Os primeiros sinais de um movimento golpista estão surgindo

Surgem sinais para o que pode configurar uma nova tentativa de golpe. O espírito lavajatista volta à tona, a mídia liberal dá um passo atrás na aliança com Lula, a extrema direita está na ofensiva nas ruas e no Parlamento e o ingrediente internacional moveu-se no fim de semana: Elon Musk

Por Mauro Lopes

“No creo en brujas, pero que las hay, las hay” ou “Gato escaldado tem medo de água fria”.

Os dois ditados cabem à perfeição na vida política brasileira depois de 10 golpes ou tentativas derrotadas desde o suicídio de Getúlio em 1954; de nove presidentes eleitos desde 1945, nada menos que cinco sofreram tentativas de golpe ou foram derrubados por um deles (leia aqui).

Por isso, quando os sinais começam a aparecer no horizonte, é melhor ficar alerta.

A expectativa do presidente Lula era que a aliança com a direita tradicional, marcadamente com o Centrão no Congresso, com a mídia liberal, especialmente O Globo, e com setores militares fosse capaz de afastar o fantasma do golpe. Nesse movimento, o governo tem ensaiado recuos importantes, tentando aplacar tensões. O mais vistoso deles foi cancelar qualquer manifestação oficial sobre os 60 anos do golpe de 1964. Entram na conta acenos às igrejas evangélicas, com isenções fiscais, afirmação de posições contra o direito ao aborto, críticas públicas a Nicolás Maduro, e uma guinada publicitária sintetizada no slogan “Fé no Brasil”.

Nem a aliança ou os recuos, nem um programa de governo que, no essencial, é consenso com os três setores acima mais banqueiros, grandes empresários e agronegócio têm sido capaz de extirpar a ameaça que pesa sobre o país permanentemente.

Há três movimentos que, convergindo no tempo, nos últimos 15 dias, indicam que as gargantas golpistas continuam com sede.

1. A volta do lavajatismo como método de desgastar o governo – a acusação de corrupção contra os governos progressistas é uma constante na história do país. Foi assim contra Getúlio, JK, Jango, Lula 1 e 2, Dilma. Mensalão, Petrolão, Propinoduto… quem não se lembra? Agora, no Lula 3, depois da derrota da Lava Jato esperava-se que a direita enfiasse a viola no saco por uns bons anos. Mas, não. Pouco mais de um ano de governo e o ensaio de uma nova campanha “anticorrupção” está aí, à vista de todos. É verdade que os bolsonaristas desde sempre acusam Lula de corrupção. Mas isto não é uma campanha. O que caracteriza uma campanha é a mobilização de diferentes setores simultaneamente para atingir o objetivo.

A Globo e a mídia liberal e de direita que lhe acompanha o passo começaram:

a) editoriais de O Globo e do Estadão terça-feira passada (2) saíram em defesa de Moro no processo que corre no TRE, isso na sequência do restabelecimento da aliança entre o ex-juiz/senador e Bolsonaro;

b) começam a pipocar reportagens com acusações de corrupção para atingir o coração do governo Lula, como se fez lá atrás contra José Dirceu. O alvo agora é outro chefe da Casa Civil, Rui Costa. Na quarta-feira (3) começaram a ser publicadas reportagens em série acusando o ex-governador da Bahia de ter recebido dinheiro num processo de compras de respiradores em 2020, durante a pandemia; na sexta (5), a revista Piauí publicou extensa reportagem sobre o pagamento de 759,2 milhões de reais para que a petroquímica Unigel produza fertilizantes sob encomenda da Petrobrás, num contrato que, “no cálculo da própria estatal, resultará em um prejuízo de 487,1 milhões de reais”. A motivação para a celebração do contrato seria o fato de o proprietário da Unigel ser parceiro de longa data do PT, ter feito doações generosas para o partido durante 18 anos e ter amizade sólida com o chefe da Casa Civil. “Conforme integrantes da alta administração da Petrobras, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, ex-governador da Bahia, é um dos maiores interessados no negócio e acompanhou de perto a realização do acordo”, está no texto da Piauí. Não coloco minha mão no fogo por Rui Costa em assunto algum. As conversas sobre suas relações no mínimo estranhas com grandes empresários na Bahia datam de anos. Mas é digno de nota que o tema apareça neste momento;

