Política de morte adotada na pandemia dialoga com velhas propostas de Jair Bolsonaro

Pesquisadores explicam como o conceito de necropolítica se articula com o discurso e a prática do atual governo

“Uma das grandes causas da fome, da miséria e da violência é o crescimento populacional exagerado. (…) Não tem mais lugar para deitar na praia. É gente demais! Temos que colocar um ponto final nisso se quisermos produzir felicidade em nosso país.”

Esse é um fragmento do discurso do então deputado federal Jair Bolsonaro, em 5 de agosto de 2010, em defesa da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 584, apresentada por ele oito anos antes. A ideia era estimular a esterilização, pelo sistema público, de pessoas que não tinham condições de pagar por uma vasectomia ou laqueadura.

“[Devem ser esterilizadas] Para que não fiquem apenas, cada vez mais, colocando no mundo gente que, infelizmente, em sua grande maioria, não servirão para o futuro do nosso país”, argumentou Bolsonaro, em pronunciamento na Câmara Federal.

O capitão reformado submeteu, ao todo, três projetos para reduzir a idade mínima e facilitar mecanismos de esterilização no Brasil. Um deles está parado há 12 anos. Os outros dois foram arquivados.

O plano de frear o crescimento populacional no Brasil, defendido por Bolsonaro desde 1991, encontrou, dez anos depois, um aliado mais do que eficiente: o novo coronavírus.

Colapso nos sistemas funerários, falta de espaço nos cemitérios. Se não foi possível implementar um “controle rígido de natalidade”, como queria o então deputado, o país nunca registrou tantos óbitos como no ano em que a pandemia começou.

Julho de 2020 foi o pior mês da história, com 138,9 mil brasileiros mortos. No ano inteiro, foram 1,4 milhão de óbitos, um recorde.

Presidente eleito em 2018, Bolsonaro minimizou várias vezes o impacto negativo dessas mortes – “e daí, quer que eu faça o quê? Não sou coveiro”. Para completar, desestimulou medidas de controle e prevenção da covid-19, defendeu remédios que não funcionam e recusou ofertas de laboratórios que permitiriam vacinação em massa.

Em 10 de março de 2021, o Brasil tornou-se o epicentro mundial da doença, ultrapassando os Estados Unidos em número de óbitos por dia.

Necropolítica

Em ensaio publicado em 2003, o filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe cunhou o termo necropolítica, afirmando que “a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer.”

O prefixo necro tem origem grega e significa morte, ou morto.

Brasil de Fato ouviu pesquisadores que estudam a obra de Mbembe para saber em que medida o discurso e a prática de Bolsonaro podem ser interpretados à luz desse conceito.

“É evidente que tem essa relação. As principais ações dele, do ponto de vista político, impactam diretamente sobre a vida e a morte das pessoas”, afirma Erick Kayser, mestre e doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O pesquisador cita alguns exemplos, como a liberação do acesso a armas, a autorização para grileiros e fazendeiros usarem da força letal para proteger suas propriedades, a flexibilização das leis de trânsito e a aprovação recorde de agrotóxicos.

“Tudo isso na contramão da tendência mundial. Sem contar a política econômica”, ressalta. “São duas vertentes que se aliaram, em uma síntese um tanto quanto macabra: o militarismo e protofascismo do Bolsonaro, com os neoliberais representados pelo Paulo Guedes. Essa aliança criou um dos governos que mais se enquadram no conceito de necropolítica.”

Luciane de Paula, professora de Linguística da Universidade Estadual Paulista (Unesp), estuda necropolítica à luz dos conceitos do filósofo russo Mikhail Bakhtin. Para a pesquisadora, a ausência de políticas públicas para abreviar ou minimizar os efeitos da pandemia é uma estratégia.

“Se tem uma coisa que os eleitores de Bolsonaro não podem dizer é que foram enganados, que não sabiam qual era o projeto. Ele sempre deixou claro que é a favor da morte, da tortura, que queria a volta da ditadura”, reforça.

Ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, o então deputado homenageou o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Entre as vítimas dele, na ditadura civil-militar (1964-1985) estava justamente a ex-presidenta.

