Patrulha moralista persegue colégio do Rio e boicota trabalho sobre identidade de gênero

Informação falsa, amplificada por Eduardo Bolsonaro, fez escola mudar tema de apresentação. Professora teve celular divulgado e chegou a receber ameaças

O áudio de uma mãe de um adolescente do Rio voltou a acionar a patrulha conservadora das redes sociais. O desabafo da mulher ao saber da temática de um exercício escolar do filho provocou uma onda de ameaças e impropérios virtuais e obrigou um grupo de alunos de um colégio particular a suspender uma atividade que pretendia abordar a identidade de gênero, um conceito que abrange a realidade de pessoas que não se identificam com o sexo que lhes foi designado ao nascer.

“Que absurdo o colégio do meu filho impondo ele apresentar a feira cultural de camisa rosa e batom na boca […] para ganhar dois pontos em cada matéria. Eu não aceito, eu não aceito, eu não aceito! […] Não vou deixar meu filho participar de uma nojeira dessas. Homem é homem. Mulher é mulher. Macho é macho. Fêmea é fêmea”, dizia a gravação, que viralizou graças ao compartilhamento do deputado Eduardo Bolsonaro sob a chamada: “Menino que usar batom ganhará nota em colégio particular do Rio”.

A atividade proposta pelos meninos do nono ano de uma das cinco unidades do Colégio Pinheiro Guimarães nada tinha a ver com serem obrigados a usar batom. Os alunos, na verdade, precisavam escolher um tema para apresentar na feira cultural da escola, um evento anual que se celebra há 23 anos. Cada um dos 45 estandes da feira seriam avaliados pelos professores. Uma das turmas optou pela “identidade de gênero” por ser um tema atual e polêmico, muitas vezes demonizado por alguns adultos que sequer sabem o que significa.

O boato foi alimentado até pelo ator Carlos Vereza, que usou uma versão ainda mais distorcida dos fatos –”o colégio obrigou o aluno a usar batom para ter a nota aumentada”– para pedir ao presidente Michel Temer medidas para “parar com a solerte ideologia de gênero”. “Tem professores tirando o artigo “o” e o artigo “a” e colocando “x”, estão brincando de Deus e mudando toda a biologia. Por mais que eles inventem, homem não tem útero. E mulher não tem pênis”, disse o ator de 78 anos após a reunião com o presidente. Em 2015, o Congresso conseguiu banir o termo “gênero” do Plano Nacional de Educação, por considerar que a palavra se referia a uma questão de ideologia.

A visão dos alunos do Pinheiro Guimarães não contempla professores brincando de Deus nem ideologia partidária. “Tem muito brasileiro que está preso ao passado e acha que ser transexual é uma doença”, explica Marina, de 17 anos, uma das integrantes do grupo. “A gente ia explicar o que significa se olhar no espelho e não se reconhecer. Queríamos falar de respeito e empatia. Muitas pessoas acham que seus filhos podem ser influenciados, que podem virar gays por falar sobre isso, mas não tem nada a ver”, diz Bruna, também de 17. “Era uma proposta importante porque dava visibilidade a essas pessoas que são tratadas como se não existissem, como se não fossem pessoas, e elas sofrem demais”, completa. Em um esforço simbólico para representar o tema, além da exposição verbal de pesquisas e a problemática da matéria, os meninos vestiriam uma camisa cor de rosa e as meninas uma camisa azul.

A denúncia da mãe induziu os fiscais dos bons costumes a pensar e divulgar que o evento da escola só exploraria essa temática e as reações não demoraram. O celular da professora responsável pela turma foi divulgado na Internet e a docente começou a receber ameaças. Os comentários nas redes instigavam também a ações violentas contra o colégio, os alunos e seu diretor. “Houve muita gente nas redes alertando que viria aqui. Havia pessoas marcando no Facebook vir aqui para destruir nosso trabalho”, lamenta João Pedro, de 14 anos, no Clube de Regatas do Flamengo, onde o evento foi celebrado este sábado.

“A gente não esperava essa reação. Sabíamos que era um tema difícil, mas não nessa proporção. Nossa diretora foi ameaçada de forma mais pessoal, eram ameaças violentas. Ficamos preocupados com ela e conosco. Mudar o tema foi nossa forma de proteção”, reclama Bruna. “É impressionante a censura que teve, quando a gente apenas estava falando de visibilidade de pessoas que não são tão bem vistas na sociedade”, afirma Aline, de 14 anos.

O diretor e fundador da escola 50 anos atrás, Armando Pinheiro Guimarães, lamentou a imposição do que ele chamou de “mordaça” nos seus estudantes. “O aluno tem direito a se expressar e dar sua opinião. Os temas desta feira são escolhidos por eles, e alguns desses temas são assuntos que a sociedade está discutindo”, afirma Pinheiro que critica que o tema tenha sido usado como instrumento político. “O jovem tem direito a opinar sobre o mundo dos adultos. Não se pode colocar uma mordaça”, disse. “Nossa filosofia é educar para a liberdade de expressão. Nós temos que apresentar o mundo para eles, para eles não serem vítimas de nada”.

Maria do Céu, avó de 72 anos de Aline, uma das adolescentes da turma, acompanhou a neta durante a montagem do estande. Ela não está muito familiarizada com termos como “transexual”, “transgênero”, “cisgênero” ou “pessoas não-binárias”, mas não gostou da campanha de desprestígio contra a escola. “Os meninos estão certos, o mundo está ainda com os olhos muito fechados, a pessoa precisa se abrir um pouco mais para que não haja tanto preconceito”, lamentou a senhora. “Essa pessoa [mãe] que se sentiu prejudicada poderia ir na escola e pedir uma explicação e o tema continuaria sendo o mesmo. Mas dessa forma prejudicou muito a escola”.

A escola Pinheiro Guimarães, com cerca de 2.200 alunos, é privada mas mantém umas mensalidades –de cerca de 700 reais– que buscam ser algo mais acessíveis que os colégios de elite da cidade. A instituição promove um método de ensino chamado de “aprender solidário”. As turmas denominam-se turma-equipes e nelas o aluno que tem mais facilidade na assimilação dos conteúdos, contribui para melhorar o desempenho daqueles que têm alguma dificuldade. “O que significa ser primeiro no vestibular? É apenas ter bons resultados?”, provoca o diretor. “Viver só faz diferença se você consegue fazer algo pela vida dos outros”.

No site da escola, há mais pistas de como o corpo docente educa seus alunos: “O pensamento primordial é que não existe educação sem cidadania, sem participação dos alunos nos processos sociais”. O reflexo desses ensinamentos podiam ser vistos nesta 23ª edição da Feira Cultural onde meninos do Fundamental à 3ª série do Ensino Médio montaram suas exposições sobre a favela da Rocinha, sobre como reciclar sentimentos, sobre os problemas da adolescência, até doação de sangue, ou a formação étnica do Brasil. As crianças também apresentaram trabalhos baseados em contos infantis, Harry Potter, a história do surf, filmes de terror ou os quadrinhos de Marvel.

Mas uma turma se viu obrigada a desistir de um debate sobre um tema sensível e atual por conta de ameaças violentas. Optaram, então, por explorar os logros científicos –e por enquanto inquestionáveis– de Isaac Newton. Do estande, penduravam algumas fitas de papel com as cores do arco-íris, símbolo do coletivo LGBT. O adereço, no entanto, não era mais do que a representação da teoria do cientista sobre a dispersão da luz branca ao incidir sobre um prisma de vidro. Após o veredito dos juízes da moral alheia, as crianças ficaram sem espaço nem coragem até para brincar com a ambiguidade.

El País

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