Professora trans ganha processo contra colégio por demissão considerada discriminatória
“Passei por muita coisa. Passei fome, passei frio e fui despejada. Sofri muito. Mas é preciso acreditar. A gente vai tomar muita porrada na vida, mas uma hora vem a vitória”, declarou a professora Luiza Coppieters, 39 anos, para os alunos do cursinho popular da USP Leste minutos depois de receber a notícia de que havia ganhado o processo contra o Colégio Anglo Leonardo da Vinci. Em 2015, a Ponte denunciou o caso com exclusividade.
A juíza do trabalho Daiana Monteiro Santos concluiu que ficou comprovado que a demissão de Luiza foi motivada por discriminação pelo fato de ela ser trans, exigiu a reintegração imediata dela ao quadro de professores e que a instituição educacional pague a ela uma indenização de 30 mil reais por danos morais.
Na decisão, Daiana usa como argumentação o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1°, III da Constituição, combinado com o princípio da igualdade, do artigo 5° da Constituição da República. “A igualdade para ser atendida em sua plenitude e de forma justa deve considerar as diferenças submetendo-as, se necessário, a tratamento diferenciado, o que se traduz na igualdade material definida por Aristóteles, 300 anos antes de Cristo, de forma que ‘devemos tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de suas desigualdades’”, escreveu na sentença.
Luiza conta que os últimos três anos foram intensos. Ela viu tudo desmoronar quando foi demitida do colégio onde trabalhou por cinco anos ensinando filosofia. Além da demissão, a professora precisou lidar com uma depressão, duas tentativas de suicídio somadas a um quadro de síndrome do pânico e crises de ansiedade.
Apesar de estar no momento de maior fragilidade emocional, viu muitas portas serem abertas após a demissão do Anglo, principalmente do mundo acadêmico por meio das inúmeras palestras em que foi convidada. “O reconhecimento eu nunca tive em sala de aula, tive pela sociedade. Agora é um momento de tranquilidade. É uma página virada e amassada, estou em outros capítulos da minha vida. Estou olhando muito lá na frente, depois de três anos sem conseguir enxergar o futuro”, desabafou a professora em entrevista à Ponte.
Agora, Luiza precisa esperar o colégio se manifestar em um prazo de até cinco dias úteis a contar da data de publicação do processo, que aconteceu no dia 6/9. Para garantir um retorno sem represálias, a juíza incluiu no processo que, caso haja qualquer forma de discriminação, a reintegração será substituída por pagamento em dobro do salário. “É uma forma de recebê-la bem, publicamente eles têm que ter respeito e manter uma conduta de respeito em relação ao trabalho dela ali dentro. Isso foi bem importante porque garante que ela possa voltar ao trabalho de uma forma saudável”, conta Marina Tambelli, advogada de Luiza.
Além dos dois processos trabalhistas contra o Anglo, um de indenização por danos morais e um pedido de reintegração por dispensa discriminatória, outras irregularidades foram denunciadas no processo. Neste trecho, a magistrada deixa claro o entendimento de que Luiza foi penalizada quando tornou pública a transição de gênero. “Atuaram de forma discriminatória com a demandante, pois quando souberam de sua decisão, a proibiram de tratar do assunto com os alunos, sob a alegação que a escola tomaria tal providência, o que nunca ocorreu. Ademais, a reclamante foi questionada acerca de tal vedação por e-mail, porém diante da inércia das reclamadas em esclarecer tal mudança aos alunos, evidentemente que a autora seria por eles indagada”, escreve.
“Ela trabalhou dois anos sem registro, de 2009 a 2011, o que impactou no recolhimento de direitos trabalhistas previstos, como INSS e FGTS. O registro só aconteceu em março de 2011. Eles também não pagavam o salário corretamente, o que estava no holerite não era o que ela recebia, haviam pagamentos por fora. Sem contar que ela recebia 9 horas-aula e trabalhava 26. Além de ter outras coisas da Convenção Coletiva de Trabalho da Educação Básica que não eram pagas, como o adicional de 25% por dar aula em outro município e a PLR [Participação nos Lucros ou Resultados]”, explica Tambelli.
Coppieters começou o tratamento hormonal em 2012 e avisou a coordenação do colégio dois anos depois, em março de 2014. Na época, foi acolhida pelos colegas de trabalho e a direção informou que cuidaria dos próximos passos. O que não ocorreu. Entre as provas documentais do processo há um e-mail da professora exigindo um posicionamento da escola. Luiza não conseguia mais mentir sobre quem era. Precisava contar aos alunos a verdade. Em novembro, depois de trocar o nome nas redes sociais, passou a trabalhar com roupas femininas e assumiu a sua identidade como mulher transexual.
