Repercussões práticas do controle de jornada no atual teletrabalho
Por Ricardo Calcini e Leandro Bocchi de Moraes*
Indiscutivelmente um dos reflexos da pandemia foi o crescimento do número de trabalhadores que passaram a desempenhar as suas atividades remotamente.
Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, na América Latina a taxa de pessoas nessa situação está entre 20% e 30%. Antes da pandemia, porém, esse percentual era inferior a 3% [1].
A Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro realizou uma pesquisa e entrevistou 12.979 bancários e bancárias de todo o país a respeito dos desafios em relação ao teletrabalho.
Nesse panorama, 19,4% dos entrevistados informaram que a jornada de trabalho aumentou muito, enquanto 43,6% afirmaram estar trabalhando mais horas comparado ao trabalho presencial [2].
Lado outro, um estudo feito pela Federação Única dos Petroleiros revelou que, dos entrevistados, 47,5% relataram estar trabalhando mais no regime de teletrabalho [3].
Frise-se, por oportuno, que o Ministério Público do Trabalho registrou um aumento de 4.205% nas denúncias de excesso de trabalho e jornada, sendo que nos anos de 2018 e 2019 quase não houve denúncias sobre o teletrabalho [4].
Dito isso, verifica-se que a jornada de trabalho, principalmente no trabalho remoto, é sem dúvida um ponto sensível e, por isso, merece uma análise mais aprofundada e cautelosa.
Mas, afinal, o teletrabalhador tem direito ao recebimento de horas extras?
A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 62, inciso III [5], que foi introduzido pela Lei 13.467/2017 excluiu os empregados em regime de teletrabalho das normas concernentes a limitação da jornada de trabalho.
Todavia, a Constituição Federal disciplina em seu artigo 7º, inciso XIII, que a “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”.
Portanto, muitas dúvidas surgem em relação ao referido dispositivo da norma celetista acrescentado pela reforma trabalhista, sobretudo quanto à própria inconstitucionalidade.
Com efeito, o Tribunal Superior do Trabalho, com o objetivo de esclarecer os direitos relacionados ao teletrabalho, lançou uma cartilha educativa sobre o assunto [6].
O referido documento, além de possuir um amplo conteúdo informativo, ainda esclarece que, se houver meios de controlar a jornada de trabalho nessa modalidade remota, existe a possibilidade de reconhecimento do direito às horas extras.
Nesse sentido, oportunas são as palavras de Janete Aparecida Deste e Fábio Luiz Pacheco [7]:
“A disposição do inciso III do artigo 62 da CLT requer, como já mencionado, interpretação restrita, devendo a presunção que dela se extrai ser rechaçada quando da realidade, demonstrada por qualquer elemento de prova, revelar que havia a possibilidade de efetuar o controle e mais, que havia excesso de jornada.
A presunção que se extrai do dispositivo não é absoluta, sendo inadmissível que a flexibilidade do trabalho executado na residência do empregado, apenas por facilitar, em tese, a sua organização e o ajuste às rotinas domésticas, afastem o direito a perceber horas extras, ainda que prestando trabalho em horários para além dos limites legais e constitucional”.
Aliás, impende destacar que já houve constatação do aumento de 383% de ações trabalhistas envolvendo o teletrabalho [8].
Entrementes, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) aprovou o Enunciado 71, que dispõe no sentido de assegurar o direito as horas extras e o repouso semanal remunerado no regime de teletrabalho [9].
Portanto, uma vez constatada a possibilidade de aferir e controlar a jornada de trabalho do empregado, e, inobstante a atividade seja desempenhada remotamente, a empresa poderá ser condenada ao pagamento de horas extras caso comprovado o labor em tais condições.
Nessa linha de raciocínio, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região manteve a decisão de primeira instância que condenou uma empresa ao pagamento de horas extras, em consequência do teletrabalho, vez que era possível controlar a jornada [10].
Noutro giro, a Justiça do Trabalho de São Paulo já foi provocada a se manifestar quanto à temática e, na ocasião, afastou o enquadramento do trabalhador na regra do artigo 62 da Consolidação das Leis do Trabalho.
Em sua decisão [11], a magistrada assim concluiu, a qual foi mantida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região [12]:
“[…] Em que pese a Lei 13.467/17 tenha incluído o teletrabalho nas exceções ao controle de jornada do artigo 62 da CLT, certo é que, justamente por se tratar de situação excepcional, não deve ser aplicada indiscriminadamente.
Não se pode olvidar que a limitação da duração do trabalho se trata de um dos parâmetros civilizatórios mínimos de proteção ao trabalhador, bem como o princípio da primazia da realidade, no sentido de que o simples fato de o labor ser desempenhado fora das dependências da ré não implica, por si só, ausência de controle da jornada do trabalhador externamente ou em regime de teletrabalho. Assim, apenas quando comprovada a impossibilidade de controle de jornada é que é possível se falar em uma aplicação das exceções do artigo 62, incisos I e III, da CLT, sob pena de inconstitucionalidade por desrespeito ao artigo 7º, XIII, CF […]”.
É forçoso lembrar que a legislação infraconstitucional deve ser sempre interpretada à luz da Constituição Federal, e, em que pese a Lei 13.467/2017 tenha disciplinado que os empregados em regime de teletrabalho não se enquadrem na fixação da jornada legal, esse entendimento não pode ser absoluto.
Em arremate, vale lembrar que limitação da jornada de trabalho possui relação direta com a dignidade da pessoa humana, pois além ser importante para a saúde do trabalhador, ainda propicia um equilíbrio indispensável entre a vida pessoal e profissional.
[1] Disponível em https://news.un.org/pt/
[2] Disponível em https://spbancarios.com.br/
[3] Disponível em https://sindipetrosp.org.
[4] Disponível em https://www.cut.org.br/
[5] Artigo 62 – Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo: (…). III – os empregados em regime de teletrabalho.
[6] Disponível em https://www.tst.jus.br/
[7] [7] O teletrabalho na legislação brasileira e sua multidisciplinariedade: aspectos teóricos e práticos – Leme, SP: Mizuno, 2021. Página 76.
[8] Disponível em https://www.jornalcontabil.
[9] 71. TELETRABALHO: HORAS EXTRAS. São devidas horas extras em regime de teletrabalho, assegurado em qualquer caso o direito ao repouso semanal remunerado. Interpretação do artigo 62, III e do parágrafo único do art. 6º da CLT conforme o artigo 7º, XIII e XV, da Constituição da República, o artigo 7º, E, G e H protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais (Protocolo de San Salvador), promulgado pelo Decreto 3.321, de 30 de dezembro de 1999, e a Recomendação 116 da OIT.
[10] TRT-3 – RO: 0010132-05.2016.5.03.0178; 2ª Turma, Relator: Juiz convocado Rodrigo Ribeiro Bueno; Publicação: 14/03/2017.
[11] Processo 1000111-50.2021.5.02.0001. 1ª Vara do Trabalho de São Paulo. Juíza Tatiana Agda Julia Elenice Helena Beloti Maranesi Arroyo; Publicação 25/7/2021
[12] TRT – 2 – RO: 1000111-50.2021.5.02.0001; 5ª Turma; Relatora: Juiz convocada Danielle Santiago Ferreira da Rocha; Publicação: 21/1/22.
Ricardo Calcini é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto “Prática Trabalhista” (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.
Leandro Bocchi de Moraes é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD), pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo “O Trabalho Além do Direito do Trabalho” da Universidade de São Paulo – NTADT/USP.