Pejotização: o trabalhador e a grande seca de precariedades

Que história é essa de “trabalhador empreendedor”? É a tal da pejotização — prática em que empresas contratam trabalhadores como pessoas jurídicas para exercer funções típicas de empregados. O tema está em debate no Supremo Tribunal Federal, sob o número 1389, cuja audiência pública será realizada na próxima segunda-feira (6). O relator do processo é o ministro Gilmar Mendes. Trata-se de uma discussão decisiva para o futuro da classe trabalhadora.

Essa pejotização flexibiliza as relações de trabalho e é a maior inimiga daqueles que sustentam este país: destila veneno de surucucu. Extermina direitos sem piedade, criando a ilusão de que o empregado virou patrão, quando, na verdade, se torna um prestador de serviço desvalorizado.

Segundo o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho: “A pejotização é ainda mais grave que a terceirização, pois prejudica não apenas os trabalhadores diretamente, mas todo o país, ao fragilizar o sistema de proteção social”.

Desde a reforma trabalhista de 2017, a situação só se agravou para a base da pirâmide. Em 2018, o STF considerou, por sete votos a quatro, lícita a terceirização entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas. Até então, só era permitido terceirizar atividades-meio, aquelas não ligadas à função principal da empresa.

Na terceirização, há uma empresa intermediária entre o contratante e o funcionário, que arca com os custos e garante os direitos do trabalhador terceirizado. Na pejotização, é o próprio trabalhador que se torna a empresa (PJ). Ele assume os custos do negócio e os encargos previdenciários, muitas vezes abrindo um MEI para conseguir emprego. Essa é alternativa imposta para assegurar a sobrevivência.

Assim, a carteira assinada vai ficando no passado, guardada na gaveta empoeirada das recordações. Nas entrevistas de emprego, a pergunta que ecoa é direta: “Você tem CNPJ?”.

Empresários fogem de compromissos, burlam a lei e respiram aliviados: menos impostos, menos obrigações. Mas, para o trabalhador, o regime de exploração se intensifica. Os PJs cumprindo horário, batendo ponto, feitos verdadeiros burros de carga — sem 13º, sem férias, sem descanso, sem previdência — em todos os segmentos.

É a velha lei do capital reafirmada: ricos cada vez mais ricos, trabalhadores cada vez mais vulneráveis.

Segundo dados do Ministério do Trabalho, cerca de 4,8 milhões de trabalhadores brasileiros demitidos do regime CLT entre 2022 e 2024 retornaram ao mercado como pessoas jurídicas. Entre 2020 e 2025, foram 1,2 milhão de ações trabalhistas discutindo o tema. Hoje, 26% dos autônomos já têm CNPJ.

A pejotização já invade as escolas. O número de profissionais da educação nessa condição cresce. No ensino superior, na EaD e na educação básica, professores estão sobrecarregados e com remunerações cada vez mais minguadas. A figura do docente e dos técnicos administrativos PJs se espalha como erva daninha.

O que está em jogo no STF

O caso em análise (ARE 1532603, Tema 1389) discute três pontos cruciais:

  1. A licitude da contratação via pessoa jurídica ou autônomo em lugar de vínculo CLT.
  2. A competência da Justiça do Trabalho para julgar fraudes nesses contratos.
  3. O ônus da prova: cabe ao trabalhador ou à empresa demonstrar fraude?

O processo nasceu de um recurso de um corretor de Curitiba contra decisão do TST que validou contrato com a Prudential Seguros, baseado em precedentes do STF (Tema 725 e ADPF 324).

Se a pejotização irrestrita for permitida, teremos a ascensão do patronato ao paraíso, enquanto o trabalhador será sacrificado no inferno da escassez, podendo morrer de sede na grande seca de direitos.

O Supremo, que deveria garantir justiça, veda os olhos. Há tendência de a pejotização se tornar o prato principal no banquete do capital. Apenas dois ministros — Flávio Dino e Edson Fachin — têm se posicionado contra esse cardápio indigesto.

Dino já alertou: “O Brasil caminha para se tornar uma nação de pejotizados”.

Ele considera a pejotização fraudulenta quando disfarça vínculos empregatícios reais, ameaçando não só os trabalhadores, mas também a arrecadação tributária.

Fachin, por sua vez, enfatiza que decisões anteriores do STF sobre terceirização não foram projetadas para legitimar fraudes por pejotização.

Já o relator, Gilmar Mendes, defende com veemência a flexibilização das relações de trabalho. Chegou a afirmar que a CLT se tornou uma “vaca sagrada” e que a Justiça do Trabalho insiste em preservar vínculos formais “ultrapassados”. Para ele, a resistência da Justiça do Trabalho prejudica a segurança jurídica e a expansão do ambiente de negócios.

Mas o que esperar de um relatório cujo ministro relator se porta mais como um agente do sistema capitalista do que como guardião da Constituição?

A grande seca de precariedades

“Trabalhador patrão, empreendedor” é cilada. A pejotização é a mesa posta do desmonte da Justiça do Trabalho, da CLT, da previdência pública. O cenário é grave e exige mobilização.

No dia 6 de outubro, acompanhe pela TV Justiça, Rádio Justiça e YouTube do STF essa discussão histórica.

A pejotização ameaça transformar o mundo do trabalho na maior seca social desde a Grande Seca de 1877, no período imperial, quando o sertão nordestino rachou de dor e milhões foram condenados à fome e à morte. Hoje, o que se seca são os direitos trabalhistas: o chão árido de um Brasil escravocrata, que assassina sonhos e sequestra o tempo de viver e ser feliz do cidadão.

O fio da história está traçado: ou se protege a dignidade humana de quem trabalha, ou se legitima a grande seca de precariedades.

Por Romênia Mariani

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