Panorama das violências contra professores no Brasil

O que quer dizer a expressão “apagão da educação”?

O apagão da educação caminha a galope. Não se trata se vai acontecer, trata-se de quando ocorrerá. O que quer dizer a expressão “apagão da educação”? O apagão da educação não é propriamente um conceito sociológico ou filosófico, ele foi utilizado no relatório “Risco de “apagão” de professores no Brasil” (2022), do SEMESP (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo), no qual são apresentados distintos dados e circunstâncias que comprovam este apagão. A evasão dos cursos de licenciatura e queda do número de professores jovens, envelhecimento e aposentadoria de professores, infraestrutura inadequada e instalações irregulares, perda e/ou ausência de direitos trabalhistas, remuneração baixa ou instável, ausência de seguro desemprego, perda gradual do plano de carreira, adoecimento mental, tudo isso comprova: “que o Brasil pode enfrentar, em um futuro recente, o chamado “apagão” de docentes, ou seja, o risco iminente da falta de professores em todas as etapas do ensino básico”. Informações verificáveis no quadro abaixo retirado do relatório:

Fonte: SEMESP, Escolas da Educação Básica 2022

Todavia, no senso comum das redes sociais, das análises de Instagram dos influencerseducativos, reportagens sobre o tema e dos comentários nas redes sociais sobre exemplos iguais aos mencionados, o apagão da educação significa, simplificadamente, a inexistência de docentes num futuro próximo.

Apagão: a violência do ponto de vista do professor

Mas, e se escutarmos os professores? Quem exerce a profissão ou já esteve no front da sala de aula, seja, enquanto força de trabalho concursada de municípios, da rede estadual ou dos institutos federais e técnicos, seja enquanto docente com contrato temporário categoria O ou temporário de contrato determinado do Centro Paula Souza e/ou outras instituições públicas, muitos de nós professores já ouvimos de colegas de profissão comentários legítimos deste tipo: “tá difícil”, “quero me aposentar”, “tá cada dia mais difícil”, etc. Os conteúdos destas queixas foram também verificadas no relatório do SEMESP, disponível na tabela abaixo acerca da valorização docente:

Fonte: SEMESP, valorização docente 2022

No fim de outubro de 2025, um pai identificado como Thiago Lênin Sousa agrediu com nove socos um professor de 53 anos. Amplamente noticiado em todo gênero de veículo jornalístico, o que acometeu a população brasileira não foi a agressão em si, senão a ousadia do ato ter ocorrido dentro da sala de coordenação do Centro Educacional 4 do Guará, no Distrito Federal. Não foi o primeiro caso no país neste ano de 2025.

Fonte: SEMESP, violência escolar 2022

Nos anos anteriores, claro, já havia o compartilhamento entre docentes da insatisfação em relação às condições de trabalho. Para este público a percepção resultante da vivência crescentemente violenta de ataques promovidos por jovens armados de faca, chumbinho, martelos e tantas outras armas brancas e de fogo contra alunos (as) e docentes, ocorria anteriormente à apreensão do público amplo (não professoral). A violência, igualmente, crescente de pais, avós, mães, familiares e afins dirigida aos professores, também, já estava sendo apreendida por este grupo específico. Em nosso momento histórico, todavia, quando professores utilizam a expressão apagão da educação estão se referindo a este conjunto de violências igual ou pior ao de Thiago Souza, que recentemente se tornaram de conhecimento da população ampla no sentido de ser um problema social.

O que é então o apagão da educação?

O apagão da educação do ponto de vista dos professores é uma categoria nativa que revela violências (no plural) contra docentes no espaço intra escolar e no seu entorno. Declara e denuncia o ponto de não retorno da saúde do ecossistema educacional já extremamente fragilizado no que se refere às relações laborais. Não é um fenômeno ocasional, nem banal, pelo contrário, ela, a violência, tem estruturado cotidianamente as relações macro e micro da vida escolar, dito isso, todos aqueles que não são professores diante deste contexto podem ser ator, conivente e cúmplice destas práticas uma vez que estruturalmente essa realidade já é reificada, naturalizada, representada (no plano dos valores) e aceita (no plano das ações) como condicional da profissão docente, pela população ampla.

Representação da violência escolar contra docentes

Michel Wieviorka (1997), sociólogo francês dedicado ao tema da violência, racismo e mudança social publicou um texto iluminador, O novo paradigma da violência (1997), o qual defende que a violência é fenômeno metamórfico: “violência não é a mesma de um período a outro” (…), argumenta. Desta forma, a fim de compreendê-la é necessário apreender duas dimensões: 1) a representação sobre a violência e as percepções que sobre ela “circulam, nas representações que o descrevem”; 2) A sua existência real, o que ela possui de “mais concreto, de mais objetivo”. Em outras palavras a violência não é natural, ela muda de um tempo e espaço social a outro a existência dela é percebida, interpretada e instrumentalizada.

