Os sucessivos ataques ao direito de greve

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

Na sua insana luta contra os trabalhadores e a ampliação de seus direitos fundamentais sociais, não há o que o capital e os seus representantes, dentre eles os poderes constituídos, mais temam do que o livre exercício do direito de greve, que é, para eles, intolerável.

Para impedi-lo e/ou inviabilizá-lo, serviram-se e servem-se de todos os meios necessários. A título de ilustração, toma-se a Lei de Chapellier de 1791, na França, baixada dois anos após a eclosão da monumental e inapagável Revolução Francesa. Essa lei, que fez tábula rasa da trilogia revolucionária (liberdade, igualdade e fraternidade), proibia os sindicatos e as greves, condenando os que a desobedecessem à privação da cidadania e à pena de morte.

Os massacres das tecelãs em Nova Iorque, em 1853 — que deu origem ao 8 de março — e de Chicago, em 1886 — que inspirou a criação do dia 1º de maio como Dia do Trabalho —, bem como a criação da agência de detetives Pinkerton, em 1850, especializada em impedir greves e matar sindicalistas, são igualmente provas incontestes da intolerância do capital e de seus representantes a esse sagrado direito.

No Brasil, não foi e não é diferente. A Lei N. 38, de 1935, a primeira a tratar de greve, em seu Art., 18, com redação original, estabelecia:

“Art. 18. Instigar ou preparar a paralysação de serviços publicos, ou de abastecimento da população.
Pena – De 1 a 3 annos de prisão cellular”.

A Constituição Federal (CF) de 1937, em seu Art. 139, com redação original, dispôs:

“Art 139 – Para dirimir os conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados, reguladas na legislação social, é instituída a Justiça do Trabalho, que será regulada em lei e à qual não se aplicam as disposições desta Constituição relativas à competência, ao recrutamento e às prerrogativas da Justiça comum.
A greve e o lock-out são declarados recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional”.

A Lei N. 4330, de junho de 1964, a primeira da ditadura militar, e que vigeu até 5 de outubro de 1988 — data da promulgação da CF —, estabelecia, em seu Art. 29, com redação original:

“Art 29. Além dos previstos no TÍTULO IV da parte Especial do Código Penal, constituem crimes contra a organização do trabalho:
I – promover, participar o insuflar greve ou lock-out com desrespeito a esta lei;
PENA: Reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa de Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros) a Cr$ 10.000,00 (cem mil cruzeiros). Ao reincidente aplicar-se-á a penalidade em dobro”.

Finalmente, com a CF de 1988, os trabalhadores conquistaram — melhor seria dizer: pensaram que conquistaram — o livre exercício do direito de greve. O Art. 9º preconiza:

“É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§ 1º A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei”.

O entusiasmo pela conquista, até que enfim, do livre exercício do direito de greve começou a dissipar-se menos de um ano após a promulgação da CF, com a Lei N. 7783, de 28 de junho de 1989.

De plano, a citada Lei restringiu o direito de greve à frustração da negociação coletiva, como se extrai dos seus Arts. 3º e 14, que assim dispõem:
“Art. 3º Frustrada a negociação ou verificada a impossibilidade de recursos via arbitral, é facultada a cessação coletiva do trabalho.
Parágrafo único. A entidade patronal correspondente ou os empregadores diretamente interessados serão notificados, com antecedência mínima de 48 (quarenta e oito) horas, da paralisação”.

“Art. 14 Constitui abuso do direito de greve a inobservância das normas contidas na presente Lei, bem como a manutenção da paralisação após a celebração de acordo, convenção ou decisão da Justiça do Trabalho.
Parágrafo único. Na vigência de acordo, convenção ou sentença normativa não constitui abuso do exercício do direito de greve a paralisação que:
I – tenha por objetivo exigir o cumprimento de cláusula ou condição;
II – seja motivada pela superveniência de fatos novo ou acontecimento imprevisto que modifique substancialmente a relação de trabalho”.

O Art. 15, de forma acanhada, repete o 18 da repudiada Lei N. 4330/1964, ao estabelecer:

“Art. 15 A responsabilidade pelos atos praticados, ilícitos ou crimes cometidos, no curso da greve, será apurada, conforme o caso, segundo a legislação trabalhista, civil ou penal.
Parágrafo único. Deverá o Ministério Público, de ofício, requisitar a abertura do competente inquérito e oferecer denúncia quando houver indício da prática de delito”.