c) O cerco à Petrobrás começou e, de novo, o Tribunal de Contas da União (TCU), crucial para a derrubada de Dilma, está em campo. O Tribunal está no centro da celeuma ao redor do contrato da Unigel. Mas o assunto não é novo; foi “ressuscitado” pela Piauí semana passada, mas as primeiras reportagens sobre o caso datam do início de fevereiro. Além disso, o TCU, desde janeiro, constituiu uma mega força tarefa (olha a expressão de volta) para investigar contratos e gestão da Petrobrás. Outros alvos da operação superlativa: Codevasf, Correios, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES. A “força tarefa” vai se dobrar sobre os 4 anos de governo Bolsonaro; mas, atenção: o primeiro ano do governo Lula estará na alça de mira. No final de março, o Ministério Público junto ao TCU apresentou uma representação para que o órgão apure uma possível interferência indevida do governo Lula na Petrobrás. Mas não é só o TCU que está interessado na Petrobrás. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) instaurou também semana passada “processo para investigar comunicação da Petrobras”, segundo O Globo, sem que se saiba qualquer detalhe sobre o tema, que é foco da CVM. São quatro operações que têm a Petrobrás como alvo. Para completar, o TCU tomou em dezembro a decisão inédita de auditar e fiscalizar o recebimento de presentes dados ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2023. As regras vigentes até agora no TCU preveem que essa fiscalização seja feita ao fim da gestão do mandatário, o que, para Lula, seria em 2027. No entanto, o ministro Augusto Nardes decidiu adiantar o processo – ele mesmo, Nardes, o das pedaladas, uma das colunas vertebrais do golpe contra Dilma.

2. A mobilização bolsonarista nas ruas e a direita parlamentar – depois da manifestação impressionante na Paulista em 25 de fevereiro, os bolsonaristas convocaram, também semana passada, agora em Copacabana, para a data simbólica de 21 de abril, dia de Tiradentes. No sábado (6), no post em que conclama sua base à mobilização, Bolsonaro falou sobre “levar informações sobre o nosso Estado democrático de direito”. É a senha para amplificar ainda mais o mote da extrema direita segundo o qual o Brasil vive uma ditadura e sob ferrenha censura, especialmente (mas não só) nas redes sociais. Tal discurso encontra eco nas Forças Armadas? Os militares estão submersos desde o fracasso do 8 de janeiro e o que aparece são apenas as declarações de tom democrático do comandante do Exército, Tomás Paiva. Mas aqueles que se comovem com as declarações fecham os olhos para a trajetória dos militares no mínimo desde 1945. Cumpre lembrar que o general Villas Bôas, nomeado comandante do Exército por Dilma, traiu-a durante o golpe de 2015/16. Da mesma forma, o “dispositivo militar” de Jango caiu como um castelo de cartas, com a adesão de generais e coronéis ao golpe de 1964. No Chile, em 1973, aconteceria o mesmo, com o comandante do Exército de Allende, Augusto Pinochet, sendo o líder do golpe sangrento. Recomenda-se cautela aos arautos da “profissionalização das Forças Armadas” e às eventuais juras democráticas de seus líderes.

Para além do bolsonarismo, outras forças de direita mantêm uma relação de “morde e assopra” com o governo Lula. Lideradas por Arthur Lira, tais forças nunca arquivaram completamente a ideia de um golpe que lhes favorecessem. É um fato insofismável: Lira não esteve no ato que comemorou a derrota da tentativa golpista de 8 de janeiro agora neste ano de 2024 – ato realizado no Congresso Nacional, onde ele preside uma das Casas. Ele mantém o poder sobre a abertura de um processo de impeachment contra Lula como uma ameaça constante e não dita, mas constante. Lembremos: o Centrão já testou suas forças em aliança com a extrema direita e sabe ter votos suficientes para um impeachment. Faltam apenas os argumentos e o clima político para uma nova ação desse tipo. Praticamente todo o Centrão apoiou Bolsonaro em 2018 e novamente em 2022, aderindo ao novo governo em troca de enormes nacos de poder e dinheiro, mas sem qualquer compromisso de fidelidade.

3. Elon Musk e a Internacional Fascista – o componente internacional entrou em cena de maneira contundente no sábado (6) e domingo (7) pelos dedos e o teclado de Elon Musk, dono do X (ex-Twitter). Em 3 de abril, o jornalista Michael Schellenberger publicou o “Twitter Files Brazil”, arquivos que lhe foram passados por Musk. O pacote é constituído por emails trocados entre funcionários do antigo Twitter em 2020 e 2022 relatando e reclamando de decisões da Justiça brasileira que determinaram exclusão de conteúdos em investigações envolvendo a disseminação de fake news. O jornalista assumiu o discurso bolsonarista e de Musk segundo o qual as ações contra a operação industrial de fake news no Brasil seria um “atentado à democracia e à liberdade de expressão”.

No sábado (6), Musk entrou pessoalmente em campo. Respondendo a um post antigo de Alexandre de Moraes, de 11 de janeiro deste ano, no qual ele parabenizava Ricardo Lewandowski por sua indicação ao Ministério da Justiça, Musk atacou: “Why are you demanding so much censorship in Brazil?” (Algo como “por que vocês exigem tanta censura no Brasil?”). Publicado na madrugada brasileira, 2h03 (hora de Brasília), tornou-se o grande fato do sábado. Veja:

Foi uma escalada. Musk publicou outro post às 19h01 e mais outro dois minutos depois, renovando os ataques ao ministro do STF e anunciando que iria cancelar as restrições a diversos perfis de fascistas brasileiros que tiveram suas contas bloqueadas por decisão judicial -até o momento em que escrevo este texto, noite de domingo (7), as contas permaneciam bloqueadas.

Neste domingo, logo depois de meio-dia, Musk voltou à carga, pedindo a renúncia ou impeachment de Alexandre de Moraes e ameaçando publicar “tudo o que é exigido por Alexandre de Moares e como essas solicitações violam a legislação brasileira”.

O governo Lula reagiu com posts no ex-Twitter de Jorge Messias (AGU), no sábado às 20h54 e Paulo Pimenta (Secom), no final da manhã de domingo. Foram textos duros, mas que não mencionaram Musk diretamente. Messias escreveu sobre “bilionários com domicílio no exterior” e Pimenta questionou o “poder das plataformas de internet e do modelo de negócio das big techs”.

Os bolsonaristas passaram o fim de semana agitando o tema e endeusando Elon Musk. Eduardo Bolsonaro anunciou um pedido para audiência na Comissão de Relações Exteriores da Câmara sobre o “Twitter Files Brasil”, com a presença de representantes da direção do X.

Na noite do sábado, desafiando Moraes e o STF, o canal Terça Livre de Allan dos Santos voltou ao ar com um programa entre 22h e 23h, com a presença do próprio Allan mais Paulo Figueiredo (neto do general-presidente João Figueiredo) e o deputado Nikolas Ferreira. Apesar de quando acessada por computador a página continuar a exibir um aviso de “Conta retida”, aviso padrão para casos de bloqueios judiciais, em smartphones, o “Terça Livre” foi visto por parte dos usuários do X no Brasil. Veja:

Na noite deste domingo, Alexandre de Moraes reagiu com vigor: a conduta do bilionário será investigada em novo inquérito. Ele também incluiu Musk entre os investigados no inquérito já existente das milícias digitais. Na decisão, Moraes grafou em letras maiúsculas: “Redes sociais não são terra sem lei! As redes sociais não são terra de ninguém”. Na decisão, afirmou que que viu “indícios de obstrução de Justiça e incitação ao crime” nas atitudes de Musk.

Enquanto isso, diversos segmentos da esquerda brasileira, provavelmente majoritários, trataram Musk como um bufão e passaram o fim de semana ridicularizando-o. Talvez seja prudente levar a sério as ameaças e reagir a elas, como fez Moraes. Musk pode ser muita coisa mas, definitivamente, não é um bufão.

Ele detém a segunda maior fortuna do planeta, estimada pela mais recente edição da Forbes em US$ 195 bilhões. Se Musk fosse um país, seria o 58º na lista dos PIBs nacionais. 159 nações têm PIB menor que a fortuna do bilionário, que está à frente, por exemplo, da Argélia, Hungria e Kuwait. Se as transnacionais já tinham poder suficiente para enfrentar governos nacionais no início do século, as big techs, atualmente, têm capacidade de abalar os países.

