Privatização do satélite da Telebrás
Depois da mudança do governo como consequência do impeachment, também a Telebrás teve sua gerência afastada, e o projeto do satélite SGDC (Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas), cujo projeto inicial visava prestar serviço de banda larga em localidades ainda não atendidas, escolas rurais, postos de saúde, de fronteira, interconexão de órgãos de governo, que estava sob sua responsabilidade de implantação, foi completamente desfigurado. A prioridade do atendimento social foi substituída por uma privatização da capacidade do satélite para grandes corporações, que sem grandes compromissos explícitos de atendimento, tarifas e regionalização, poderiam comercializar ou revender esta capacidade em todo o território nacional. Ou seja, sem nenhuma discussão importante com a sociedade, um governo impopular e ilegítimo muda totalmente a essência de um projeto que a irá impactar por décadas.
Nesta mudança acobertou-se até uma fraude pela inexigibilidade de realização de licitação para escolha de qual entidade iria ser responsável pela implantação do satélite, no caso a Telebrás, e por um pagamento apenas simbólico da posição orbital, já que na origem do projeto este posicionamento se fundamentava na alegação procedente da ênfase no atendimento social, o que na verdade não ocorre atualmente, tendo em vista que o projeto virou meramente uma fonte arrecadatória e um repasse de recursos públicos para a iniciativa privada. Estas inconsistências geraram inclusive uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, movido contra a Telebrás, ajuizada no STF e que se encontra em andamento.
Neste processo de tentar justificar as mudanças, em recente Audiência Pública do Senado Federal, entre as Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional e de Ciência Tecnologia Inovação Comunicação e Informática, o representante da Telebrás afirmou, que “está apenas alugando as sobras do satélite”. Afirmação altamente descabida, pois, significaria dizer que o satélite foi concebido sem ter uma demanda apurada. Não levaria ainda em conta as sessenta mil escolas rurais não atendidas, cerca de dois mil e trezentos municípios sem infraestrutura de banda larga. Ignoraria trinta milhões de domicílios não atendidos e o abismo digital entre as diversas regiões do país. Em última análise representaria uma omissão do Estado em estabelecer políticas públicas de inclusão digital consistentes.
Na oportunidade, os senadores presentes perceberam os posicionamentos antagônicos defendidos pela Telebrás e pelo Clube de Engenharia, que em sua apresentação evidenciou que mesmo que se utilizasse toda a capacidade do satélite haveria, na verdade, a necessidade de uma constelação de satélites para um atendimento adequado da demanda. No sentido de dirimir as dúvidas dessas posições diferentes, ficou registrado e encaminhada a necessidade de uma reunião entre o Senado, a Telebrás e o Clube de Engenharia, que, no entanto, inexplicavelmente, até o momento, não se realizou.
Um outro ponto bastante sensível na discussão diz respeito à segurança da informação e à soberania nacional. Temos atualmente prestando serviços sobre o território nacional cerca de 50 satélites, todos pertencentes a entidades estrangeiras. Nenhum genuinamente nacional. Desde as evidências de espionagem reveladas por Edward Snowden, que atingiram especialmente o Brasil, colocou-se a necessidade de que as forças armadas e órgãos de governo fossem dotados de recursos de rede que pudessem conferir maior confidencialidade e segurança às nossas comunicações. Ora, com a venda da capacidade do satélite, continuaríamos a ter nossas comunicações ameaçadas.
Caso o atual governo e a Telebrás insistam em manter as condições estabelecidas no edital de licitação de venda das capacidades do satélite com a perda do sentido social do projeto, ao invés de implementarem políticas públicas de banda larga diretamente sob responsabilidade do Estado, para um serviço essencial ao exercício da cidadania, vislumbra-se que o déficit de atendimento do serviço será mantido, com uma tendência ao aumento das tarifas, um aumento da concentração na competição, continuidade na dificuldade da entrada dos provedores de internet na cadeia produtiva e finalmente uma maior vulnerabilidade à segurança e soberania nacionais.
Portanto, aproveitando que não houve propostas para aquisição das capacidades no leilão do SGDC realizado em 31/10, acreditamos ser essencial uma maior discussão com a sociedade para amadurecimento do projeto, de forma a torná-lo instrumento que efetivamente venha para diminuir as diferenças regionais e a promover a inclusão digital em nosso país.
Marcio Patusco é diretor do Clube de Engenharia e chefe da Divisão Técnica Especializada de Eletrônica e Tecnologia da Informação. Atualmente, é presidente do Conselho Consultivo da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e integrante do Conselho Deliberativo do FNDC.