Página infeliz da nossa história
Nota do Inesc sobre a consumação do golpe parlamentar que retirou uma presidenta legitimamente eleita do poder e ameaça a democracia e a promoção de direitos no país.
Em abril deste ano, em meio à crise política e logo após a votação da abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma na Câmara dos Deputados, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, afirmou que via o momento político do país como “uma pausa democrática com freio de arrumação para ideias, valores e processos da sociedade brasileira”. Se formos ao dicionário, o significado de pausa é “interrupção temporária” e “silêncio”. Hoje sabemos que a expressão usada pelo ex-ministro do STF prenunciava uma abrupta interrupção de nossa jovem democracia. Nada mais emblemático do projeto que está sendo instalado no Brasil. O mais assustador é pensar que essa pausa pode ser longa, e o silêncio, insuportável.
O que se viu durante o processo de impeachment, especialmente nestes últimos seis dias de julgamento no Senado, deixará como legado para brasileiros e brasileiras a vergonha: um processo contaminado, juridicamente frágil, permeado por conchavos políticos que poluem as três esferas de poder da República. Parafraseando o filme Caixa Preta, da diretora brasileira Ana Claudia Okuti, “quando a mentira encontra a verdade, temos o engano”. Com a chancela do golpe pelo Senado, e a interrupção concretizada em ruptura, teremos um longo e tortuoso caminho pela frente na defesa de direitos, políticas sociais e processos transparentes e democráticos.
O Congresso atual, o mais conservador desde o último golpe que a democracia brasileira sofreu em 1964, vem ensaiando dar uma guinada de 180 graus na garantia de políticas públicas que promovam direitos. Não foram poucos os projetos e propostas apresentadas nesse sentido, sempre com apoio de setores mais conservadores da imprensa, do sistema de justiça, do empresariado e da sociedade – os mesmos que tomaram as ruas ao longo do ano pedindo intervenção militar, louvando candidatos racistas e revelando uma indignação seletiva em relação à corrupção.
Mais do que Dilma, Lula ou o PT, o alvo principal desse processo é a própria Constituição Federal que trouxe em sua essência a garantia de direitos e a promoção da redução de desigualdades por meio de políticas públicas. As inúmeras pautas-bomba apresentadas nos últimos anos, que sempre sofreram forte resistência no Congresso e nas urnas, agora parecem ganhar um salvo-conduto com a concretização do golpe. Com o término do ensaio, entram em cena os atos: criminalização dos movimentos sociais, redução da idade penal, congelamento de gastos públicos por 20 anos, privatização dos bens públicos e da natureza, retirada de direitos trabalhistas e previdenciários.
O Inesc tem monitorado, ao longo destes meses, o avanço da pauta conservadora que se apresentou com o afastamento da Presidenta legitimamente eleita, Dilma Rousseff, e a ascensão de seu vice, Michel Temer, ao poder. O Presidente Interino não poupou energia: durante os pouco mais de 100 dias no governo: cortou significativamente o orçamento de políticas e programas públicos, articulou a votação de projetos de lei contrários aos interesses dos mais vulneráveis, de trabalhadores e da sociedade de modo geral. A lista de maldades, que começou com o simbólico enterro das agendas de direitos humanos, igualdade racial e mulheres, e um ministério misógino, é grande e tende a aumentar agora que o golpe foi consumado.
Acreditamos que o processo político que vivemos enfraquece a legitimidade das instituições democráticas, uma vez que os próprios parlamentares, momentaneamente na figura de “juízes”, assumiram publicamente já terem posicionamento de voto antes mesmo da apresentação da defesa. Ainda mais grave é que o voto de pouco mais de 54 milhões de brasileiros, instrumento máximo da soberania popular, foi desrespeitado.
Se por um lado esta crise política é profunda, por outro, ela tem precedentes. Em outros períodos de nossa história vivemos ataques à tentativa de avanços de direitos. Temos um modelo de sociedade que se baseia na desigualdade, nas relações de poder assimétricas, na alta concentração de renda, no machismo, no racismo e no sexismo. Se avançamos um pouco em termos de promoção da cidadania, tais avanços não foram suficientes para transformar as bases que estruturam nossa sociedade.
Como organização da sociedade civil que atua para a defesa e promoção dos direitos humanos no Brasil há 37 anos, o Inesc dedicará todas as suas energias para a restauração e aprofundamento da democracia no país, e promoção de direitos. Este foi e continuara a ser o nosso compromisso com o povo brasileiro. O silêncio não prevalecerá.
“Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída Em tenebrosas transações”
Chico Buarque de Hollanda