Desde o avento dessa lei e tendo-a como escudo, a Justiça do Trabalho, com a prestimosa colaboração e participação do Ministério Público do Trabalho — que requer abusividade de toda greve — tem-se fartado — em verdade, se lambuzado — na imposição de impeditivos ao direito de greve, muito deles intransponíveis, com destaque para os chamados interditos proibitórios, que impedem os sindicatos de fazerem piquetes e até de se aproximarem dos trabalhadores; para as declarações de abusividade preventiva, com a fixação de multa vultosa, em caso de descumprimento da proibição de sua realização; e para a fixação de percentual de trabalhadores que não podem suspender as atividades que exercem, que, sem meias palavras, inviabilizam a greve, pois que chegam a 80%, notadamente no transporte coletivo, e até a 100%, como o fora teratológica decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, São Paulo, em 2015, na greve dos metroviários.

Há um caso bem ilustrativo do desapreço da Justiça do Trabalho pelo direito de greve, do qual participo como advogado do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários do Estado de Goiás (Sindttransport), Processo N. 10183-19.2014.5.18.000, que trata de greve deflagrada por outro sindicato que disputa com o Sindittransport a representação dos trabalhadores coletivos em Goiânia e Região Metropolitana.

A greve foi, de plano, considerada abusiva pelo TRT da 18ª Região, tendo sido fixada multa diária de R$ 50 mil. O Sinditransporte, mesmo não tendo deflagrado a greve, foi arrastado ao processo, por determinação judicial. Após idas e vindas, foi celebrado acordo, sob a mediação da presidente do TRT, que inclusive dispensou as partes da apresentação de defesa e revogou a decisão que lhes aplicava a referida multa.

O sindicato das empresas, em clara violação aos princípios da lealdade e da boa-fé, ditados pelo Art. 422 do Código Civil (CC), mesmo sendo parte integrante do citado acordo, recorreu ao TST, requerendo o restabelecimento da comentada multa.

Por mais absurdo que seja, a Seção de Dissídios Coletivos deu provimento a tal esdrúxulo recurso, multando o sindicato que deflagrou a greve, como se colhe da ementa abaixo:

DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE — ACORDO COLETIVO FIRMADO NO CURSO DO PROCESSO E HOMOLOGADO PELO TRT — PRETENSÃO DE APLICAÇÃO DE MULTA POR DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO LIMINAR ANTERIOR AO ACORDO
Adoto a ementa do relator no tópico:

“A superveniente extinção do feito, com resolução do mérito, pela homologação do acordo coletivo firmado no curso do processo, não afasta o interesse pela aplicação da multa pelo descumprimento da ordem concedida liminarmente. Isso porque a multa fixada decorre da atuação do Estado-Juiz para garantia da efetividade de sua decisão, no caso, voltada para a manutenção das atividades da empresa. O que importa para a efetivação da multa cominada, portanto, é o descumprimento da ordem estabelecida pelo Juízo. Na hipótese, antes de as partes alcançarem uma solução consensual ao litígio, que culminou no acordo homologado, o desrespeito à ordem emanada do Poder Judiciário já tinha ocorrido. Por isso, não há como se elidir a decisão da Corte Regional que determinou o pagamento de multa por dia de paralisação. Registre-se, ainda, que a determinação do Estado-juiz para que os trabalhadores retornassem ao trabalho buscava não apenas tutelar o interesse do Suscitante, mas de toda a sociedade. Nesse sentido, eventual pacificação da controvérsia pelas partes não tem o condão de afastar a multa. Entendimento em sentido contrário daria ensejo a que a parte desacate as ordens judiciais na expectativa de não ser responsabilizada por sua conduta, em absoluto desprestígio à atividade jurisdicional do Estado. Recurso ordinário provido para, reconhecendo que o acordo superveniente entabulado entre as Partes não extinguiu o interesse do Suscitante na análise do pedido de aplicação de multa por descumprimento de decisão liminar, examinar, com escopo no art. 1.013, § 3º, III, do CPC/15 (art. 515, § 3º, do CPC/73), o referido pedido.”

“MULTA POR DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO LIMINAR
1. Diante das peculiaridades do caso concreto, com a prática de atos abusivos pelos trabalhadores grevistas, a C. SDC entendeu ser adequado e proporcional condenar o sindicato profissional responsável pelo movimento a pagar multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) pelo único dia de paralisação.
2. Não obstante a presunção legal (art. 4º da Lei nº 7.783/1989) de que o representante formal dos trabalhadores organiza e conduz a greve, se a análise dos autos demonstra que outro sindicato liderou o movimento, apenas este ente sindical deve ser condenado ao pagamento de multa por descumprimento de liminar.
Recurso Ordinário conhecido e provido.”

