Primeiro dia da audiência pública expõe diversidade de pensamentos sobre educação especial
No primeiro bloco de exposições, foram apontados aspectos positivos e negativos do decreto que instituiu a PNEE
O Supremo Tribunal Federal deu início, nesta segunda-feira (23), à audiência pública convocada pelo ministro Dias Toffoli para discutir a Política Nacional de Educação Especial Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (PNEE), instituída pelo Decreto 10.502/2020. O tema é tratado na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6590, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).
A norma questionada prevê a implementação, pela União, em colaboração com os estados, o Distrito Federal e os municípios, de programas e ações para a garantia dos direitos à educação e ao atendimento educacional especializado aos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. Na ADI, o PSB sustenta que, na prática, a PNEE discrimina e segrega os alunos com deficiência, ao incentivar a criação de escolas e classes especializadas e bilíngues de surdos.
No primeiro dia, os expositores, que participaram por meio de videoconferência, refletiram a diversidade de posicionamentos sobre a norma. Para representantes de órgãos do Poder Executivo, ela amplia direitos, respeita a liberdade de escolha e promove a diversidade pedagógica. Em outro sentido, representantes da sociedade civil e de órgãos voltados para os direitos das pessoas afetadas pelo decreto argumentaram, entre outros pontos, que a PNEE impede experiências importantes vividas no ambiente escolar inclusivo.
Liberdade de escolha
A secretária de Modalidades Especializadas de Educação do Ministério da Educação (MEC), Ilda Ribeiro Peliz, afirmou, em sua exposição, que o decreto representa avanço e direito de escolha entre a inclusão em classes comuns e o atendimento em classes especiais. Segundo ela, a norma está baseada no direito das pessoas com deficiência de escolherem a melhor alternativa para sua educação. Peliz afirmou que o texto que serviu de base para a PNEE 2020 começou a ser elaborado em 2017 e, após ser disponibilizado para consulta online, foram recebidas mais de 8,4 mil contribuições. Ela disse que as classes especiais são imprescindíveis para uma minoria, e esse modelo não pode ser confundido com discriminação ou segregação.
Ampliação de direitos
A diretora de Acessibilidade, Mobilidade, Inclusão e Apoio a Pessoas com Deficiência do MEC, Nídia Regina Limeira de Sá, afirmou que a PNEE 2020 amplia os direitos já conquistados por pessoas com deficiência. Segundo ela, a norma respeita a legislação, os alunos, a liberdade de escolha e promove a diversidade pedagógica e fortalece a educação inclusiva de modo geral, e não apenas no contexto de escolarização. No mesmo sentido, a assessora especial do MEC, Inez Augusto Borges, sustentou que não existe uma forma única de educar crianças e adolescentes com deficiência ou altas habilidades, e a PNEE busca evidências sobre a “verdadeira inclusão”, não importando se em escolas e classes comuns ou especiais.
Construção de autonomia
Priscilla Roberta Gaspar de Oliveira, secretária Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, afirmou que não há uma solução que contemple todas as pessoas com deficiências no Brasil. Ela considera que, da mesma forma que não existe um único formato de pessoas com deficiência, não há um único formato de educação para as crianças, jovens e adultos que necessitam de atenção especial. Para ela, a PNEE 2020 promove oportunidade de aprendizagem para todos ao longo da vida e possibilita a progressão gradativa entre a educação especial e a educação inclusiva para a construção de autonomia e habilidades especiais.
Modos alternativos
O coordenador-geral de Saúde da Pessoa com Deficiência, do Ministério da Saúde, Angelo Roberto Gonçalves, disse que os estudantes com deficiência necessitam de recursos e serviços que respeitem seus modos alternativos de se relacionar com o mundo e com os objetos da aprendizagem, e não cabe o seu enquadramento em modelos únicos. Ele destacou a necessidade de que os sistemas educacionais desenvolvam práticas que incluam os educandos atendidos em hospitais, casas de apoio e em domicílio, como previsto na PNEE 2020.
