Sátira ou tragédia? O crime social das 42 propostas da CNI

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

“Mas, antes, com tais queixas, se duplica

A raiva nos tiranos, qual o fogo

Que aos assopros dos ventos ergue a chama

Às vezes, Doroteu, se perde a conta

Dos cem açoites, que no meio estava,

Mas outra nova conta se começa…”

Os versos da epígrafe são da Terceira Carta Chilena – em que se contam as injustiças e violências que Fanfarrão executou por causa de uma cadeia, a que deu princípio –, poema satírico, com treze cartas, do poeta e inconfidente Tomás Antonio Gonzaga, intitulado Cartas Chilenas, por meio das quais ele satiriza o tirano governo do intendente da Coroa Portuguesa, em Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses, por antes e depois da inapagável Inconfidência Mineira, de 1789.

Quem se der ao trabalho de ler e analisar, com os olhos do Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil (CR), o documento que a Confederação Nacional da Indústria (CNI), intitulado “A Governança para a competitividade da indústria”, contendo 42 propostas – que acaba de ser entregue aos três mais bem colocados candidatos à Presidência da República –, certamente concluirá que a ele se aplicam, integral e plenamente, as palavras do poeta inconfidente quanto à ganância e à avidez dos empresários e à guerra sem trégua que travam contra os fundamentos da República do Brasil, em busca de lucro farto e fácil, a que chamam de “governança”.

Faz-se necessário registrar desde logo que, caso a CNI obtenha êxito nas suas citadas propostas, a sátira do poeta transformar-se-ia em colossal e incomparável tragédia.

Quem não se sentir confortável com a sátira das Cartas Chilenas, poderá comparar a pretensão da CNI à crítica que o escritor humanista Thomas Morus fez à Inglaterra do início do século XVI, em sua imortal obra “A Utopia”. Nela, Morus diz: “Os inumeráveis rebanhos de carneiros que cobrem hoje toda a Inglaterra. Estes animais, tão dóceis e tão sóbrios em qualquer outra parte, são entre vós de tal sorte vorazes e ferozes que devoram mesmo os homens e despovoam os campos, as casas, as aldeias”.

Passados cinco séculos menos dois anos da publicação do realçado livro, já não são mais os carneiros que comem os seres humanos e despovoam os campos, as casas e as aldeias: são as empresas, principalmente as indústrias, como pugna a CNI.

Para a CNI, ao contrário do que assevera o Art. 1º, parágrafo único, da CR, todo o poder não se emana do povo, mas, sim, das empresas, e a elas deve ser revertido, tudo o que for produzido, descontadas algumas migalhas, destinadas à mísera sobrevivência dos trabalhadores.

Como já se verificava nas “101 propostas”, entregues pela própria CNI à presidenta Dilma e ao Congresso Nacional em dezembro de 2012, as 42 de agora buscam rasgar, despudoradamente, todos os fundamentos sobre os quais se funda a República Federativa do Brasil; nelas, só há valores sociais da livre iniciativa; para o trabalho, desvalor, em total afronta ao Art. 1º, inciso IV; não há função social da propriedade, mas, apenas, função privada, leia-se lucro farto e fácil, o que representa a negação do Art. 170, inciso III; não há primado do trabalho nem bem-estar e justiças sociais, o que reduz a nada as bases e objetivos da Ordem Social, determinada pelo Art. 193.

E mais: os direitos fundamentais sociais, descritos nos 34 incisos do Art. 7º da CR deixam de ser obrigatórios, podendo ser renunciados por meio acordo e/ou convenção coletiva; ou, em outras palavras, ficam à mercê da força e da resistência de cada sindicato de trabalhadores.

Isto sem contar que desaparece, como num passe de mágica, a ultra-atividade das normas coletivas, garantidas pela Súmula N. 277 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), a maior já obtida pelos trabalhadores desde a promulgação da CR, em 1988.

Para selar com chave de ouro, para as empresas, e de chumbo, para os trabalhadores, a CNI defende, com sofreguidão, a imediata aprovação do famigerado PL N. 4.330/2004, que trata da terceirização sem fronteiras e sem limites; ou de qualquer outro que retire todos os freios para a terceirização das atividades- fins e para as consequências que delas advirão.