Achille Mbembe utilizou o arcabouço teórico do intelectual francês Michel Foucault e o desenvolveu a partir de um olhar negro, africano, a partir de sua vivência em um país subdesenvolvido.

“Necropolítica, segundo Mbembe, é a busca da soberania sem limites, em que a irracionalidade, os limites éticos, são colocados de lado, extrapolando as limitações do pacto social”, explica Dennis de Oliveira, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).

“Quando ele propõe esse conceito, está criticando Hegel [filósofo alemão idealista] e polemizando com os iluministas, que viam o Estado como síntese da realidade humana”, completa.

Controle sobre a vida e a morte

O ingresso de Bolsonaro na política, no final dos anos 1980, coincide com um momento de crise do capitalismo global, em que são recuperadas ideias de controle populacional inspiradas no economista britânico Thomas Malthus (1766-1934).

Oliveira, que é professor dos programas de pós-graduação na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e na Faculdade de Direito da mesma universidade, explica por que esse contexto é relevante.

“Nas crises cíclicas do capital, a solução encontrada pelo capitalismo é sempre a destruição das forças produtivas, para evitar uma revolução que mudasse as bases das relações de produção. Isso ocorre, por exemplo, nas guerras, e também transparece em políticas que levam à morte de pessoas”, analisa.

Dennis de Oliveira lembra que relatórios da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) propunham desde a década de 1970 o financiamento de políticas de controle populacional em países do “terceiro mundo”.

Embora aprecie a alcunha de “antissistema”, Bolsonaro ecoava já naquela época um discurso fabricado no centro do capitalismo global.

Descompasso temporário

O capitão reformado nunca escondeu sua admiração pelos EUA e suas políticas de intervenção na América Latina. Porém, houve um momento em que os discursos da Casa Branca e do então deputado estavam menos calibrados.

“Na década de 1990, a conjuntura internacional era outra. Havia uma política dos EUA, com Bill Clinton, de globalização, integração de mercado, liberdade de circulação de capitais. Esse novo liberalismo evocava uma agenda de direitos humanos, inclusive para justificar intervenções militares”, analisa Erick Kayser. “O apelo fascista, ao estilo do Bolsonaro, não tinha espaço entre os neoliberais.”

O Brasil vivia um período de consolidação de sua democracia, após a Constituição de 1988 e o impeachment de Fernando Collor. O espaço para uma retórica declaradamente autoritária era restrito, e parlamentares como Bolsonaro ficavam escanteados – embora tivessem seus eleitores cativos.

Foi naquele contexto, em 1999, que o capitão reformado concedeu a famosa entrevista à Bandeirantes em que defende a pena de morte, propõe uma “guerra civil” no país e e ataca o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) por sua política de privatizações.

“Através do voto, você não vai mudar nada neste país. Você só vai mudar, infelizmente, quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, fazendo um trabalho que o regime militar não fez. Matando 30 mil, e começando por FHC”, disse.

A aliança

O cenário muda, dentro e fora do país, a partir de 2013, em uma conjuntura que coincide com o aumento dos fluxos migratórios e de reflexos da crise econômica de 2008. O discurso supremacista da extrema direita e o da austeridade voltam a se aproximar, primeiro na Europa e depois nos EUA, culminando com a eleição de Donald Trump.

A ascensão do trumpismo, na interpretação de Kayser, legitimou o discurso e a candidatura presidencial de Bolsonaro junto ao mercado financeiro.

Paulo Guedes, ministro da Economia do governo Bolsonaro, é oriundo da Escola de Chicago, nos EUA, onde foi concebida a política econômica neoliberal da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), no Chile.

“O neoliberalismo, que tem como consequências a concentração brutal de riquezas, a construção de grandes oceanos de miserabilidade, com desregulação do trabalho e dos fluxos de capital, é um terreno propício para a busca da soberania sem qualquer limite. Ou seja, a necropolítica, conforme Achille Mbembe”, enfatiza Dennis de Oliveira.

Para o pesquisador, a necropolítica de Bolsonaro é uma forma de garantir a aplicação radical do projeto neoliberal representado por Guedes.