Imperfeições
De Tóquio, onde participa da abertura da Paralimpíada, Mizael Conrado Oliveira, representante do Comitê Brasileiro de Organizações Representativas das Pessoas com Deficiências (CRPD), afirmou que o Decreto 10.502/2020 tem imperfeições que podem gerar dúvidas em sua interpretação, inclusive com a possibilidade de entendimento de que há dois sistemas de educação (inclusiva e especial), o que considera inviável. Embora tenha estudado em escola especializada para cegos, ele destacou a importância da educação inclusiva. Lembrou, ainda, que a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Pessoas com Deficiência assegura a todos o direito de estudar em qualquer tipo de escola. Presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro, Oliveira é bicampeão olímpico de futebol de 5.
Revisão conceitual
A deputada Tereza Nelma (PSDB/AL), coordenadora da Frente Parlamentar do Congresso Nacional em Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, considera que o decreto precisa de revisão conceitual e metodológica, para inclusão das pessoas com deficiência intelectual e transtorno do espectro autista. Segundo ela, o número de matrículas de pessoas abrangidas nesses casos aumentou significativamente, mas é necessário dar a elas um atendimento inclusivo, equitativo e de qualidade, pois muitas têm chegado à idade adulta sem alfabetização. Ela destacou, ainda, a necessidade de capacitar professores alfabetizadores no uso de novas metodologias, para criar espaços educativos de boas práticas.
Censo Escolar
A defensora pública do Estado de São Paulo Renata Flores Tibyriçá apresentou dados do Censo Escolar que mostram aumento crescente na procura de alunos com deficiência por vagas em classe regular. Cerca de 93,3% deles estão matriculados em escolas de ensino regular, contra menos de 7% nas especiais. No entanto, na sua avaliação, a escalada de conflitos judiciais entre escolas e alunos mostra que as medidas de apoio, necessárias para a diminuição das barreiras ao aprendizado, não estão sendo devidamente ofertadas.
Apartheid
O representante da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, Cahuê Alonso Talarico, disse que o texto do decreto sinaliza que as pessoas com deficiência não estão aptas ao convívio social, criando um verdadeiro apartheid. “Não podemos permitir que as pessoas com deficiência sejam isoladas ou colocadas em ilhas”, afirmou. “Precisamos que a sociedade saiba conviver com pessoas diferentes, e isso passa, necessariamente, pelo convívio escolar”. Para Emerson Maia Damasceno, da Seccional do Ceará da OAB, o ordenamento jurídico brasileiro não tolera a exclusão e a segregação.
Justiça aos diferentes
Ricardo Furtado, da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), defendeu a necessidade das escolas de ensino regular inclusivo e das especiais para formação de seres humanos. A educação inclusiva, a seu ver, também se realiza em escolas de educação especial, sem ferir ou representar retrocesso. “Tentar tornar todos iguais por força da lei, pode não trazer o sentido de Justiça aos diferentes”, disse.
Fraude normativa
Segundo Heleno Manoel Gomes de Araújo Filho, representante da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), o decreto é um exemplo de “fraude normativa”. Para ele, a intenção notória do texto contraria todas as perspectivas de inclusão e de respeito à diversidade, de combate ao preconceito, de valorização da cidadania e da garantia de oportunidade às pessoas com deficiência, durante ou depois do ciclo escolar.
Mal-entendidos
O professor Romeu Kazumi Sassaki, da Associação Nacional de Educadores Inclusivos (ANEI Brasil), afirmou que a PNEE é instrumento de discriminação e ofensa à dignidade das pessoas com deficiência. Ele apontou uma série de equívocos no texto do decreto, que definiu como “um festival de mal-entendidos conceituais”.
Eliminação de obstáculos
A presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, deputada federal Dorinha Seabra Rezende (DEM/TO), afirmou que é necessário eliminar os obstáculos que impedem o pleno exercício dos direitos humanos. Segundo ela, as escolas regulares precisam ter estrutura física, acessibilidade, materiais e espaços adequados, além de profissionais qualificados, conforme asseguram a Lei das Diretrizes e Bases da Educação e a Constituição Federal. Para a deputada, os espaços especializados podem ajudar no processo de inclusão, na garantia da aprendizagem e no respeito à diversidade.
Reféns da diferença
A deputada federal Soraya Santos (PL-RJ) defendeu a constitucionalidade do decreto e disse que o ensino deficitário pode causar deficiências desastrosas. Segundo a parlamentar, a falta de interação escolar entre crianças surdas e outras crianças não representa uma educação efetiva, muito menos inclusiva. “Seria tornar as crianças reféns de sua própria diferença, e o que estamos discutindo é o direito à escola pública de inclusão”, salientou.