A terceirização desbragada, buscada pela CNI, ganha asas e fulgor, a tal ponto de o Projeto de Lei (PL) N. 4.330/2004, de autoria do deputado federal Sandro Mabel, em seu estágio atual, trazer a real perspectiva de pôr fim a todos os direitos fundamentais sociais, insertos no Art. 7º da CR, em conformidade com as autorizadas vozes de 19 ministros do TST, de todos os 24 presidentes dos Tribunais Regionais do Trabalho, de mais 5 mil juízes trabalhistas representados pela Anamatra, do Ministério Público do Trabalho e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que enviaram manifestações expressas e contundentes de repulsa a tal PL ao presidente da Câmara dos Deputados.

A título de ilustração, trazem-se, aqui, para conhecimento, alguns dos objetivos da CNI, que ela pomposamente chama de “recomendações”.

Permissão para: redução do intervalo de uma hora para repouso e alimentação, hoje vedada pelo Art. 71 da CLT, pela Súmula N. 437 do TST; concessão de férias coletivas em até três períodos anuais e igual fracionamento para as individuais, vedados pelo Arts. 134 e 139 da CLT; liberação de trabalhos aos domingos e feriados em todas as atividades econômicas, regulados pelos Arts. 67 e 68 da CLT; e mais 26, nenhuma benéfica aos trabalhadores.

Mas, a CNI quer mais. Achando pouco e de pequena monta o monstro do fator previdenciário, propõe, também, e com total desfaçatez, o estabelecimento de idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição; a exigência de tempo comum, para homens e mulheres, ou seja, o de 35 anos para ambos; e o fim da aposentadoria especial dos professores de educação básica, o que nem o PDS, nos áureos tempos do regime militar, ousou propor.

Frise-se que o PDS, quando se promulgou a Emenda Constitucional N.18/1981, que garantiu a aposentadoria aos(às) professores(as), com a redução de cinco anos em relação às regras comuns, estabelecendo 25 anos para a mulher e 30 para o homem, votou em bloco pela sua aprovação; bem assim, quanto à diferença de tempo de cinco anos entre homens e mulheres.

Colhe-se dos anais do Congresso Nacional que a mencionada Emenda Constitucional, em segundo e último turno de votação, obteve o sim de 392 deputados e 55 senadores, não se registrando nenhum não.

A redação final da realçada emenda é justificada, dentre outros, pelos seguintes fundamentos:

“No momento em que pleiteamos a redução do tempo de serviço para efeito da aposentadoria do professor, estamos conscientes de que sobre ser sumamente justa a presente proposta, em face dos sabidos desgastes físico-anímicos que o magistério provoca naqueles que se dedicam à nobre missão de ensinar, ele é, ainda, um remédio possível para minorar as agruras financeiras do nosso mal remunerado professor, ao permitir a ele, ainda com algumas energias sobrantes, face à diminuição do tempo de serviço para aposentar, aumentar os parcos rendimentos da aposentadoria como professor, com outra atividade laboral.

Dentro desta linha de meditação é normal que nos acuda à lembrança e insensibilidade do Poder Público, responsável pelo encaminhamento da questão remuneratória do professor, permitindo que se venha prolongando ao longo dos anos, indefinidamente, o injusto tratamento, em termo remuneratórios, dispensado ao professor no Brasil.

Essa plêiade de homens e mulheres que não só se dedicam a transmitir a cultura e a educação às gerações mais jovens, mas também se transformam no amigo e conselheiro, no inspirador e orientador, deve merecer uma atenção do Poder Público que lhes permita oferecer, em contrapartida, o melhor de si mesmos, servindo de exemplo àqueles que lhes estão mais próximos, assim formando, a sua imagem, cidadãos participantes e diligentes, combativos e operantes que venham enriquecer a sociedade com uma participação consciente, criando novas opções de vida e acelerando a caminhada da sociedade em direção a estágios mais justos e humanos para todos.