“O respeito aos direitos civis e aos direitos humanos, como limites éticos, fizeram parte em algum momento da construção do regime capitalista. Porém, o modelo atual impede e deixa de lado qualquer tipo de regulação ou pactuação social. O desrespeito a esses direitos é a tônica”, reforça.

Oliveira cita, por exemplo, a barganha de Guedes para condicionar a retomada do auxílio emergencial a uma reforma fiscal que compromete a saúde e a educação.

“Bolsonaro e Paulo Guedes se complementam na necropolítica. Separá-los, como a mídia hegemônica tenta fazer, como se o primeiro fosse irracional e o segundo racional, não é possível”, analisa.

A pandemia acelerou uma mudança de ciclo, a ponto de o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) reconhecer a importância do papel do Estado e do investimento público para proteger os cidadãos. Os Estados Unidos, mesmo antes da derrota de Trump para Joe Biden, já abriam os cofres para evitar o aumento da miséria.

Embore o discurso bolsonarista caminhe novamente para o isolacionismo, suas afinidades com a lógica neoliberal se mantém.

“É importante observar que não há uma contradição profunda entre esses dois lados”, pondera Erick Kayser. “O neoliberalismo, desde o Chile de Pinochet, sempre defendeu instrumentos de maior autonomia para o capital, se contrapondo à via democrática. Essa aliança entre Bolsonaro e Guedes é menos inusitada do que muitos acreditam.”

Classe e raça

“Maricas”, “mimimi”, “frescura”. Luciane de Paula, doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Unesp, diz que essas declarações de Bolsonaro sobre a covid-19 não são fortuitas ou irrelevantes. Elas sintetizam um projeto em que parte da população é vista como descartável e, portanto, sua morte é naturalizada.

“Quando o sujeito que sucumbe pela doença é visto como frágil ou inferior, é porque ela já não serve para nada. Se a peça da engrenagem está gasta, ou está podre, basta trocar por uma nova. Então, essas pessoas podem morrer”, compara.

“Essa é uma forma de necropolítica: utilizar a morte a seu favor, se desresponsabilizando disso”, analisa. “Um aliado melhor do que esse [coronavírus] ele não vai encontrar, jamais. E por que ele iria combater esse aliado? Se ele queria que ‘matassem 30 mil’, já passou disso há muito tempo, graças à pandemia”, completa a pesquisadora.

Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul (IFMS), Guilherme Tommaselli chama atenção que o conceito de necropolítica é formulado por um sujeito negro.

“Achille Mbembe utiliza uma matriz de pensamento branca como instrumento de análise dos problemas que lhe interessam por um prisma muito particular, que é o da categoria raça”, lembra.

Bolsonaro foi acusado de racismo várias vezes em sua trajetória – ao dizer que os filhos não namorariam mulheres negras porque “foram muito bem educados” e ao comparar quilombolas a animais, por exemplo. Este último caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que absolveu o capitão reformado.

Ainda como deputado, em 1992, Bolsonaro comemorou o massacre do Carandiru, em São Paulo (SP), em que 111 detentos foram assassinados pela polícia. “Deveriam ter matado mil”, disse à época. Cerca de 61,7% dos presos no Brasil são pretos ou pardos.

Tommaselli afirma que a postura do presidente sintetiza o chamado “racismo à brasileira”.

“Sempre que dizem que o sujeito é racista, ele responde que não é porque conhece um. É esse o papel que Hélio Negão [PSL] representa no governo hoje”, exemplifica, em referência ao deputado federal que costuma acompanhar as entrevistas e comitivas de Bolsonaro, sempre ao fundo, sem participar ativamente dos debates.

“O corte de classe, no Brasil, é racial. E os mais afetados na pandemia são a população pobre, marginal, que não tem o privilégio de ficar em casa, está sendo empurrada à contaminação, aglomerada no transporte público”, acrescenta Tommaselli.

A primeira morte registrada por covid no Rio de Janeiro ocorreu no Leblon, bairro de elite: uma empregada doméstica de 63 anos que se contaminou em contato com a patroa, que havia contraído o vírus em viagem à Itália.