A participação de Musk no golpe da Bolívia em 2020 é amplamente documentada. Confrontado no então Twitter sobre o assunto, ele respondeu diretamente: “Vamos dar golpe em quem quisermos!”. A Bolívia não é o Brasil, claro. Mas é um Estado nacional. O que motivou o apoio de Musk ao golpe em 2020 foi seu interesse nas monumentais reservas de lítio bolivianas (o lítio é matéria-prima essencial para produzir baterias para celulares, computadores e carros elétricos). É o mineral mais cobiçado do planeta.

Bolívia, Argentina e Chile formam o Triângulo do Lítio, com 60% das reservas mundiais. O Brasil é o sétimo país com mais reservas, mas já é o quinto maior produtor com perspectiva de chegar ao terceiro lugar em poucos anos.

Musk quer o lítio. Mas será esse o interesse dele no Brasil, que o motiva a interferir na política interna do país? Difícil saber, mas ele tem pelo menos dois grandes interesses: a operação do X, pois o Brasil é o quarto país com mais usuários (19 milhões), atrás apenas de Japão, Índia e EUA. Além disso, com sua Starlink, empresa de internet via satélite, domina o mercado na Amazônia brasileira, com antenas em 90% das cidades da região – inclusive em garimpos.

Musk é um bilionário. Um bilionário de extrema direita. Ao fazer a ameaça de desrespeitar a Justiça brasileira, escreveu que “como resultado, provavelmente perderemos todas as receitas no Brasil e teremos que fechar nosso escritório lá”. E completou: “Mas os princípios são mais importantes do que o lucro”.

O que ele chama de “princípios” é seu alinhamento completo à extrema direita global. Nos EUA, usa sua rede para ataques ferozes a Biden e apoio incondicional a Trump. Esteve em Israel em novembro passado, para dar apoio ao genocídio promovido por Netanyahu. Apoia entusiasticamente Milei -até porque o presidente argentino prometeu franquear-lhe acesso ao lítio do país. É um membro destacado da “Internacional Fascista” que tem raízes nas Américas, Europa, África e Ásia.

Na noite deste domingo, os Bolsonaro (Jair, Eduardo e Carlos) promoveram uma live na qual o pai afirmou que o PL irá apoiar Musk (sem citar o nome dele), “para que a nossa liberdade de expressão seja garantida”. Em seguida, regozijou-se: “Temos um apoio muito forte fora do Brasil”. Quando fala em “garantir a democracia” e a “nossa liberdade de expressão”, é notório que ele fala da instauração de um regime de corte ditatorial.

No cenário global, a extrema direita segue em ofensiva constante. O FMI dá declarações públicas de admiração à ofensiva de Javier Milei contra o Estado argentino, Israel segue com os ataques a Gaza e agora à embaixada iraniana na Síria, mesmo depois da resolução de cessar-fogo da ONU, o Equador invadiu a embaixada do México, num inédito atentado ao direito internacional e Donald Trump afirma-se como favorito na corrida à Casa Branca. O ambiente mundial é propício a retrocessos.

* * *

Os golpes são construções complexas que demandam preparação e articulação. O golpe de 1964 começou em 1945, e durante dez anos houve seis tentativas, até o sucesso. Na fase inaugurada com a eleição de Lula, já tivemos duas tentativas de golpe, em 2022 e 2023.

Mas é um fato inegável que há uma espécie de guerra de guerrilhas na forma de provocações e operações de desgaste. Algumas peças do xadrez golpista estão começando a se movimentar novamente: a mídia conservadora, com a ressurreição do lavajatismo; a mobilização bolsonarista e o apoio discreto, silente, da direita parlamentar; a ação da Internacional Fascista, com esta ofensiva de Musk, precedida pelos ataques do governo de Israel e de Milei, desde a Argentina.

Um componente crucial de qualquer golpe no Brasil, o sinal verde dos Estados Unidos, faltou a Bolsonaro em 2022/23. Com a possível e mesmo provável vitória de Trump, Bolsonaro e seus aliados não terão apenas sinal verde, mas incentivo e todo tipo de apoio.

Há algumas nuvens no horizonte. Poucas, ainda. Mas podem indicar uma tempestade em formação.

Da Revista Fórum

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