A medida ora proposta pretende não só contribuir para o aperfeiçoamento da legislação que afeta aos professores deste país, que, apesar de um paliativo, não deixa de ser medida de justiça, garantidora de um mínimo de direito de que essa nobre classe se faz merecedora por parte da sociedade em que se insere.”

Se alguns destes fundamentos foram suplantados pelo novo contexto social, decorridos 33 anos da data em que se assentaram, a CNI não cuida de dizer; até porque isto lhe seria impossível, haja vista a incolumidade de todos, até dos parcos salários pagos aos professores.

Os únicos e falaciosos argumentos da CNI são: “A reforma da Previdência Social tem como motivação garantir a sustentabilidade dos benefícios no futuro. O processo de envelhecimento da população brasileira tornará inviável a manutenção das regras previdenciárias atuais. A percepção desse cenário gera incertezas para as famílias e empresas”.

A verborragia da CNI, supostamente em defesa do equilíbrio atuarial da Previdência Social, nem ao menos toca no rombo provocado pela desoneração da folha de pagamento no orçamento da seguridade social. Ao contrário, defende a sua ampliação. Quanta desfaçatez.

No tocante à educação – o primeiro dos direitos fundamentais sociais, propositadamente escolhido pelo Constituinte de 1987 e 1988 com os objetivos de assegurar o pleno desenvolvimento da pessoa, o seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualificação para o trabalho –, a CNI, sem pejo algum, propõe:

“A educação eleva a produtividade. Por isso, o maior desafio do sistema educacional formal e profissional brasileiro é o de preparar os jovens e adultos para um mercado de trabalho em profunda mutação tecnológica e organizacional”.

Se prevalecer a proposta da CNI, os objetivos constitucionais da educação, para onde vão? Bem! Para uma sociedade em que o lucro é tudo e a cidadania nada, como propugna a CNI, o que importa isto?

Em síntese, tomando-se por base as comentadas propostas da CNI, deve-se dizer, como Thomas Morus, na obra citada, “A Utopia”, por meio de seu interlocutor imaginário, Rafael:

“Em toda a parte onde a propriedade for um direito individual, onde todas as coisas se medirem pelo dinheiro, não se poderá jamais organizar nem a justiça nem a prosperidade social, a menos que denomineis justa a sociedade em que o que há de melhor é a partilha dos piores, e que considereis perfeitamente feliz o Estado no qual a fortuna pública é a presa de um punhado de indivíduos insaciáveis de prazeres, enquanto a massa é devorada pela miséria”. Sem dúvida, este é o modelo social almejado pela CNI.

A prova inconteste disto encontra-se na despudorada máxima de que a luta de classes é conceito ultrapassado; a CNI só não diz para quem. Para os trabalhadores, indiscutivelmente, não só continua atualíssima a luta de classes, mas, também, a cada dia, mais cruenta e desumana.

Como diz o milenar axioma latino: “Summum jus, summa injuria”(o supremo direito é a injustiça suprema).

Ante tudo isto, mais uma vez, os trabalhadores e o sinceros defensores do Estado Democrático de Direito são chamados à luta em campo aberto contra mais este crime social que se pretende perpetrar.

Por derradeiro, e como inesquecível lição de ânimo e energia, para que os trabalhadores e os democratas verdadeiros possam fazer frente ao genocídio social propugnado pela CNI, encerra-se este texto com as palavras de defesa do líder sindical Spies, um dos condenados à morte e enforcados, em Chicago, com represália à gigantesca manifestação popular do dia 1º de maio de 1886:

“Se com o nosso enforcamento vocês pensam em destruir o movimento operário – este movimento do qual milhões de seres humilhados, que sofrem na pobreza e na miséria, esperam redenção –, se esta é sua opinião, enforquem-nos.  Aqui terão apagado uma faísca, mas lá e acolá, atrás e na frente de vocês, em todas as partes, as chamas crescerão. É um fogo subterrâneo e vocês não podem apagá-lo”.

Que fiquem cientes e conscientes a CNI, os presidenciáveis e todos os empresários que estas verdades são imortais.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee
Foto da home: Natalia Godoy / G1

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