Sociabilidade menos discriminatória
No mesmo sentido, a representante do Conselho Federal de Psicologia, Carla Biancha Angelucci, ressaltou que a educação inclusiva, além de não atrapalhar a escolarização de pessoas sem deficiência, é fundamental para uma sociabilidade menos discriminatória e mais respeitosa. Segundo ela, a literatura especializada da área indica que não deve existir escolarização segregada, uma vez que não há estudo científico que comprove benefícios acadêmicos ou sociais de escolas especiais no Brasil. “Há benefícios para toda a comunidade escolar advindos dos processos inclusivos”, finalizou.
Retrocesso
Em nome da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Marília Siqueira da Costa salientou que o Decreto 10.502/2020 é um retrocesso em matéria de direitos humanos, ao afirmar que a escola regular deve estar pronta e estruturada para ser acessada por todos. De acordo com ela, a existência de escolas especializadas é contrária à “ideia de educação verdadeiramente inclusiva, que pressupõe toda uma mudança na estrutura do sistema educacional”. A procuradora destacou que a deficiência não pode ser motivo para a criação de um ensino especial, uma vez que todos possuem particularidades em seus processos de aprendizagem.
Ruptura de laços
Representando o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), os promotores de Justiça João Paulo Faustinoni e Silva e Sandra Lúcia Garcia Massud sustentaram que o decreto destoa das estratégias do Plano Nacional de Educação Especial, estimula a ruptura de laços e impede experiências importantes vividas no ambiente escolar regular. Segundo Faustinoni, cabe ao Estado mudar escolas, eliminar barreiras e não segregar pessoas ou grupos, pois a escola é um espaço coletivo. Sandra Massud também destacou que a existência de escolas especializadas acaba sendo uma desculpa para que escolas regulares privadas não se preparem para atender alunos com deficiência.
Omissão
A Associação Nacional do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (Ampid) foi representada por Joelson Dias, que ressaltou a omissão de políticas públicas adequadas para a efetivação dos direitos de pessoas com deficiência, como a priorização no orçamento e a valorização dos professores e demais agentes escolares. Para ele, a inclusão das pessoas com deficiência decorre dos compromissos constitucionais com a cidadania, a igualdade, a dignidade humana, o pluralismo e a prevalência dos direitos humanos, bem como de tratados internacionais assinados pelo Brasil.
Insegurança
O expositor do Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores (Gaets), Thiago Piloni, ressaltou que as adaptações das escolas exigem investimento, e a PNEE surge em momento de sérias restrições orçamentárias para políticas públicas, principalmente na área da educação. De acordo com ele, há uma postura de direcionamento das famílias ao modelo que o governo federal pretende adotar. “A proposta de escolas regulares inclusivas é, a todo momento, criticada, esvaziada e tida como utópica, enquanto as escolas especiais são enaltecidas como espaços que melhor atenderiam aos estudantes com deficiência. Essa postura tem gerado grande insegurança nas famílias”, afirmou.
Fusão progressiva
Em nome da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DP-RJ), o defensor Pedro González afirmou que o Decreto 10.502/2020 é inconstitucional. Ele destacou que a existência de dois sistemas de educação contraria a Convenção da ONU sobre Pessoas com Deficiência, que prevê a fusão progressiva dos dois modelos. Também pela DP-RJ, o defensor Rodrigo Azambuja disse que os gastos com educação especial não correspondem, percentualmente, à quantidade de matrículas em relação aos alunos da educação regular. Segundo ele, o modelo inclusivo, desde que com mais financiamento, pode superar essa limitação.
Cidadão pleno
O diretor-geral do Instituto Benjamim Constant, João Ricardo Melo Figueiredo, disse que a falta de escolas especializadas para cegos está fazendo com que alunos com deficiência visual estejam sendo aprovados automaticamente, sem que desenvolvam a capacidade de leitura e escrita, por falta de educação especial. Segundo ele, a escola especializada dá condições para que o deficiente seja um cidadão pleno, com autonomia e espaço no mundo do trabalho, sem a necessidade de tutela do Estado.