Aos poucos, percebeu que as promessas do colégio haviam sido em vão. Em janeiro de 2015, viu suas aulas serem reduzidas drasticamente e seus grupos de estudos, cortados. Seu salário, que era de 6 mil reais, passou para mil reais. Foi nesse período que a sua depressão ficou mais forte e ela precisou ser afastada diversas vezes para cuidar da saúde. Todas, relembra Marina, por meio de atestados médicos. Na ocasião, Luiza entendeu que a retirada das turmas era para que outros novos alunos não a conhecessem.
“A demissão acontece em um momento que ela está bastante depressiva, com uma série de atestados e não se pode mandar embora um funcionário doente, o procedimento é afastamento pelo INSS. Então essa demissão é ilegal tanto do ponto de vista discriminatório quanto pelo fato dela estar doente, ela não podia ter sido demitida por conta dessas duas razões. É perceptível uma cronologia de reação da escola: a partir do momento que ela mostra a questão de gênero, começa a ser bastante reprimida”, explica Marina.
O processo comprovou que a demissão não foi baseada na queda de rendimento de Luiza, como alegou o Colégio Anglo. “Ficou comprovado no processo, com prova testemunhal e documental, que a ausência nessa reunião não foi só dela, uma vez que não era uma reunião obrigatória, muitos professores faltaram e não tiveram punição. A juíza deixa muito claro que ela estava em um momento de ascensão na escola, com a aquisição de mais aulas, então o argumento do rendimento escolar caiu por terra. Tanto que ela foi escolhida como paraninfa, representante na formatura escolhida pelos alunos”, explica a advogada.
Determinação inédita
Para reforçar o processo, a juíza Daiana Monteiro Santos usou a Súmula 443 do Tribunal Superior do Trabalho para determinar que a demissão foi discriminatória. Originalmente, a súmula é usada para proteger trabalhadores com doenças graves, como câncer e HIV, garantindo que eles tenham estabilidade trabalhista. Confira o trecho: “Afirma a reclamante ter sofrido dispensa discriminatória em razão de sua mudança de gênero na constância do contrato de trabalho com as reclamadas, sendo que o processo de transição com tratamento hormonal iniciou-se em 2012. Alega ter informado a Coordenação Pedagógica sobre tal decisão em março de 2014 e foi muito bem acolhida pelos colegas. Em uma reunião ocorrida em julho de 2014, lhe foi dito pelos Coordenadores que os professores estavam proibidos de debater e conversar sobre questões de gênero dentro e fora da sala de aula e seu relacionamento com a direção se tornou mais difícil, sob maior pressão e rigor excessivo. Em outubro do mesmo ano, a depoente mudou seu gênero na rede social e quando os alunos descobriram, foi muito bem acolhida e apoiada. A partir de novembro de 2014 passou a trabalhar vestida de mulher, pois contava com o apoio dos professores e alunos”.
No caso de Luiza, a juíza defende no processo que “diante do quadro cultural brasileiro, no qual ainda vemos numerosos atos de violência e preconceito contra homossexuais e transexuais, entendo ser plenamente aplicável seu entendimento jurisprudencial em relação a ela”.
Para Marina, o uso analógico dessa súmula abre um importante precedente na justiça trabalhista visando a inclusão de pessoas LGBTs em situações de descriminação em locais de trabalho. “Ao aplicar analogicamente da Súmula 443, ela mostra que a dispensa foi discriminatória por conta da transição de gênero. Essa súmula visa a proteção de pessoas em vulnerabilidade ou em uma situação de estigma relacionado às minorias, então para ela não ficar à mercê, a súmula garante que ela tem estabilidade no emprego”, explica Tambelli.
A advogada conta que a questão discriminatória para pessoas trans e travestis ainda é uma questão nova no âmbito trabalhista. “Por conta disso, a gente teve muito receio durante o processo, o mais importante era provar como se deu a comunicação dela com a escola, a proibição dela falar sobre o assunto com alunos e professores. E tudo isso foi comprovado por prova testemunhal e documental. Não é um processo simples, por isso é uma grande vitória para o movimento trans e LGBT no geral, por permitir uma proteção dessa ao trabalhador enquanto população trans. A sociedade está mudando e o Judiciário tem que acompanhar essa mudança, são demandas antigas”, reforça Marina.
Para Coppieters, a sua vitória é também uma vitória do movimento LGBT, principalmente em relação empregabilidade trans que ainda é muito baixa: de acordo com a ANTRA, 90% das pessoas trans ainda recorrem à prostituição e ao mercado informal para sobreviver. A Ponte mostrou no Especial Trans, publicado em janeiro, a dificuldade de inclusão de pessoas trans e travestis no mercado formal de trabalho.
“Espero que as pessoas vejam o peso desse processo, o significado disso, dessa sentença dentro do judiciário que a gente tem, no momento em que estamos vivendo. Essa vitória no âmbito trabalhista é um exemplo também no campo jurídico, vai servir de respaldo para muitas pessoas trans estarem na luta. As questões psíquicas dificultam a vida de uma pessoa trans no mercado de trabalho, mas agora a gente tem um respaldo”, comemora a professora.
