Presidente do CNS: ”Dissemos que seria a emenda da morte. Agora está comprovado”
Para Conselho Nacional de Saúde, corte de R$20 bi em função da EC 95 do teto de gastos impacta seriamente enfrentamento ao Covid-19
BRASÍLIA – Num cenário de quatro óbitos pelo novo coronavírus confirmados no país, o governo federal anunciou, em entrevista coletiva nesta quarta-feira (18), a suspensão das metas fiscais para o ano de 2020 e a destinação de mais recursos para a área da saúde. De acordo com o ministro Luiz Henrique Mandetta, serão quase R$ 10 bilhões emergenciais para o enfrentamento à pandemia. O valor, relevante em tempos de austeridade fiscal, não alcança, entretanto, nem metade do que a Saúde já perdeu desde que entrou em vigor a Emenda Constitucional 95, que impôs um teto de gastos e congelou investimentos pelo Estado até 2036. De acordo com um estudo da Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do Conselho Nacional de Saúde, o prejuízo ao Sistema Único de Saúde (SUS) já ultrapassa os R$20 bilhões.
Em nota divulgada na última semana, o CNS afirma que “a autoproibição orçamentária que foi criada em 2016 é um suicídio econômico, político e social”. Em entrevista à CARTA MAIOR, o presidente do Conselho, Fernando Zasso Pigatto, foi mais duro e lembrou dos alertas feitos pelo CNS à época da votação da PEC proposta pelo governo Temer: “Quando falamos que esta seria a emenda constitucional da morte, agora está comprovado”. Antes do Covid-19, estudo realizado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) já apontava que as limitações no financiamento da Saúde no Brasil, impostas pela EC 95, poderiam resultar na perda de cerca de 20 mil vidas. A alcunha, portanto, não tem nada de exagero.
Esta semana, além do CNS, entidades de direitos humanos protocolaram no STF uma petição pela suspensão imediata da emenda constitucional. Cinco Ações Diretas de Inconstitucionalidade sobre o tema aguardam deliberação dos ministros. A relatoria de todas está com a ministra Rosa Weber. Uma delas (ADI 5715), movida pelo Partido dos Trabalhadores, recebeu no último dia 13 um pedido de liminar, para que o STF suspenda na EC 95 ao menos a parte que trata sobre o orçamento destinado à saúde, tentando reaver os R$20 bi para o setor combater o coronavírus.
O documento das entidades protocolado agora afirma que a pandemia pode levar o sistema de saúde e outras políticas sociais ao colapso, e que seus efeitos são de médio e longo prazo, ultrapassando 2020 e não podendo ser geridos por meio de créditos extraordinários do orçamento. Por isso, pede a suspensão total da emenda. A petição também alerta para o contexto explosivo de crescimento da miséria, destruição das políticas sociais e dos direitos trabalhistas em que o Covid-19 chega ao país.
Enquanto na Europa países como Espanha e França tem adotado pacotes emergenciais na casa dos 40 bilhões de euros (mais de 200 bilhões de reais), por aqui o Ministério da Economia segue inflexível em rever uma medida que não apenas dificulta o enfrentamento da situação atual como seguirá violando por mais 16 anos o direito à saúde dos brasileiros e brasileiras.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Fernando Zasso Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde, sobre este e outros desafios do momento.
CARTA MAIOR – O CNS colocou a reivindicação pela revogação da EC 95 no centro da luta contra o Covid-19. Por quê?
PIGATTO – Desde antes desta emenda ser aprovada, mostramos que haveria efeitos danosos ao retirar bilhões de reais da saúde pública do país. Nossos estudos mostram que, até hoje, foram cerca de R$ 22 bilhões a menos. Só no orçamento deste ano serão quase R$ 5 bilhões a menos. Agora não adianta ter medida paliativa. Temos que ter consciência de que esses bilhões já vão fazer falta para enfrentar o coronavírus, mas não só ele. Os problemas da saúde pública no Brasil vem de muito tempo. Tínhamos uma saúde que era subfinanciada, um SUS que sempre teve dificuldades. Só que a partir do momento em que a EC 95 passou a ser efetivada, o Sistema Único de Saúde entrou num processo de desfinanciamento. Por isso fomos contrários a essa emenda desde o início. O CNS é amicus curiae numa das ADIs que está no Supremo. Em 2018 fizemos uma marcha em Brasília e levamos caixas e caixas de assinaturas ao STF contra a emenda. Em fevereiro do ano passado pedimos ao presidente Dias Toffoli sua prioridade na pauta, mas até hoje isso não aconteceu. No Congresso Nacional, nos reunimos com a Frente Parlamentar em Defesa da Saúde, fomos à Comissão de Seguridade Social e Família e ouvimos de vários parlamentares, inclusive de deputados e senadores que haviam votado a favor da PEC, que já estavam se arrependendo, porque estavam vendo seus efeitos. Em vários municípios o índice de mortalidade infantil voltou a crescer.
CARTA MAIOR – Considerando a conjuntura atual, é possível reverter este quadro?