Sobre o primeiro aspecto constitutivo, a violência é um objeto social utilizado para representar percepções acerca dela dirigida a grupos sociais. Levantamento do Instituto Locomotiva Pesquisa e Estratégia encomendado pela Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) publicado em 2019 na reportagem Em SP, 79% da população soube de violência em escolas (2020), indicavam que 81% dos alunos e 90% dos docentes brasileiros haviam tido conhecimento de episódios de violência em suas escolas que se referiam ao ano letivo anterior ao que foram entrevistados, índices acima da percepção verificada em relação a dados de períodos antecedentes, respectivamente, como no ano de 2017 que indicavam conhecimento sobre a violência entre 80%, estudantes, e 85%, professores, a porcentagem anterior de 2014 apontavam 77% e 84%.

O estudo realizou entrevistas em 2019 com 1 mil estudantes acima de 14 anos e 701 professores de São Paulo, em 14 regionais educacionais do Estado: as cidades de São Paulo, Guarulhos, Bauru, Marília, Campinas, Sorocaba, Santos, Registro, São José dos Campos, Taubaté, Ribeirão Preto, Araraquara, São José do Rio Preto e Presidente Prudente. No âmbito nacional, foram entrevistadas 1.516 pessoas, não apenas alunos e docentes, com 18 anos ou mais em 13 regiões metropolitanas. Das violências, “bullying (62% dos estudantes e 70% dos professores relataram casos em suas escolas) e discriminação (35% dos estudantes e 54% souberam de casos em suas escolas)”, foram representadas enquanto as mais vigentes e crescentes.

O “Boletim Técnico Escola que Protege: Dados sobre Violências nas Escolas” do Ministério da Educação, Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (2024) possui dados que reforçam as mesmas conclusões da APEOESP, quanto às violências que se manifestam no cotidiano e são percebidas pela comunidade escolar: no gráfico abaixo de autoria do Boletim, a percepção dos diretores escolares, coletados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) que se referem ao ano de 2021, apontam que 37,6% dos diretores informaram ao menos uma ocorrência de bullying no ano anterior, 2020, e 15,5% relataram a ocorrência de episódios de discriminação nas unidades escolares.

Fonte: Boletim Técnico Escola que Protege (2024)

No recorte acerca da percepção dos professores e alunos indica os seguintes aspectos. As situações mais notadas e relatadas por professores nas escolas que atuaram em 2021, foram: bullying (46%), discriminação (25,9%), depredação do patrimônio escolar (21,6%) e roubo ou furto (13,7%), estes dois últimos itens se referem ao entorno da escola. Por sua vez, 39,1% dos estudantes de 13 a 17 anos, relataram que se sentiram humilhados por provocações de colegas de escola, as motivações para a humilhação foram, 16,5% por causa da aparência do corpo, 10,9% pela aparência do rosto, 4,6% pela raça/cor e 2,5% pela orientação sexual e que podem ser constatadas no gráfico abaixo:

Fonte: Boletim Técnico Escola que Protege (2024)

Quer dizer, a população escolar nota, percebe e representa o aumento da escalada de agressões no ambiente escolar (e ao redor) que municípios, Estados e a Federação, igualmente, demonstravam através de pesquisas e relatórios: o gráfico do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) abaixo indica crescimento da violência entre períodos. Por exemplo, constatou que em 2013 houveram 3,7 mil vítimas de violência interpessoal e crescimento da curva em 13,11 mil, em 2023. Os números, apresentados abaixo, contemplam agressões contra estudantes, professores e outros membros da comunidade escolar atendidos em serviços públicos e privados de saúde.

Fonte: FAPESP, violências no ambiente escolar 2025

Os dados são de Christina Queiroz, doutora e jornalista em ciências humanas da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP), e são apresentados no artigo assinado “Escalada de agressões nas escolas do país acende alerta para a necessidade de criação de medidas capazes de enfrentar a violência e melhorar o ambiente em instituições de ensino” (2025) que alerta, também, a existência de 47 vítimas fatais desde 2001.

Crítica a violência instrumental contra professores

A Carta Capital publicou no dia 22 de outubro de 2025 o artigo Professor opressor’: Quem é o docente agredido pelo pai de uma aluna no DF, no qual retrata o matemático Emerson Teixeira como youtuber e bolsonarista investigado pela Corregedoria. A despeito dos vários comentários criticando ou defendendo o pai, Thiago Lênin Sousa não agrediu o professor devido a escolha política de Emerson Teixeira, mas por que ele, pai, longe de reivindicar por meio da revolta o direito a proteção e o respeito aos jovens nas unidades escolares, cometeu a infração, na medida em que se sente autorizado e mesmo justificado a cometê-la.

Sente-se autorizado e justificado, por qual razão? A ação deste pai não é isolada ela confirma uma regra, uma estrutura, um fenômeno social consolidado e verificável, mais uma vez, em dados como os apresentados por Christina Queiroz no artigo Ambiente Hostil disseminação de discursos de ódio agrava violência escolar, sofrimento emocional e ampliação do acesso a armas de fogo incentivam ataques extremos em instituições de ensino(2025), acerca da violência instrumental contra professores.