Luiza afirma que a sensação agora é de alma lavada. “Estou muito feliz com isso, porque passei esses três anos com mágoa e rancor. Mas agora a sensação é de virar a página. Eu voltei a ler, estou lendo dois livros por dia, depois de ficar quase três anos sem conseguir ler. Isso me criava uma angústia, falar em universidades, com doutores, sem ao menos conseguir ler. Ao mesmo tempo tive um baita de um respaldo, isso é muito gratificante. Antes, eu não tinha esse reconhecimento no colégio, um professor de química e física lá tinha um salário muito mais alto do que o meu por serem valorizados no vestibular. É interessante isso, quem vai ganhar com o meu retorno? Quem vai ser a professora de renome que vai estar lá?”, salienta.
Além disso, a sentença cita decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) em reconhecer a alteração do nome social sem cirurgia e a convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho) número 111 que trata sobre discriminação em matéria de emprego e profissão: “Toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão”.
“O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias considerou que as pessoas transgênero que sejam vítimas de discriminação podem ser protegidas pela proibição de discriminação em razão do sexo. O E. STF já reconheceu a possibilidade de alteração de nome e gênero no assento de registro civil independentemente de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo (ADI 4275)”, escreve a juíza Daiana Monteiro Santos.
A relação com os alunos
A espera por justiça fez Luiza acreditar que nunca mais pisaria em uma sala de aula. “Eles roubaram a minha profissão” era uma frase que constantemente passava pela sua cabeça nesses anos. Ela relembra como era a relação com os alunos, que a acolheram tão bem quando ela deu a notícia da transição: “Na verdade, o tio Luiz não é tio Luiz, é tia Luiza. Sou uma mulher transexual”.
“Eu tinha um perfil, Luiza Seixas, e coloquei uma foto minha de apoio a uma candidata a presidente. Aí, numa sexta, um aluno pediu pra adicionar e eu aceitei. Quando entrei de novo no domingo tinha várias solicitações de amizade e eu aceitei todas. Muitas pessoas acharam que era um protesto em defesa dos direitos das mulheres”, relembra Luiza.
“Na segunda, cheguei para dar aula pra primeira turma e fiz a pergunta de sempre ‘Jovens, vocês tem algo digno de nota para compartilhar com os seus pares e comigo?’ e nada. Perguntei novamente e nada. Na terceira aula, um aluno perguntou ‘professor, o que que é aquele seu Facebook?’. E eu perguntei se ele queria mesmo saber. Foi quando eu contei a eles. Aí começaram a fazer perguntas, foi um chororô”, conta a professora.
Durante uma semana, cada turma era uma nova emoção. Todos reagiram muito bem a novidade. Foram os alunos que pressionaram a escola a mudar o nome da professora no quadro de funcionários, por meio de um protesto.
Vida pública
Se tornar uma pessoa pública em um momento em que a vida pessoal está arrasada. Esse foi o maior desafio de Luiza nos últimos anos. Ao mesmo tempo que ter a vida pública a ajudou a permanecer de pé, criou muitos conflitos internos por conta das crises de ansiedade que a impediram de participar de alguns eventos.
“Eu sempre esperei o pior e não aconteceu porque a sociedade me aceitou. Foi muito difícil conciliar vida pública com a privada. Cada atividade que eu participei nos últimos anos demandaram muito esforço. As pessoas veem a Luiza brigona, Luiza forte, Luiza que vai e fala, mas até chegar ali foi muito cigarro, muita ansiedade, foi muito esforço e muitas vezes eu era arrancada de casa”, desabafa Coppieters.
Luiza chegou a se candidatar para vereadora nas eleições municipais de São Paulo pelo PSOL em 2016, mas, há um mês, acabou se desfiliando do partido por divergências internas e optou por seguir com a própria militância em palestras e encontros.
Para ela, a vida política foi impulsionada por dois momentos. Começou a dar entrevistas depois de criticar uma postagem da Prefeitura de São Paulo sobre o programa Transcidadania, do então prefeito Fernando Haddad (PT). Na ocasião da divulgação, eles usaram fotos do prefeito com drag queen (personagens criados por artistas performáticos) em vez de pessoas trans e travestis, uma vez que o programa era destinado para essas pessoas. Foi a primeira vez que a professora foi entrevistada. Logo depois, veio a demissão.
“Aí, vem a demissão e eu falo com a Ponte. Na época, a causa trans nem era tão famosa, então foi um boom. Mais boom ainda por eu ser trans e lésbica. Isso tem um peso na história da causa trans que muita gente não reconhece. Nisso as pessoas começaram a ver o que eu dizia nas redes sociais e me chamavam para falar. De entrevista em entrevista, participei dos planos de educação em 2015 e dei muitas entrevistas. Cada lugar que eu falava, mais três me chamava”, relembra.