unisul e professor dos cursos de comunicação da Univille e Univali, em Santa Catarina. Site: www.joseisaiasvenera.com

Da Carta Capital

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