Sinpro/RS: Bolsonaristas tentam interromper discurso de paraninfo
Em formatura na Unisinos, um grupo de homens tentou interromper várias vezes um discurso sobre liberdade de imprensa; foi necessário apoio dos formandos, docentes e convidados para que fosse concluído
Por César Fraga
Na noite de sábado, 7 de março, por volta das 22 horas, o professor Felipe Boff, do curso de Jornalismo na Universidade do Rio dos Sinos (Unisinos), subiu ao púlpito do auditório da Universidade para discursar na condição de paraninfo aos seus afilhados. Era o último discurso da noite. Formavam-se três turmas: Fotografia, Comunicação Digital e Jornalismo, a mais numerosa, com 21 formandos.
Para surpresa do professor Felipe, logo de cara foi alvo de protestos e xingamentos vindos de um grupo de convidados que tentaram impedi-lo de prosseguir. Os gritos, segundo o professor, vinham da plateia onde ficam convidados e, ao que conseguiu identificar, provenientes de um grupo de “homens mais velhos” do lado direito do auditório.
Bastou que proferisse as primeiras palavras. “A imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar. Entre 1964 e 1985, jornalistas foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados, como Vladimir Herzog. Hoje, somos insultados nas redes e nas ruas; perseguidos por milícias virtuais e reais; cerceados e desrespeitados por autoridades que se sentem desobrigadas de prestar contas à sociedade”. E iniciaram-se os xingamentos, que precisaram ser abafados mais de uma vez, com ajuda dos demais professores e dos próprios formandos e restante da plateia, que garantiram, apesar de algumas interrupções, que ele discursasse até o fim. Conforme as vaias surgiram, docentes e estudantes se colocavam ao lado do paraninfo, aplaudindo enquanto ele discursava. Em vídeos que circularam nas redes sociais é possível identificar falas como “olha só um professor estragando a formatura falando mal do presidente Bolsonaro”, seguidas de vaias, logo interrompidas por aplausos.
“Jornalista não está acostumado a ser notícia”, afirmou o professor, constrangido, à reportagem do Extra Classe na manhã desta segunda-feira, enquanto ainda se situava a respeito da repercussão do episódio nas redes sociais, na Imprensa e na própria Universidade.
“Me causou espanto. Foi uma reação autoritária e antidemocrática, justamente em se tratando de uma formatura do curso de Jornalismo e diante de um discurso que simplesmente defendia a liberdade de imprensa e o Jornalismo dos ataques vem sofrendo. Essa situação só mostrou que esse discurso, infelizmente, ainda é muito necessário”, justifica Boff. Imediatamente após o ocorrido, a Universidade ofereceu escolta ao paraninfo e professores tanto da Unisinos como de outras instituições se manifestaram por meio de notas.
“Nós, professores, no contato com os estudantes temos notado que muitas famílias estão divididas no que se refere a posicionamentos políticos e de postura ante o papel da imprensa. O episódio de sábado foi a materialização disso”, conclui Felipe.
Em nota, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjor/RS) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) rechaçaram o ocorrido. “Sindjor e Fenaj repudiam toda e qualquer forma de ataque à liberdade de expressão e de pensamento, ainda mais dentro de uma instituição de ensino. A ação ocorrida na Unisinos representa uma intimidação à atividade profissional e é condenável”.
A reitoria da Unisinos, conforme sua assessoria de imprensa, passou a manhã desta segunda discutindo os termos de uma nota pública sobre o caso, que foi divulgada no começo da tarde:
“Como instituição suprapartidária e defensora dos princípios democráticos, a Unisinos, cumprindo seu papel de universidade, respeita as mais diversas posições, constituindo-se como um espaço em que se preserva e se estimula a pluralidade de ideias. Sendo assim, a Universidade esclarece que, nas cerimônias de colação de grau, os professores escolhidos pelos alunos para representá-los como paraninfos têm o direito de fazer uso da palavra e liberdade para se expressarem conforme suas convicções pessoais.”
Leia o discurso do professor na íntegra.
A imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar. Entre 1964 e 1985, jornalistas foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados, como Vladimir Herzog. Hoje, somos insultados nas redes e nas ruas; perseguidos por milícias virtuais e reais; cerceados e desrespeitados por autoridades que se sentem desobrigadas de prestar contas à sociedade. Todos sabem – mesmo aqueles que não acompanham as notícias – quem é o principal propagador dessa ameaça crescente à liberdade de imprensa. É o mesmo que também considera como inimigos os cientistas, professores, artistas, ambientalistas – como se vê, estamos bem acompanhados.