Ainda que se procure com lente de aumento, ou lanterna à luz do sol, como fizera o grego Demóstenes à procura de um homem honesto, não se encontra uma só decisão da Justiça do Trabalho que não implique restrição do direito de greve e/ou que não aplique alguma penalidade aos trabalhadores que a realizaram.

A Seção de Dissídios Individuais II (SDBI2), do Tribunal Superior do Trabalho (TST), acaba de dar mais uma demonstração de como o direito de greve é tratado, fazendo-o no julgamento do Processo RO 10836-33.2017.5.03.0000, com acórdão publicado no dia 13 de abril corrente, com a seguinte ementa:

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. LIMINAR SATISFATIVA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO DEMONSTRADO DE NÃO SER O BANCO OBRIGADO, SALVO NEGOCIAÇÃO, AO PAGAMENTO DO DIA DE PARALISAÇÃO, EM RAZÃO DE GREVE.
1. Trata-se de mandado de segurança impetrado pelo Banco do Brasil S.A. com pedido liminar de suspensão dos efeitos da antecipação da tutela deferida pela MMª Juíza Federal da Vara do Trabalho de Belo Horizonte nos autos da Ação Civil Pública nº 0010902-83.2017.5.03.0009, que lhe impôs obrigação de não fazer consubstanciada na abstenção de lançar falta e promover qualquer desconto do dia de paralisação grevista nos salários de seus empregados referentes ao dia 30 de julho de 2017, mediante cominação de multa diária.
2. O acórdão recorrido ratificou a liminar que suspendeu os efeitos da tutela antecipada deferida no processo matriz, concedendo, em definitivo, a segurança para autorizar o impetrante a proceder ao mencionado desconto.
3. Juridicamente incensuráveis os fundamentos lançados no acórdão recorrido ao não divisar a presença do fumus boni juris e do periculum in mora necessários à antecipação dos efeitos da tutela. A legitimidade ou não do movimento paredista ocorrido no dia 30/06/2017, considerada a sua excepcionalidade, é questão a ser dirimida no processo matriz, que não influi no pagamento do dia de paralisação.
4. A jurisprudência uníssona desta Corte acerca da legitimação do desconto dos salários relativos aos dias parados do movimento grevista firmou-se a partir da interpretação dos institutos da interrupção e da suspensão do contrato, os quais não se confundem: na interrupção há paralisação parcial das cláusulas contratuais, permanecendo o dever de assalariar; já na suspensão há total inexecução das cláusulas contratuais – nesta o empregado não trabalha e o empregador não precisa remunerá-lo nesse interregno.
5. No caso da greve, a lei é taxativa ao determinar a suspensão do contrato durante o movimento paredista (art. 7º da Lei nº 7.783/89). E assim o faz para evitar que a greve termine sendo financiada pelo empregador, o que aconteceria se precisasse pagar os dias parados, fazendo com que, em última análise, arcasse duplamente com o ônus das reivindicações do empregado: primeiro, com o prejuízo na produção imanente à falta do empregado ao trabalho e, segundo, com o próprio pagamento do dia de paralisação. Daí porque a jurisprudência somente excepciona do alcance da lei os casos em que há paralisação motivada em face do descumprimento de instrumento normativo coletivo vigente, não pagamento dos próprios salários e más condições de trabalho, que decorrem de inexecução do contrato provocadas pelo próprio empregador. Logo, não se enquadrando o caso sub judice em nenhuma dessas hipóteses excepcionais, os dias de paralisação, independentemente da legalidade ou ilegalidade da greve, devem ser objeto de negociação, a qual não restou demonstrada, in casu.
6. De outra parte, à margem da discussão acerca da existência de dano aos empregados, é fato que as próprias alegações recursais dão a entrever que já fora lançada a falta e efetivado o desconto – uma vez que formula pedido de restituição dos valores já descontados dos empregados, não justificando, em sede de recurso ordinário em mandado de segurança, a restituição de antecipação de tutela, cujo objeto já se perimiu em razão do caráter satisfativo da medida liminar deferida no presente mandamus. Recurso ordinário conhecido e desprovido”.

No âmbito do serviço público, a sanha restritiva ainda é maior. Primeiro, porque o direito de greve dos servidores públicos continua pendente de regulamentação, sendo-lhe aplicável, até que haja regulamentação própria, por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) — Processo Mandado de Injunção N. 670 —, a lei sob comentários. Segundo, porque, igualmente por determinação do STF — por seis votos a cinco —, o desconto dos dias parados é obrigação prévia do gestor, sob pena de crime de responsabilidade, Processo Agravo de Instrumento (AI) N. 853275-RJ.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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