Queiroz utilizando em sua reportagem indicadores do Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), do governo federal constatou 43 ataques violentos contra a vida de professores e alunos, entre 2001 e 2024, resultando em 168 vítimas, das quais 47 morreram e 115 ficaram feridas, entre os mortos, seis eram os agressores. Armas de fogo foram utilizadas em 19 dos ataques e todos os autores, que na época do ataque tinham menos de 18 anos, eram homens. Este fenômeno de violência instrumental, efetiva, fatal no Brasil iniciou-se em 2011 com o ataque à escola em Realengo (RJ) seguido pela tragédia em 2019 na cidade de Suzano (SP).

Fonte: Boletim Técnico Escola que Protege (2024)

Esses ataques, representados no mapa acima de âmbito nacional, diferenciam-se das formas de violência escolar ‘comuns’ mencionadas até aqui neste texto. Conforme constata e argumenta o ‘Boletim Técnico Escola que Protege: Dados sobre Violências nas Escolas’ ataques fatais podem ser considerados intencionais e premeditados, direcionados ao ambiente e à comunidade escolar de modo geral, atentando contra a vida e a integridade física das pessoas, por meio do uso de armas de diversos tipos, critério, no qual, o ataque do pai Thiago Lênin Sousa contra o professor Emerson Teixeira, enquadra-se não no uso de armas quanto premeditado.

O mesmo boletim descreve o seguinte cronograma: no período de 2001 a 2018, ocorreram 10 ataques às escolas. Entre os anos de 2004 à 2007, 2009 a 2010, 2013 a 2016 não ocorreram ataques. No ano de 2020, também não houveram. Este ano foi excepcional, pois as escolas permaneceram fechadas em razão da pandemia Covid-19. A partir de 2019 é quando iniciam-se os episódios mais conhecidos de violência extrema. O quadro se acentua em 2022 e 2023, quando ocorreram 10 e 15 ataques, respectivamente. E em 2023 9 pessoas morreram e 29 ficaram feridas em ataques violentos. O gráfico abaixo complementa meus argumentos:

Fonte: Boletim Técnico Escola que Protege (2024)

Estes fatos individuais, corriqueiros e naturalizados; os dados, mapas, relatórios e as análises que os acompanham comprovam que a violência não é consequência da ‘tese’ de adoecimento psíquico de estudantes, dos familiares e/ou do maquiavelismo de políticos profissionais.

O uso da violência contra professores cujo consenso comum tem explicado enquanto consequência dos “discursos de ódio”, evidência o segundo aspecto constitutivo dela. No plano das relações interpessoais, reais, concretas, efetivas sociológicas “nas democracias, uma característica dos fenómenos racistas e xenófobos, que não dispõem senão de legitimidade, ao menos de legalidade no espaço público” ocorre por meio da violência. Em outras palavras, o ódio contra professores pode ter por álibi do ponto de vista do agressor a ideologia política de aniquilamento do inimigo, mas, também, a violência acontece por que ela encontra respaldo social que autoriza ataque e/ou atentado contra a vida.

O indivíduo que planeja e comete o ato, instrumentaliza a violência como meio de aniquilamento da alteridade, do outro, no caso do contexto escolar esse outro é o professor. Conforme o argumento de Michel Wieviorka (1997): “A violência contemporânea situa-se no cruzamento do social, do político e do cultural do qual ela exprime correntemente as transformações e a eventual desestruturação”.

Por desestruturação entenda-se empobrecimento de acordos coletivos, aprofundamento das desigualdades, falecimento do Estado, perda de direitos, da identidade de classe e pertencimento comunitário, enfim, privatização de múltiplas áreas da vida coletiva: “(…) quando a ordem se desfaz, a violência funciona sob uma forma hobbesiana, ela é o principal recurso nas lutas de todos contra todos. A instrumentalidade procede então não tanto no jogo de atores estratégicos envolvidos em conflitos, mas muito mais de desestruturação do sistema de ordem, e, portanto, de lógicas da crise levados ao extremo (Wieviorka, 1997)”.

Não será a privatização das unidades escolares e das distintas etapas do ensino que destruirá a educação, somente. Isso, não torna a crítica às privatizações, plataformização, terceirizações, e outros “ãos”, menos importantes. Igualmente, é fundamental a denúncia de ataques preconceituosos e criminosos de governadores, vereadores, senadores e candidatos a cargos públicos contra a pessoa do professor e ao profissional docente. O ponto é o aumento da percepção e a representação da violência com a correspondente existência de ofensas, ataques e mortes registrados nos anuários e nas análises humanizadas, demonstram que a violência moral e real contra professores (e, obviamente, alunos) intra escolar e no seu entorno irão dizimar os trabalhadores, elas irão pulverizar o sistema educativo.

Willians de Jesus Santos é professor e doutor em sociologia.

Fonte
Diplomatique

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