PIGATTO – Precisamos de um esforço de quem está no Parlamento e no Supremo Tribunal Federal. Não estamos falando só de enfrentar esse momento e esta pandemia. Trata-se do futuro da saúde pública, da vida da nossa população, de centenas de milhões de reais que estão sendo retirados do setor. Quando falamos que esta seria a EC da morte, isso agora está comprovado com esta pandemia. Se não tivéssemos retirado esses bilhões da saúde pública e, pelo contrário, tivéssemos investido mais, a forma de enfrentamento a este momento seria bem mais favorável para evitar o caos que está se instalando no país.
CARTA MAIOR – O governo afirma que a decretação do estado de calamidade pública, com a suspensão das metas fiscais, já será suficiente para levantar os recursos necessários. O senhor concorda?
PIGATTO – O cerne dessa questão é que quem aprovou a EC 95 não quer dar o braço a torcer que foi um erro. Qualquer outra medida, que seja temporária, não vai ter os efeitos de que precisamos, porque, passando essa situação, seguiremos tirando recursos da saúde, da educação, da área social. Nós precisamos de uma rede de proteção social no país. Precisamos que as pessoas que menos podem tenham o auxílio do Estado. Mas este é um governo que tirou milhões de pessoas do Bolsa Família, que retirou de milhões de pessoas o direito de se aposentar, que não quer garantir o Benefício de Proteção Continuada a quem mais precisa. Ou seja, um governo neoliberal, que atende exclusivamente aos interesses do capital, e que agora quer fazer uma gambiarra para enfrentar essa situação, para que depois tudo volte como antes. Temos que ter seriedade e responsabilidade. E para que isso seja realmente efetivo e duradouro, uma emenda que impôs congelamento de recursos não pode mais vigorar. Por isso, não vamos abrir mão dessa luta.
CARTA MAIOR – Está prevista para abril a Semana da Saúde, cujo mote é a defesa do SUS. O Ministro Mandetta tem falado do papel do Sistema Único de Saúde nesta conjuntura, mas ainda há setores favoráveis a privatizações na saúde. Como o CNS vê a questão?
PIGATTO – O Sistema Único de Saúde é referência para o mundo inteiro. Em visita ao Brasil na semana passada, a diretora da OPAS disse: “cuidem desse bem precioso que vocês tem”. Mas as pessoas que tomaram o poder no país tem, ao contrário, entregado uma grande fatia do que era público para a iniciativa privada. E agora, quando se precisa, dizem: “somente o SUS pode nos salvar e dar conta”. Houve casos, como no DF, da iniciativa privada enviar para o sistema público uma pessoa que estava com o coronavírus. O Secretário Executivo do Ministério da Saúde considerou a situação condenável, mas este é o mesmo Ministério que tem incentivado o sucateamento da atenção básica no país. A proliferação de OSs [Organizações Sociais], de municípios que entregaram e continuam querendo entregar a atenção básica para a iniciativa privada, é algo nunca visto antes dessa forma. E já temos várias denúncias de que, agora, essas OSs não estão dando conta. E aí quem tem que solucionar o problema é o poder público. Quem incentivou a privatização hoje tem que admitir que só um SUS forte pode enfrentar esse momento. Esperamos que isso sirva de lição para que quem só vê lucro na saúde se dê conta do irresponsável e criminoso erro que foi cometido. Só o SUS pode combater o coronavírus.
CARTA MAIOR – Que outras medidas o CNS tem recomendado ao Ministério da Saúde?
PIGATTO – As medidas que estão sendo tomadas pelo Ministério da Saúde são importantes, mas infelizmente temos um presidente da República que não segue as recomendações de seu próprio Ministério. Então temos uma irresponsabilidade instalada, da principal autoridade, que tem milhões de seguidores que repercutem suas atitudes. Em relação ao Ministério, uma das iniciativas urgentes é cancelar a Portaria 2979, instituída no ano passado, sem discussão no Conselho Nacional de Saúde, que corta recursos da atenção básica dos municípios, justamente onde 85% da demanda do Covid-19 terá que ser resolvida. Em vez de fazer isso, o Ministério determina que os municípios vão atrás da população para fazer cadastramento do Cartão SUS, para não perder recurso. Que a gente se esforce para atender coletivamente as pessoas, fortalecendo a atenção básica, e não imponha para os municípios esse tipo de necessidade. Agora não é hora de ninguém sair pra fazer Cartão SUS; agora temos que tratar de cuidar das pessoas.
CARTA MAIOR – Sobre atenção básica, dados do Ministério da Saúde mostram que, desde a saída dos cubanos do programa Mais Médicos, cerca de 3 milhões de pessoas por semestre ficaram sem assistência básica. Bolsonaro lançou o programa Médicos Pelo Brasil em contraponto, mas a iniciativa ainda não saiu do papel. E na semana passada o governo resolveu abrir dois editais emergenciais do Mais Médicos, com quase 6 mil vagas, por conta do novo coronavírus. O que isso sinaliza?
PIGATTO – O CNS tirou uma posição formal contra o fim do programa Mais Médicos. Nós avisamos. Tanto que agora o Ministério da Saúde, que não conseguiu implementar o outro programa, recorreu a ele para enfrentar a situação. Os próprios médicos cubanos estão sendo requisitados agora para fazer algo que eles já vinham fazendo e foram impedidos, por questões ideológicas, pelo governo federal. Então temos que exigir responsabilidade das autoridades governamentais e do Ministério.