Por que casos do novo coronavírus estão disparando no mundo inteiro
Pode ser tentador culpar as pessoas que não seguem as regras, mas os surtos recentes deixam claros os problemas estruturais e as falhas dos governos
No Reino Unido, o dia 4 de julho foi saudado como uma espécie de Dia da Independência Britânica, um “Super Sábado”: muitas das restrições ligadas à pandemia do novo coronavírus foram finalmente abolidas ou relaxadas.
O fim da “longa hibernação nacional”, disse o primeiro-ministro Boris Johnson, será marcado pela reabertura de bares, restaurantes, salões de beleza, hotéis, museus, teatros e outros locais. As medidas de distanciamento social estão sendo atenuadas, e os limites para aglomerações serão relaxados.
“Sinceramente, mal posso esperar para voltar a um pub ou a um restaurante”, disse Johnson em coletiva de imprensa. “Acho que as pessoas precisam sair, se divertir e redescobrir as coisas que não podem fazer há muito tempo.”
Mesmo que Johnson e outros líderes mundiais declarem vitória no combate ao coronavírus, a realidade é um pouco diferente. Recentemente, Alemanha, Coreia do Sul, Itália, China e Nova Zelândia registraram aumento de casos. Nos Estados Unidos, o número de novas infecções tem aumentado em muitos estados. No Reino Unido, o governo anunciou o primeiro bloqueio total localizado, isolando cerca de 330.000 pessoas da cidade de Leicester.
Isso sem falar da situação do Brasil, onde a pandemia está em um pico que se estende há mais de um mês. Já são mais de 1,8 milhão de casos no País e que 71 mil mortos.
“Todo mundo quer que isso acabe. Todo mundo quer retomar sua vida. Mas a dura realidade é que [a pandemia] não está nem perto de acabar”, disse nesta semana Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor da OMS (Organização Mundial da Saúde). “Embora muitos países tenham feito progresso no combate, na realidade a pandemia está se acelerando globalmente.”
É tentador culpar a irresponsabilidade individual pelas novas infecções. Desde o início da pandemia e das medidas de isolamento que vieram na sequência, as redes sociais estão cheias de posts de pessoas se encontrando com amigos, em bares, restaurantes e sem utilizar a máscara, desrespeitando o isolamento.
No Hemisfério Norte, depois de uma longa quarentena, o verão trouxe consigo uma sensação de libertação. No Reino Unido, milhares de pessoas lotaram as praias de Bournemouth na semana passada no dia mais quente do ano até aqui, forçando as autoridades a declarar um “grande incidente”. Em outros países europeus, milhares de jovens se reuniram em raves e festas ilegais.
O alívio das restrições, combinado com o calor, cria uma “tempestade perfeita” que pode facilmente sobrecarregar destinos turísticos populares e contribuir para a disseminação do coronavírus, dizem as autoridades do Reino Unido. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos, quando jovens ignoraram as recomendações oficiais e lotaram as festas da “semana do saco cheio”.
Agora, à medida que os países da Europa reabrem as fronteiras para os turistas, os visitantes estrangeiros podem provocar um aumento de infecções. Na Grécia, por exemplo, mais de um terço dos novos casos de coronavírus foi associado a visitantes de outros países. Na Espanha, Fernando Simón, diretor do Centro de Coordenação de Alertas e Emergências, afirmou que espera registrar um aumento nos casos, pois o turismo tem sido incentivado como forma de ajudar na recuperação da economia espanhola.
Muitos dos surtos recentes, entretanto, não têm nada a ver com turistas curtindo suas férias ou jovens fazendo festa.
Na Alemanha, duas cidades da Renânia do Norte-Vestfália, no oeste do país, foram forçadas a decretar lockdown quando mais de 1.500 funcionários de uma fábrica de processamento de carne foram diagnosticados com covid-19. Teme-se uma segunda onda de infecções no país.
Unidades de processamento de carne têm sido notórios centros de infecção por coronavírus em vários países, inclusive nos Estados Unidos. Os funcionários dessas empresas ― muitos dos quais são imigrantes que recebem salários baixíssimos e vivem em alojamentos apertados ― normalmente trabalham muito próximos uns dos outros, e os sistemas de ventilação que mantêm a temperatura adequada para o manuseio da carne criam as condições ideais para a disseminação do vírus.
O coronavírus atingiu particularmente as comunidades minoritárias e de baixa renda. Em Berlim, mais de 300 famílias foram colocadas em quarentena no bairro de Neukölln após a identificação de um surto em um complexo de apartamentos que abriga muitas famílias de imigrantes e baixa renda.
“As pessoas afetadas no momento são aquelas que não conseguem alugar um apartamento grande o suficiente para sua família”, disse à Deutsche Welle o subprefeito responsável por Neukölln, Martin Hikel.