“A violência policial contra a população negra já ocorria nos governos anteriores, do PSDB e do PT”, pondera o professor do IFMS. “Mas não se preocupar com essa população declaradamente e empurrá-la a essa situação [contaminação pela covid] é algo inédito. Fica muito claro: a vida do rico vale mais que a do pobre, e a do preto vale menos que a do branco.”

Uma pesquisa do Instituto Pólis, que analisou óbitos por covid até 31 de julho de 2020, mostrou que a taxa de mortalidade padronizada de pessoas brancas é de 115 óbitos a cada 100 mil habitantes, enquanto a de pessoas negras é de 172 a cada 100 mil.

O discurso classista do controle populacional

Os argumentos de Bolsonaro em defesa do controle de natalidade estão associados a um discurso que distingue as pessoas conforme classes sociais.

“Pobre só serve para votar”, disse o então deputado em 2013, criticando programas de distribuição de renda dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e defendendo, novamente, a esterilização.

No ano seguinte, pelas redes sociais, um de seus filhos, o vereador Carlos Bolsonaro, defendeu condicionar o pagamento do programa Bolsa Família a beneficiários que estivessem esterilizados.

Com cinco filhos ao todo, mais que o dobro da média nacional, Bolsonaro direciona o discurso do controle de natalidade à população trabalhadora.

As contradições não param por aí. Especialistas no tema apontam que a educação sexual é o caminho mais eficiente para prevenir estupro e gravidez indesejada. O atual governo fala até em abstinência como alternativa, mas não admite que crianças e adolescentes estudem sexualidade e gênero na escola.

Da mesma forma, Bolsonaro é contrário à descriminalização do aborto. Mais uma vez, o discurso classista e contra a emancipação das mulheres fala mais alto do que o direito à vida, segundo Dennis de Oliveira.

“A questão é a criminalização, a negação do direito à mulher, que pune e impõe risco de morte àquelas que não têm condições de pagar para fazer aborto em uma clínica particular”, ressalta.

Para Erick Kayser, doutorando em História pela UFRGS, o conjunto dos posicionamentos de Bolsonaro conduz à ideia de que a vida é descartável e pode ser submetida à lógica de mercado.

“Os mecanismos de controle sobre a natalidade, a defesa da pena de morte, tudo isso está associado a um desapreço pela vida, sustentado por um argumento de que os mais fortes estão aptos a seguir. É uma noção muito cara ao velho fascismo, ao velho nazismo, e vem desde o início do século 20”, explica.

De volta à pandemia

Eventuais oscilações no discurso de Bolsonaro em relação ao uso de máscaras, à vacinação e à gravidade da covid-19 só reforçam que há “um projeto deliberado de necropolítica”, analisa Kayser.

“Os recursos e avanços mostram que ele está ciente dos efeitos de suas medidas equivocadas sobre a vida e a morte das pessoas”, interpreta.

“A pandemia cai como uma bênção para ele, criando uma desculpa retórica para terceirizar as responsabilidades. Infelizmente, uma parte significativa do grande capital está de acordo e serve de sustentação ao governo, mostrando como essa política de morte tem respaldo de parte do setor privilegiado da sociedade.”

O pesquisador ressalta que a aposta deliberada na imunidade de rebanho, admitindo que milhares de pessoas seriam mortas até o país atingi-la, é uma expressão evidente da necropolítica. Ao evocar o “histórico de atleta”, o presidente também assume que pessoas com comorbidade ou com a saúde frágil têm chances reais de falecer – e a responsabilidade por esses óbitos não caberia ao Estado.

Guilherme Tommaselli conclui que a covid-19 contribui com a consolidação do projeto bolsonarista, em vários níveis.

“Em todo o mundo, a pandemia foi um ‘azar histórico’. Mas, para o governo Bolsonaro, podemos dizer que foi uma ‘sorte histórica’ – tanto quanto os governos petistas tiveram a sorte de contar com o boom das commodities para implementar suas políticas”, compara o professor do IFMS.

“A pandemia acelera a execução de vários projetos desse governo, e ainda impede que haja trabalho de base e um movimento popular, de rua, em oposição a tudo isso”, finaliza.

Edição: Vinícius Segalla

Brasil de Fato

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