No ano passado, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas, o presidente da República atacou a imprensa 116 vezes em postagens nas suas redes sociais, pronunciamentos e entrevistas. Um ataque a cada 3 dias.
Querem exemplos? “É só você fazer cocô dia sim, dia não.” “Você está falando da tua mãe?” “Você tem uma cara de homossexual terrível.” “Pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai.” É dessa forma chula e rasteira que o presidente da República, a maior autoridade do país, costuma responder aos jornalistas. Seus xingamentos tentam desviar a atenção das respostas que ele ainda deve à sociedade. Nos casos citados, explicações sobre o retrocesso da preservação ambiental no país, sobre os depósitos do ex-assessor Fabrício Queiroz na conta da hoje primeira-dama, sobre o esquema da “rachadinha” de salários no gabinete do filho hoje senador, sobre o envolvimento da família presidencial com milicianos.
O presidente das fake news, que bate na imprensa cada vez que ela informa um fato negativo sobre ele e seu governo, é o mesmo que deu 608 declarações falsas ou distorcidas – quase duas por dia – ao longo de 2019. O levantamento é da agência de checagem Aos Fatos. Querem exemplos? “O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente no mundo.” “Leonardo Di Caprio tá dando dinheiro pra tacar fogo na Amazônia.” “O Brasil é o país que menos usa agrotóxicos.” “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira.” “Nunca teve ditadura no Brasil.”
Em 2020, depois de completar um ano de mandato com resultados pífios na economia e desastrosos na educação, na cultura, na saúde e na assistência social, o presidente não serenou. Redobrou os ataques à imprensa. Aplicou o duplo sentido mais tosco à expressão jornalística “furo” para caluniar a repórter que denunciou a manipulação massiva do WhatsApp na campanha eleitoral. Atacou outra jornalista, mentindo descaradamente, para negar a revelação de que compartilhou vídeos insuflando manifestações contra o Congresso e o STF.
E segue promovendo o boicote à imprensa, com exceção daqueles que aproveitam o negócio de ocasião para vender subserviência e silêncios estratégicos. Aos veículos que não se dobram ao seu despotismo, o presidente da República impinge pessoalmente retaliações financeiras diretas, pressão sobre anunciantes e difamação de seus profissionais. Pratica, enfim, toda sorte de manobras sórdidas para tentar asfixiar o jornalismo e alienar a população dos fatos. E já nem se preocupa em disfarçar suas intenções. Querem um último exemplo? Declaração de 6 de janeiro deste ano, dita pelo presidente aos jornalistas “Vocês são uma raça em extinção”.
Não, presidente, não somos uma raça em extinção. Ao contrário. Somos uma raça cada dia mais forte, mais unida, mais corajosa, mais consciente. Basta olhar para estes 21 novos jornalistas que estamos formando hoje. Basta ler os dizeres na camiseta deles: “Não existe democracia sem jornalismo”.
Esta é a mensagem a ser destacada nesta noite: quando tenta calar e desacreditar a imprensa, o atual presidente da República ameaça não só o jornalismo e os jornalistas. Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento. Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem – estes, que experimentem deixar de bater palma para ver o que acontece.
Para encerrar, gostaria de citar o exemplo e as palavras do grande escritor e jornalista argentino Rodolfo Walsh. Precursor da reportagem literária e investigativa e destemida voz contra o autoritarismo e o terrorismo de Estado, Walsh pregava que “Ou o jornalismo é livre, ou é uma farsa, sem meios-termos”. Dizia também que “um intelectual que não compreende o que acontece no seu tempo e no seu país é uma contradição ambulante; e aquele que compreende e não age, terá lugar na antologia do pranto, não na história viva de sua terra”.
Rodolfo Walsh foi sequestrado e assassinado pela ditadura argentina em 25 de março de 1977. Na véspera, publicara corajosamente uma “carta aberta à junta militar”, denunciando os crimes do sanguinário regime, que então completava apenas seu primeiro ano. Estas foram as últimas palavras que Walsh escreveu: “Sem esperança de ser escutado, com a certeza de ser perseguido, mas fiel ao compromisso que assumi, há muito tempo, de dar testemunho em momentos difíceis”.
Jornalistas, este é o nosso compromisso. Não deixaremos que a tirania nos cale mais uma vez.