Na Itália, o governo enviou soldados para ajudar a colocar em quarentena um complexo residencial na cidade de Mondragone, perto de Nápoles, onde há uma grande comunidade de búlgaros que trabalham na agricultura. Foram registrados 49 casos de covid-19 na cidade.
E a Bartolini, uma das principais empresas de entrega da Itália, foi recentemente forçada a fechar um armazém em Bolonha depois de identificar dezenas de funcionários com o coronavírus.
“O setor de logística continua altamente arriscado em termos de novos surtos: armazéns têm altos níveis de interação e aglomeração”, disse ao HuffPost Itália Fabrizio Pregliasco, virologista da Universidade de Milão.
A situação em Mondragone é semelhante à da Renânia do Norte-Vestfália, disse ele. “O risco do ambiente de trabalho se soma a um elemento social potencialmente explosivo: as condições de moradia dos trabalhadores, forçados a dormir em alojamentos lotados. Nesses dormitórios é impossível manter distanciamento social.”
“Temos de levar em conta que há parte da população que não possui todas as ferramentas para entender completamente a situação nem tem acesso a informações adequadas sobre as precauções a tomar”, acrescentou Pregliasco.
Em Leicester, houve relatos na imprensa de aglomerações do lado de fora de restaurantes, além de um surto localizado numa fábrica de alimentos. Mas as autoridades locais dizem que o aumento nos casos foi causado por diversos fatores.
“Não acho que exista uma única explicação”, disse à BBC Ivan Browne, diretor de saúde pública da cidade, “então precisamos realmente investigar para saber o que está acontecendo. Provavelmente é uma combinação de fatores.”
Em entrevista à BBC, o ministro da Saúde britânico, Matt Hancock, sugeriu que a pobreza e as moradias de maior densidade podem ter contribuído para o surto.
O apresentador Dan Walker mencionou o fato de que Leicester é mais etnicamente diversa que outras áreas. Algumas pessoas na comunidade talvez enfrentem barreiras linguísticas no acesso a informações de saúde pública.
“Esses fatores que você menciona parecem intuitivas. Mas ainda estamos tentando entender exatamente por que o surto foi tão ruim em Leicester”, respondeu Hancock.
Em geral, apesar das intensas críticas que aparecem nas redes sociais, as evidências científicas sugerem que a maioria das pessoas aderiu às restrições.
“Todos os dados do governo mostram adesão generalizada às recomendações de saúde pública”, disse ao The Guardian John Drury, professor da Universidade de Sussex e um dos principais psicólogos comportamentais.
A maioria dos exemplos de pessoas que não respeitam o distanciamento social não indica egoísmo, disse ele, mas sim as dificuldades que muitas delas enfrentam, além da orientação falha ou da falta de apoio governamental.
“Apesar das campanhas da mídia para chamar essas pessoas de ‘covidiotas’, as evidências sobre os motivos da não-adesão apontam para fatores práticos, não psicológicos”, escreveram Drury e seus colegas em um artigo recente no British Journal of Social Psychology.
“Muita gente não tinha alternativa e era obrigada a entrar no metrô lotado para ir ao trabalho. Elas precisavam de dinheiro para sobreviver, e os esquemas de apoio financeiro do governo eram insuficientes. Disseram às pessoas que elas poderiam sair para se exercitar, mas as áreas urbanas têm pouco espaço público. E alguns empregadores não fizeram as adaptações necessárias para garantir distanciamento social e condições higiênicas. Além disso, a população de baixa renda tende a viver em casas mais cheias.”
Agora, com o incentivo do premiê Johnson para que as pessoas saiam para comer, beber e se divertir ― e a decisão de iniciar o relaxamento num sábado parece deliberada ―, não é de se admirar que o público pareça estar adotando uma postura mais flexível em relação ao coronavírus.
Mas continua sendo responsabilidade do governo evitar uma segunda onda de infecções. Muitas autoridades de saúde expressam preocupação com os planos de reabertura no Reino Unido e nos Estados Unidos, pois ainda faltam sistemas robustos de testagem e rastreamento. Só com esses elementos é possível identificar e isolar novos surtos antes de eles se espalharem pela comunidade.
“Teste, rastreamento, isolamento e quarentena” continua sendo a mensagem central da OMS, disse Tedros.
“Agora, com 10 milhões de casos e meio milhão de mortes, a menos que ataquemos os problemas já identificados, a falta de unidade nacional, a falta de solidariedade global e o mundo polarizado que ajuda o vírus a se disseminar, o pior ainda está por vir. Sinto dizer isso, mas com esse tipo de ambiente e nessas condições, tememos o pior”, disse ele.
Com reportagem do HuffPost UK, HuffPost Itália e HuffPost Espanha.