Relator da ONU afirma que Lei 14701 viola direitos dos povos indígenas e apela ao STF por suspensão de aplicação
José Francisco Calí Tzay estranhou que o STF tenha suspendido discussões judiciais sobre a Lei do Marco Temporal, mas não sua aplicação
O Relator Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos dos Povos Indígenas, José Francisco Calí Tzay, fez uma dura declaração nesta quinta-feira (11) em Genebra, na Suíça, contra a tese restritiva do marco temporal e pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Senado Federal a suspensão da aplicação da Lei 14701/2023, a chamada Lei do Marco Temporal, além de paralisar outras iniciativas que tenham a tese como orientação.
“Apelo (…) que suspenda a aplicação da Lei 14.701 até que uma decisão sobre sua constitucionalidade seja adotada. Esta suspensão poderia evitar um risco iminente para os povos indígenas do Brasil de serem privados ou despejados de suas terras tradicionais nos termos da Lei 14.701, atualmente em vigor. Apelo também ao Senado para que respeite as normas internacionais de direitos humanos que reconhecem os direitos dos povos indígenas às suas terras e territórios sem limitação temporal”, disse.
Em seu pronunciamento, o relator da ONU alertou que o marco temporal é “uma violação dos padrões internacionais de direitos humanos que reconhecem os direitos dos povos indígenas às suas terras com base no uso e posse tradicional sem limitação temporal”. Na última terça-feira (9), Doto Takak Ire, do povo Mebêngôkre (Kayapó), declarou, durante a 17ª sessão do Mecanismo de Peritos das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (EMRIP), que o “Congresso brasileiro está contra nós”.
“Embora elogie o Supremo Tribunal Federal do Brasil por sua decisão de rejeitar a doutrina do ‘Marco Temporal’, estou particularmente preocupado com o pouco tempo decorrido entre a decisão concluída em setembro de 2023 e a aprovação da Lei 14.701/2023 pelo Congresso em dezembro 2023 que implementa esta doutrina”, disse Tzay.
Para o relator, “não ficou claro o que poderia justificar uma rediscussão do entendimento jurídico já determinado pelo STF, dado este curto espaço de tempo. Também me preocupam as novas iniciativas legislativas no Senado que visam consolidar a doutrina do “Marco Temporal” na Constituição”.
Tzay se refere à Proposta de Emenda à Constituição 48 (PEC 48). A proposta altera o Artigo 231 da Constituição fixando como marco temporal para a ocupação das terras indígenas o dia 05 de outubro de 1988. A PEC 48 entrou em discussão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal nesta quarta-feira (10), mas um pedido de vista coletivo dos senadores decidiu adiar a votação para outubro.
Decisão do STF questionada pela ONU
A Lei 14.701/2023, que regulamenta a doutrina do marco temporal, é contestada no STF por meio de cinco processos judiciais que buscam a declaração de sua inconstitucionalidade. O ministro Gilmar Mendes, no último mês de abril, determinou a suspensão, em todo o país, dos processos judiciais que discutem a constitucionalidade da Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023) até que a Corte se manifeste definitivamente sobre o tema.
O ministro do STF sugeriu um processo de mediação e conciliação dos interesses dos povos indígenas e do agronegócio. “Preocupa-me que esta suspensão vise processos judiciais que discutam a constitucionalidade da Lei 14.701, mas não impede que a lei questionada seja aplicada a todos os processos de demarcação em curso, o que pode gerar danos irreparáveis”, analisou Tzay.
“Os direitos dos povos indígenas são defendidos e garantidos por normas jurídicas internacionais, incluindo a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção n.º 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), e não são alienáveis e não podem ser negociados”, lembrou.
De acordo com as leis internacionais as quais o Brasil é signatário, pontuou Tzay, os direitos dos povos indígenas devem ser reconhecidos, aplicados e respeitados tanto em nível federal quanto estadual – seja por meio de processos de demarcação e proteção de terras e territórios indígenas, ou por meio da implementação de políticas nacionais para garantir o direito à vida, à saúde e à segurança dos povos indígenas do Brasil.
“Lembro ao Estado brasileiro que as terras e territórios tradicionalmente pertencentes ou ocupados pelos povos indígenas são os elementos definidores de sua identidade, cultura e sua relação com os ancestrais e as gerações futuras. Abrir o caminho para políticas extrativistas apenas para interesses empresariais legitima a violência contra os povos indígenas e viola os seus direitos às terras, territórios e recursos naturais tradicionais”, disse.
Combate às alterações climáticas: povos indígenas são vitais
No contexto das alterações climáticas, o relator da ONU ressaltou que as terras tradicionalmente pertencentes ou ocupadas pelos povos indígenas são vitais para a proteção da biodiversidade contribuindo para o equilíbrio climático devido à relação harmoniosa e espiritual que eles mantêm com a natureza.
“Permitir atividades de mineração, exploração de ouro e pecuária também formalizaria um completo retrocesso ambiental, comprometendo o cumprimento das metas assumidas pelo Brasil nos tratados internacionais que visam reverter as mudanças climáticas com urgência”, declarou. A Lei 14.701/23 cria mecanismos para praticamente anular a opinião dos indígenas sobre a entrada em suas terras de projetos de mineração e demais grandes empreendimentos.
Nesta quarta-feira (10), o assessor do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na ONU Paulo Lugon Arantes declarou, durante sessão do Mecanismo de Peritos das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (EMRIP), que “os povos indígenas isolados sofrem desproporcionalmente os efeitos das alterações climáticas e estão sob o risco de atrocidades cometidas por empresas transnacionais que trabalham na indústria extrativista, especialmente hidrocarbonetos e mineração”.
POR RENATO SANTANA, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI