Sinpro/RS: Espera de dois anos por consulta expõe caos na saúde mental em Porto Alegre
A precarização tomou conta do serviço de saúde mental de Porto Alegre, com superlotação de emergências, esperas de dois anos para consultas e desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
Quando foi acolhido no Centro de Saúde Modelo, em Porto Alegre, no inverno de 2015, Dirceu Luiz Rohr Júnior nasceu de novo. “Eu não sabia nada. Só sei que precisava de ajuda. Muita ajuda”, lembra o técnico em serigrafia sobre a primeira vez que precisou dos serviços de saúde mental da prefeitura.
Desempregado, sem profissão, com sérios problemas de relacionamento familiar, Júnior deu entrada no sistema, por meio de uma unidade básica de saúde, com sinais de depressão. Graças à ajuda que recebeu, não precisou passar pelo calvário de uma internação em hospital psiquiátrico e, tampouco, aguardar em uma fila interminável para conseguir um atendimento especializado.
Mas isso foi há sete anos. Se fosse hoje, Dirceu, certamente, ainda estaria esperando uma consulta ou, pior, enfrentando “um ambiente que só produz mais sofrimento”, como ele classifica os hospitais psiquiátricos. Nada de acolhimento. Nada de atenção. Nada de cuidados em liberdade.
Dados obtidos pela reportagem do Extra Classe expõem o caos que tomou conta do serviço de saúde mental de Porto Alegre nos últimos anos, com superlotação de emergências, esperas de dois anos para uma consulta e desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no atendimento de populações infantis e jovens.
O Plantão de Emergência em Saúde Mental (PESM) de adultos no Postão da Cruzeiro (PACS), zona sul de Porto Alegre, registrava uma lotação de 225% na terceira semana de fevereiro, segundo informações do registro diário de atendimentos da Secretaria Municipal de Saúde. Para um total de 14 leitos, havia então 27 pacientes. No último dia 21 de fevereiro, a situação se agravou: 34 pacientes estavam à espera de atendimento.
Na outra emergência psiquiátrica da cidade, no PESM do Iapi, na zona norte da capital gaúcha, o quadro era muito semelhante na mesma semana: lotação de 241%, com 29 pacientes para as 12 vagas existentes. Na média, combinando as demandas por leitos adultos e infantis, a rede pública de saúde mental apresentava um índice de ocupação de 152% em Porto Alegre, com 27 pacientes esperando vaga nos leitos das emergências.
Outro sintoma do caos: para obter uma consulta especializada nas unidades de atendimento básico da prefeitura, a fila no dia 15 de fevereiro chegava a 2.703 pacientes. Para os casos considerados como de baixa gravidade, o tempo médio de espera para uma consulta está em quase dois anos (538 dias).
No caso de atendimento infantojuvenil, que envolve crianças e adolescentes, a situação é ainda mais grave – mesmo que a demanda seja menor. Isso porque existem apenas três Centros de Atendimento Psicossocial (Caps) em Porto Alegre para atender a esse público.
Dos 15 Caps da capital, 11 não são administrados pela prefeitura. Conforme Lima, é uma estrutura insuficiente para dar conta das necessidades da população. “Sem dúvida, é um cenário bastante crítico”, diz a especialista. “Não temos ideia da demanda escondida, que não está nos dados oficiais”, completa.
Em 2019, Conselho já apontava situação de calamidade
Em 2019, o Conselho Municipal de Saúde já havia alertado para a situação de “calamidade” dos serviços de emergência em saúde mental de Porto Alegre, provocada pelo contínuo desmonte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) vinculada ao SUS. “A Rede vem sofrendo precarização e desmontes há muitos anos. Porém, no atual governo (2019) da prefeitura, isso se acentuou vertiginosamente. Exemplos são o fechamento dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf) e a demorada fila virtual de atendimento criada a partir da implantação do sistema Gercon”, denunciou o órgão por meio de uma nota pública.
PEC 95 tirou os recursos e sabotou reforma psiquiátrica
De lá para cá, a situação só se agravou. A precarização do serviço de saúde mental na capital dos gaúchos tem relação direta com a Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos, a partir de 2017 (ainda no governo Michel Temer), os gastos sociais da União. A emenda impactou todo o serviço de saúde oferecido pelo SUS, mas, notadamente, as demandas psiquiátricas porque são as mais invisíveis em relação a outras modalidades de atendimento.
Integrante do Fórum Gaúcho de Saúde Mental, o qual congrega diversas entidades comprometidas com a luta antimanicomial, Francisca Jesus acredita que só a revogação imediata da Emenda Constitucional 95 pode atenuar os efeitos danosos da contenção de verbas sobre a RAPS, que transformaram a lei da reforma psiquiátrica, de 2001, em um “puxadinho”, sem condições de oferecer abrigo e segurança a quem precisa.
É como se uma criança tivesse de usar, pelos 20 anos seguintes, a mesma roupa para se vestir. Não tem como dar certo. “É necessário investir muito mais na Rede para que possamos reorganizar as premissas da lei da reforma psiquiátrica, que está sendo paulatinamente desmontada. Estamos em ano de eleição. É hora de exigir comprometimento dos candidatos em relação a isso”, argumenta a especialista em direitos humanos. O impacto maior do desmonte, segundo ela, é sobre as populações mais pobres, especialmente pessoas negras.
A Lei 12.216/2001, da reforma psiquiátrica, reorganizou o atendimento em saúde mental no país e estabeleceu uma cobertura de base territorial e comunitária como rede articulada de cuidados. Na prática, esse atendimento tem como objetivo garantir que o modelo de internação em unidades psiquiátricas – os hospícios ou manicômios – só seja utilizado após se esgotarem todos os outros recursos possíveis de abordagem.
Foi o que salvou o serígrafo Dirceu Júnior. Como foi acolhido em uma unidade básica e encaminhado para uma oficina de trabalho e geração de renda para grupos de saúde mental, Dirceu não precisou buscar um serviço de emergência, que quase terminou em internação. O GerAção POA existe há 25 anos e oferece cursos e capacitação profissional – foi lá que ele aprendeu o ofício e é lá que ministra oficinas para outros usuários do sistema.
“Era uma referência para a cidade”, diz Dirceu sobre o serviço de capacitação. Mas as mudanças de orientação política por parte de governos comprometidos com as privatizações, além dos efeitos da Emenda 95, acabaram relegando o GerAção POA a segundo plano. “O número de servidores foi reduzido pela metade. Hoje, são pouco mais de 100 usuários”, lamenta.
Outro exemplo de ataque à reforma psiquiátrica é a mudança na forma de atendimento primário da RAPS, que, em 2019, passou a fazer parte do Gercon (gerenciamento de consultas) da Secretaria Municipal de Saúde. O sistema coloca todos os casos em uma mesma fila, o que, para a saúde mental, se mostrou desastroso.
“Essa mudança na forma de acesso ao serviço de saúde mental foi muito significativa e impactou negativamente, na nossa avaliação, o ingresso dos usuários no sistema. Antes, a regulação era feita pelas próprias equipes especializadas, com análise de cada caso a partir de uma base territorial. Agora, a avaliação é feita por reguladores vinculados a uma central de atendimento a partir de uma matriz meramente biomédica”, explica a vice-coordenadora do Conselho Municipal de Saúde.
Em plena pandemia, orçamento da saúde mental diminuiu
Esses fatos, entretanto, estão longe de serem os maiores problemas do setor. Em 2022, Porto Alegre reduziu os recursos próprios destinados à saúde mental em mais de R$ 1 milhão, passando de um orçamento de R$ 44,1 milhões em 2021 para R$ 43 milhões este ano – há ainda R$ 2,2 milhões em aquisição de materiais e equipamentos que dependem de empenho.
Em relação ao orçamento total da saúde no município, os recursos para a saúde mental também foram reduzidos. Passaram de 2,21% da despesa total da saúde em 2021 para 2% em 2022. A despesa com pessoal também caiu no setor: de R$ 1,99 milhão no ano passado para R$ 1,26 milhão neste ano.
O que está por trás desses números é a constante “contratualização” dos serviços de saúde em Porto Alegre – e não só da saúde mental. Ou “empresariamento”, como prefere definir o Conselho Municipal de Saúde: das 131 unidades municipais de atenção básica, que são a porta de entrada do sistema, cerca de 80% já foram transferidas para terceiros.
Dos 15 Caps de Porto Alegre, especializados em atendimento psicossocial, apenas quatro estão sob gestão direta do município – outros seis foram repassados para entidades privadas sem fins lucrativos, e cinco são administrados pelo Grupo Hospitalar Conceição e pelo Hospital de Clínicas. Os contratos com as organizações sociais custam cerca de R$ 1,6 milhão mensais para a prefeitura.
O processo de terceirização se iniciou em 2018 no governo de Nelson Marchezan (PSDB), que transferiu a administração de duas unidades de pronto atendimento (UPA) – Lomba do Pinheiro e Bom Jesus – a organizações sociais sem fins lucrativos.
O repasse anual da prefeitura para as UPAs, administradas pela Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), chegou a R$ 46,8 milhões em 2020. O Conselho Municipal de Saúde reprovou as contratualizações, porém a política continua sendo executada pelo sucessor de Marchezan, Sebastião Melo (MDB).
Na avaliação do Conselho, trata-se de um retrocesso na medida em que não há garantias quanto à qualificação dos profissionais que irão atuar pelas organizações sociais e tampouco em relação à continuidade do serviço, já que a estrutura está regida por contratos de duração determinada.
Os quatro serviços residenciais terapêuticos da cidade, além disso, estão terceirizados para a organização social Instituto Renascer, que, em 2021, foi alvo de uma operação da Polícia Federal sobre um rombo de R$ 10 milhões em contrato com a prefeitura. As casas recebem usuários crônicos oriundos de internações longas. Esses pacientes deveriam estar vinculados aos serviços de acompanhamento da RAPS, mas esse vínculo não é garantido no caso de serviços terceirizados.
A Secretaria Municipal de Saúde informou que a lotação nas duas emergências psiquiátricas de Porto Alegre e as filas para as consultas especializadas se devem ao aumento da demanda provocado pela pandemia de covid-19. “Muitos profissionais seguiram atuando de forma remota, mas nem todos os pacientes têm condições de fazer atendimento online. Além disso, houve um aumento dos casos de saúde mental durante a pandemia. Casos prioritários, em geral, conseguem agendamento em 15 dias. Mas casos que não são urgentes podem levar até dois anos”, confirmou a coordenadora de saúde mental da Secretaria, Cristiane Stracke.
Conferência estadual buscará respeito à lei e aos direitos humanos
Defender os direitos humanos, a garantia à vida e à saúde mental é o objetivo da 4ª Conferência Estadual de Saúde Mental. Marcada para 8, 9 e 10 de abril deste ano, na sede da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS), em Porto Alegre, o evento será realizado com o tema Política de saúde mental como direito: pela defesa do cuidado e liberdade rumo a avanços e garantias do serviço da atenção psicossocial no SUS.
O encontro estadual será precedido de conferências municipais em pelo menos 67 cidades do estado. Na capital gaúcha, a conferência municipal irá ocorrer entre 31 de março e 2 de abril de forma virtual. “Um dos princípios básicos do SUS é a participação da comunidade na definição de políticas públicas”, lembra Claudio Augustin, presidente do Conselho Estadual de Saúde.
As conferências municipais deverão propor alternativas para as políticas públicas e escolher delegados para o encontro estadual. Em novembro, a Conferência nacional deverá consolidar todas as propostas deliberadas em nível estadual para oferecer as diretrizes ao novo governo, que já estará eleito.
“Temos uma lei estadual muito boa, uma lei federal na mesma linha da estadual, mas a cada ano há novas tentativas de mudança para pior da legislação”, explica Augustin.