Promoção do design inteligente violenta razão de ser da universidade
De acordo com seu próprio website oficial, “o Integra UFMS é o maior evento de Ciência, Tecnologia, Inovação e Empreendedorismo do estado de Mato Grosso do Sul”. Neste ano, o evento foi realizado de forma remota, online, e a palestra de abertura, “A Viabilidade da Evolução à Luz da Química”, foi uma peça de propaganda criacionista, calcada na assim chamada Teoria do Design Inteligente (TDI).
A UFMS é, claro, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul: o que significa que recursos públicos federais foram mobilizados para transmitir uma mensagem de propaganda religiosa e anticientífica.
Nos Estados Unidos, seu país de origem, a TDI é reconhecida, tanto pela comunidade científica quanto pelo Judiciário, como doutrinação religiosa disfarçada de ciência, o que levou a sua proibição em escolas públicas. Isso porque a Constituição dos EUA proíbe que recursos públicos sejam usados para favorecer crenças religiosas.
No Brasil, temos um dispositivo semelhante, o Artigo 19 da Constituição Cidadã de 1988, que proíbe o Estado, em todos os níveis, de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. E por aqui, também, existe amplo consenso na comunidade científica a respeito do caráter não-científico e teológico da TDI.
Levando tudo isso em conta, em outros tempos eu diria que a palestra sobre TDI na UFMS viola o Artigo 19, por representar um caso flagrante de subvenção de atividade religiosa com recursos públicos. Mas depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou o ensino público confessional, não sei se o artigo está ainda em vigor, ou se alguém ainda o leva sério.
Inconstitucionalidades à parte, no entanto, se a palestra, proferida por Marcos Eberlin, do Instituto Discovery-Mackenzie e da Academia Brasileira de Ciências, fosse uma pregação religiosa direta, tipo “aceite Jesus como seu salvador”, o resultado teria sido menos danoso à educação dos estudantes que a assistiram do que os inúmeros erros conceituais e factuais, científicos, grosseiros, cometidos ali.
E nem me refiro às falácias lógicas em que a TDI é useira e vezeira, tipo “sem RNA não tem enzima, sem enzima não tem RNA, uma coisa não poderia ter surgido antes da outra, logo existe um designer que fez tudo aparecer ao mesmo tempo”. Pelo mesmo raciocínio, prédios com elevador teriam de se materializar por mágica, já prontos, porque senão teríamos um paradoxo: para instalar o elevador os operários precisam montar máquinas no último andar, e para chegar ao último andar eles precisam de elevador. Para mais detalhes sobre porque a ideia de “complexidade irredutível” é uma piada em termos biológicos, recomendo este artigo aqui.
Outra incoerência divertida, implícita na palestra, diz respeito ao campo de atuação do tal “designer”. Num momento ele atua sobre as leis fundamentais da física, desse modo garantindo, entre outras coisas, que a água tenha propriedades “sobrenaturais” (palavra do palestrante), como a de perder densidade ao solidificar-se; no outro, a ação do designer se torna necessária porque as leis fundamentais da física são tão hostis que não permitiriam que a vida surgisse espontaneamente.
Então, decidam-se, pessoal: ou o designer das leis da física é incompetente, ou o designer das estruturas biológicas é desnecessário. Não dá pra ficar com os dois.
Falando agora em termos estritamente teológicos, esse dilema expõe o caráter fundamentalmente blasfemo da TDI: todo design pressupõe algum nível de impotência. Só seres limitados precisam se dar ao trabalho de projetar coisas, porque projetos nada mais são do que modos de adaptar, contornar ou superar limitações. Onipotência prescinde de design.
Erros crassos
Mas o problema maior da palestra não é a inconstitucionalidade presumida ou a incoerência filosófica, são os erros crassos disseminados a respeito de conceitos científicos fundamentais. Logo no início, encontramos a afirmação espantosa de que “gravidade não atrai átomos e moléculas” ou “gravidade pode estabilizar, mas não formar, estrelas”, o que basicamente nega princípios e descobertas fundamentais da física e da astrofísica.
Em outro ponto, a palestra afirma que a atmosfera primordial da Terra já continha oxigênio, mesmo antes do surgimento da vida, o que também contradiz fatos bem estabelecidos a respeito da evolução atmosférica. O que se sabe é que o oxigênio livre foi inserido na atmosfera pela atividade de cianobactérias, que atingiu um ponto crítico cerca de 2,5 bilhões de anos atrás. Já os primeiros sinais de vida no planeta têm quase quatro bilhões de anos.
A fala também induz o público a imaginar que as investigações sobre a composição da atmosfera primordial, prebiótica, têm caráter estritamente teórico, quando na verdade trata-se de uma linha de pesquisa com base em dados empíricos.
Enfim, além de violar o princípio do Estado laico, por ter sido um evento de proselitismo religioso realizado com recursos públicos, a palestra, ao deseducar falseando a ciência, viola a própria razão de ser da universidade – e aí já não faz diferença se estamos falando de universidade pública ou privada –, que é educar, produzir e disseminar conhecimento.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto)