Regulamentação do Fundeb: Destinação de recursos para instituições privadas preocupa entidades
Luís Eduardo Gomes
Vencida as eleições, o ano de 2020 ainda tem desafios políticos a serem enfrentados para garantir avanços nos municípios em 2021. O principal deles é a regulamentação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que passou a ser permanente após a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional em agosto passado. Contudo, o Congresso ainda precisa aprovar neste ano uma lei regulamentando o Fundeb para que as novas regras possam valer a partir de janeiro de 2021 e, com isso, constar nos orçamentos de prefeitos e governadores.
Relator do projeto de regulamentação que tramita na Câmara, o deputado federal Felipe Rigoni (PSB-ES) explica que a pauta está trancada por causa da Lei de Cabotagem, que tramita em regime de urgência, o que inclusive o impediu de ser nomeado oficialmente relator da regulamentação do Fundeb. A expectativa do deputado é que a votação da Lei de Cabotagem ocorra nesta terça-feira (1º).
“Tudo indica que o Fundeb será a próxima pauta, depois da Cabotagem. Então, semana que vem (nesta semana) a gente deve votar”, afirmou Rigoni, em entrevista ao Sul21.
Além de tornar o Fundeb permanente, a PEC também determinou o aumento progressivo do percentual de participação da União nos recursos do fundo, dos atuais 10% para 23%, até 2026. Ela ainda alterou a forma de distribuição dos recursos da União, que agora passam por uma revisão na regulamentação.
Rigoni afirma que o seu projeto de regulamentação está adequando à operacionalização do Fundeb ao que diz a Constituição Federal. “A gente está colocando dentro de todos os pontos, seja no VAAT (Valor Aluno/Ano Total), que é a distribuição para corrigir desigualdades, seja no VAAR (Valor Aluno/Ano por Resultado), que é a distribuição para melhorar a aprendizagem, tudo aquilo que está na Constituição e baseado nas melhores evidências existentes sobre cada assunto”, diz.
Ele acredita que o seu texto deverá ser aprovada por consenso ou próximo disso no Congresso, assim como foi a PEC que tornou o fundo permanente. “Tem algumas opiniões divergentes num detalhe ou noutro, mas eu acho que nós vamos ter uma projeto, não sei se de consenso, mas de grande maioria. Acho que não tem um óbice grande ao PL, não nesse momento”, afirma.
Contudo, uma das lideranças da oposição no Congresso a respeito do tema da educação, a deputada Professora Rosa Neide (PT-MT), explica há duas preocupações principais com os rumos atuais da discussão da regulamentação do Fundeb. A primeira delas é quanto à possibilidade de recursos do fundo serem destinados para instituições privadas.
Atualmente, recursos do Fundeb podem ser usados para o pagamento de parcerias com instituições conveniadas que atuem na educação infantil, de 0 a 5 anos, como as creches conveniadas pela Prefeitura de Porto Alegre, para a educação no campo e educação especial. “É para você fazer parcerias com várias instituições filantrópicas que são muito boas na área de educação profissional e técnica para conseguir expandir rapidamente e resolver esse problema que o Brasil tem. Infelizmente, só 10% das pessoas do Brasil tem algum curso profissional e técnico, enquanto na Alemanha, por exemplo, é 48% da população. Então, as instituições filantrópicas e o próprio sistema S vão poder nos ajudar muito a fazer essa expansão”, afirma Rigoni.
Rosa Neide pontua que há uma forte pressão sobre o deputado Rigoni para que ele inclua também a possibilidade de os recursos serem usados em convênios no Ensino Fundamental e Médio, abrindo brecha, inclusive, para instituições privadas com fins lucrativos.
“O dinheiro público para escola pública está consagrado na Constituição. Então, nesse sentido, há um dilema grande entre os deputados porque aprovar isso é ter um maior espaço de conveniamento já na educação infantil, que eles estão colocando escolas filantrópicas e escolas confessionais, que também não estava previsto. Então, o recurso público, que a gente pretendia que fosse um pouco mais para apoiar a escola pública, ele pode se esvair completamente e o novo Fundeb não fazer aquilo que era o foco principal, que era melhorar os recursos da escola pública”, afirma de deputada.
Esta preocupação é compartilhada pelo presidente do Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo. “Até o momento, o deputado Rigoni se mostra muito receptivo ao debate e à discussão, infelizmente está sendo muito pressionado e está aceitando as pressões dos governantes que querem colocar, nos 70% para o pagamento de profissionais da educação, até aqueles que não são profissionais da educação”, afirma.
A deputada aponta ainda que uma das fontes de lobby da iniciativa privada para o uso de recursos do Fundeb com o conveniamento do Ensino Médio ocorre pelas dificuldades criadas para estados e municípios ofertarem os itinerários formativos criados pela Reforma do Ensino Médio, tornando parte do currículo flexível aos interesses dos alunos.
“Isso acaba sendo um problema para cidades pequenas que, por vezes, têm uma escola de Ensino Médio. Já estava claro que não ia funcionar, que o Brasil não tinha condições de ofertar. Agora, no Fundeb, é o espaço que os privatistas encontram para fazer valer o que estava na reforma”, afirma.
Rigoni destaca que o seu texto não irá abrir a possibilidade do uso do Fundeb para convênios no Ensino Fundamental e Médio, mas reconhece que essa pauta poderá ser apresentada por deputados quando o texto for a plenário.
Enfrentamento de desigualdades
Outro aspecto que a deputada Rosa Neide considera que ainda precisa ser discutido é a respeito dos 2,5 pontos percentuais de participação da União que serão distribuídos às redes públicas que melhorarem a gestão educacional e seus indicadores de atendimento escolar e aprendizagem, com redução das desigualdades.
Pela proposta do deputado Rigoni, a complementação da União pelo VAAR, os 2,5%, que entrará em vigor a partir de 2023, irá ocorrer pela implementação da metodologia de cálculo do Índice de Aprendizagem com Equidade, que priorizará as redes educacionais que conseguirem melhorar as notas de alunos de baixo rendimento. O indicador considera três variáveis: resultados dos estudantes nos exames nacionais de larga escala (língua portuguesa e matemática), ponderados pela taxa de participação de cada rede escolar nos exames, que não poderá ser inferior a 80% das matrículas; taxa de aprovação dos estudantes; e taxas de atendimento escolar confrontadas com a evasão.
“A gente está chamando de indicador da qualidade com equidade. Aquelas redes educacionais que conseguirem se esforçar e melhorarem em relação a si mesmas a aprendizagem dos alunos, ou seja, pegando aqueles alunos com o menor rendimento e ajudando eles a melhorar, vindo de baixo para cima, do jeito correto, elas vão ganhar mais dinheiro. Eu acho isso extremamente importante para a gente conseguir evoluir a educação brasileira com mais rapidez, com mais qualidade e com menos desigualdade”, afirma.
Já Rosa Neide avalia que essa proposta é muito focada no mérito da aprendizagem, o que pode acentuar desigualdades entre o topo e a base das escolas públicas. Para ela, o foco destes 2,5%, por terem o objetivo de reduzir desigualdades, deveria ser priorizar redes de educação que priorizassem a matrícula de 100% de suas crianças, que abrissem vagas em creches e garantissem a gestão democrática das escolas, entre outros critérios que não fossem necessariamente ligados a resultados.
“Todos os deputados que têm uma vivência de escola percebem, e eu pessoalmente que sou professora, trabalhei a vida inteira na escola, sei que, se você quiser atribuir valor monetário para uma escola ou um professor porque melhorou a nota do aluno, a gente só separa, cada vez mais cria um fosso entre os que podem e os que não podem”, diz. “Tem mil razões para que uma nota seja de uma forma e não de outra e, na maioria das vezes, essas razões não vão criar justiça social. A gente queria que o recurso gerasse justiça social, aqueles que precisam mais, ter mais, e aqueles que precisam menos, ter proporcionalmente às necessidades”.
Heleno Araújo, da CNTE, avalia ainda que a discussão atual sobre a regulamentação deixa a comunidade escolar de fora da comissão que ficará responsável por avaliar os repasses para estados e municípios dos recursos do fundo, ficando a responsabilidade a cargo do Ministério da Educação (MEC). “Não contempla trabalhadores, estudantes, pais, mães, responsáveis, nem os conselhos de educação estão inseridos no debate inicial e as ponderações das etapas e modalidades da educação básica”, diz. Para ele, o relatório ainda precisa de “muitos reparos para poder atender aquilo que nós queremos e desejamos para o nosso País”.
Em nota pública divulgada no dia 17 de novembro a respeito do relatório preliminar do deputado Rigoni, a CNTE critica ainda o fato de que o relatório não regulamenta o CAQ (Custo Aluno Qualidade), que é uma métrica de investimentos que incorpora parâmetros como a variedade e quantidade mínimas de recursos materiais e humanos indispensáveis ao processo de ensino-aprendizagem, em correspondência à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). A inclusão do CAQ na PEC do Fundeb foi considerada uma vitória para as entidades ligadas à educação pela previsão de que o valor mínimo investido por aluno deveria subir, gradativamente, dos atuais R$ 3.700 anuais para R$ 5.700 até 2026.
“A nossa grande preocupação na regulamentação do Fundeb é o CAQ, já que teve tentativas de retirá-lo do Fundeb. Essa preocupação continua quando, no relatório do deputado Felipe Rigoni, o CAQ que é um ponto importante para que a educação de qualidade aconteça, é ignorado. Então, nós temos uma grande preocupação para que o governo esteja articulando para retirar essa conquista que tivemos no Fundeb”, diz a presidente do CPERS, Helenir Aguiar Schürer.
Segundo a deputada Rosa Neide, como há a necessidade de que o texto da regulamentação seja aprovado até o final do ano, uma proposta defendida por deputados ligados a entidades representativas de professores é a de que o fosse feito um acordo para que a regulamentação deste ano trabalhe com temas que são de consenso e que, no ano que vem, seja aberto um novo espaço para ampliar a regulação.
Caso a regulamentação não saia, o governo federal poderia definir as regras por meio de Medida Provisória, o que, para a deputada Rosa Neide, apenas geraria “mais transtorno”. “A gente sabe que o governo, durante toda a tramitação da PEC do Fundeb, não se aproximou, não discutiu, não ajudou. Na última hora, quis atrapalhar fortemente. Então, a gente também não regulando, não usando o dispositivo que é do legislativo, a gente pode estar abrindo um precedente para o governo regular por MP, o que também não é bom porque o governo não está participando fortemente dessa discussão”, afirma.