Privatização e conservadorismo são cerne do novo PNLD de Temer
Depois de anunciar o pedido de empréstimo ao Banco Mundial para financiar sua reforma do ensino médio, o governo Temer desferiu mais um golpe contra a educação pública e escancarou ainda mais sua política privatista. Na última quarta-feira (19), foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto 9099, que refunda o Programa Nacional de Livro Didático (PNLD), conhecido como o maior programa público de distribuição de livros do mundo. Além de o renomear como Programa Nacional do Livro e do Material Didático, que passa a ser destinado à compra de obras didáticas, pedagógicas e literárias não só para as escolas das redes públicas (federal, estadual e municipal), mas também para as instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o Poder Público, haverá uma mudança significativa no processo avaliativo das obras, a fim de garantir maior controle do Ministério da Educação.
Desde o governo Itamar Franco — portanto, uma administração do PMDB —, a avaliação era feita por professores das universidades públicas, com a participação de docentes da educação básica pública. Agora, no entanto, a comissão técnica será formada por especialistas indicados por entidades como Secretaria de Educação Básica do MEC, Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime); União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme), Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação (FNCEE), Conselho Nacional de Educação (CNE), Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) e entidades da sociedade civil escolhidas pelo ministério para elaboração das listas tríplices do CNE.
“O PNLD distribui livros para toda a população. Livros de todas as áreas, de todos os níveis de escolarização. É Uma das políticas mais antigas da área de educação, que data do período Vargas. Mas, até os anos 1980, fazia-se a compra de livros, mas sem que um controle de qualidade sobre o que estava sendo distribuído”, contextualiza a historiadora Sonia Miranda, professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “No governo Itamar Franco, o ministro Murílio Hingel expandiu o programa, criando um mecanismo de avaliação que logo deu sinais de sua importância, porque, até então, as obras didáticas veiculavam todo tipo de estereótipo, de erro conceitual, atendendo aos interesses desse que é um dos maiores mercados do mundo: o editorial. O governo Itamar Franco instituiu uma prática de avaliação e de controle de qualidade que foi sendo aprofundada nos governos FHC, Lula e Dilma. Um mecanismo visível e democrático envolvendo as universidades, instituições que são governo, mas que também são massa crítica e que, portanto, envolvem um grau de independência extremamente importante para o processo”, opina.
Acontece que o processo de financeirização que afeta a educação — denunciado pela Contee — também atinge o mercado editorial. Ao longo dos últimos anos diversas fusões provocaram o desaparecimento de um sem número de pequenas editoras, ao passo que há uma concentração cada vez maior nas mãos no capital estrangeiro — no caso, sobretudo, o capital espanhol do grupo Santillana (que já foi, inclusive, oferecido à Kroton, segundo noticiado pelo jornal Valor Econômico no ano passado). E é esse capital, principalmente que começou a fazer pressão para conter as medidas de avaliação.
Sonia Miranda aponta ainda outras duas questões: “Uma face disso está ligada ainda a setores que, ao defender a não avaliação, emergem com um novo produto, que são as apostilas, feitas por instituições privadas e, muitas vezes, adotadas por estados e prefeituras sem nenhuma forma de licitação. Materiais que burlam completamente as forma de controle do PNLD”, enfatiza. Esse ponto, aliás, também já foi apontado pela Contee como um dos braços com os quais a privatização tem avançado sobre as escolas públicas de educação básica.
A outra questão levantada pela historiadora é a expansão do conservadorismo, seja por meio de movimentos como o Escola Sem Partido seja pelo crescimento da bancada evangélica. “Tudo isso junto fez com que a gente fosse assistindo a crescentes pressões para a eliminação desse lugar avaliativo. O decreto é muito ardiloso, porque ele retira as universidades do processo e vincula a prática da avaliação a equipes do MEC com instituições de representação política”, considera. “Não tem mais a instância crítica exercida pelas universidades, que, nos últimos tempos, desceu seu olhar sobre a expansão da bancada evangélica e sua tentativa de fazer valer para a rede pública coleções com caráter criacionista ou expulsar tudo o que envolve o tratamento de gênero e diversidade, por exemplo. Com o decreto, o MEC assume a possibilidade de uma nova mesa censória.”
Por Táscia Souza