Sinpro/RS: Educação infantil e o professor em construção

Quais as atribuições dos professores que atuam na educação infantil com crianças de zero a três anos de idade? Para o doutorando e mestre em Educação Paulo Sergio Fochi, esta definição ainda está em construção e a sua prática, muito longe da teoria. E assegura: Estamos inventando esse docente, inclusive para marcar este lugar como sendo o do professor de crianças, que não é o de alunos, e que tem outra visão curricular. Professor da faculdade de Pedagogia e coordenador e professor do curso de especialização em Educação Infantil da Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos), Focchi é autor de Afinal, o que os bebês fazem no berçário? (Ed Penso, 2015) e Infância e Educação Infantil: linguagens (Editora Unisinos, 2014), entre outros. O educador conversou o com o Extra Classe sobre o cenário da educação infantil, especialmente, no Rio Grande do Sul, e o quão distante estamos de trabalho de qualidade em relação às especificidades desta primeira etapa da educação básica.

Extra Classe – O que é mais urgente em termos de políticas para o setor de educação infantil?
Paulo Fochi – O problema de acesso das crianças. E está longe de ser equacionado. Só em Porto Alegre, da última radiografia que o Tribunal de Contas do Estado fez, que é recente, faltavam 13 mil vagas.

EC – Mas trata-se de um direito…
Fochi – Gosto de falar que a educação infantil é um direito das crianças. Embora pareça banal, não é tão óbvio para as pessoas, nem para o sistema, quando existe um critério de atendimento.

EC – Assim como o próprio conceito de educação infantil, pós-LDBEN, que refere a uma primeira etapa da educação e não ser apenas uma creche?
Fochi – A palavra creche já tem um problema por ter uma má interpretação e por permanecer na legislação. E as duas únicas nomenclaturas oficiais que temos para denominar educação infantil é creche e pré-escola. A palavra creche está associada ao assistir as crianças, ao cuidar. Mas se cuidassem já era uma grande coisa, né? Seria maravilhoso. O cuidar diz respeito às relações humanas e nós estamos falando de crianças com quatro meses que estão chegando ao mundo e indo para uma instituição. Então, se cuidassem, perfeito. O problema é que antes e também agora nós estamos longe de falar de um trabalho que se cuide das crianças no sentido legítimo da palavra cuidar.

EC – Por quê?
Fochi – Um exemplo. As crianças são obrigadas a almoçar às 10h30 da manhã em 15 minutos porque em seguida virá a próxima turma. A diferença entre o adulto e a criança neste sentido é de que o adulto já sabe lidar com apetrechos. Para as crianças, aprender a usar os apetrechos torna-se parte do comer e parte da aprendizagem deles, do currículo, inclusive. Imagina para uma criança que já chega ao mundo institucionalizada aos quatro meses. Sou a favor da institucionalização, só pra deixar claro. Mas não sem tempo para comer. E, esquizofrenicamente, em paralelo a isso, as escolas infantis fazem projetos pró-alimentação saudável. Então, vão contar uma historinha sobre alimentação saudável, e vão cantar musiquinhas sobre isso enquanto as crianças não comem todos os dias bem. E estou incluindo as privadas, pois não se trata apenas de um problema das públicas.

EC – A famosa massa com salsicha?
Fochi – Isso, sem contar os lanchinhos com pipoca, bolachinhas recheadas e o dia da porcaria. Se tem uma coisa que a neurociência tem concordado com a pedagogia é de que aquilo que se repete diariamente é o que efetivamente constitui uma aprendizagem e não aquelas atividades artificiais, esporádicas. O cotidiano tem uma força muito grande.

EC – Mas e a creche, enquanto conceito?
Fochi – A gente tenta a todo custo se livrar da palavra “creche”, por considerar feia e diz respeito a um lugar que é menor, mas efetivamente a gente não superou o problema da creche, que não é na palavra. O problema da creche é em como se dá as relações com as crianças.

EC – E como ficam os profissionais que trabalham com as crianças, eles são reconhecidos como profissionais de educação?
Fochi – As instituições que têm predominância do fundamental em relação às turmas de pré-escola têm um sério problema de enxergar as professoras deste segmento como “as professorinhas” e assim são tratadas pelas pessoas. Uma coisa que escuto muito delas é que nas reuniões de professores as pautas da educação infantil nunca aparecem. Em geral, existe um coordenador e um supervisor para todos e essas pautas são condicionadas ao critério do “se der tempo”. Esta é a cultura de uma turma de pré-escola junto com o ensino fundamental.

EC – Como aconteceu isso?
Fochi – A gente teve grandes perdas em 2014, quando se tentou universalizar obrigando a matrícula de crianças de quatro anos. O que os municípios em geral fizeram? Deslocaram as turmas de pré-escola para os prédios de ensino fundamental, passaram de turno integral para turno parcial – porque duplica o atendimento – e deixaram os prédios de educação infantil quase que exclusivamente para as turmas de zero a três anos, o que corresponderia à creche. Existe uma diferença de comportamento. Em termos de uma cultura institucional é uma diferença quando o profissional está somente entre seus pares e quando não está. Alguns autores dizem que na docência nunca chegamos à profissionalização. Aquilo que a sociologia do trabalho nomeia como os itens de uma institucionalização, nós professores nunca alcançamos.

EC – Como se percebe isso?
Fochi – Quando a gente olha pra educação infantil e mira nos concursos, que é uma coisa que eu consulto bastante, a carga horária é maior do que a dos professores do fundamental, o salário não é maior, na verdade é inferior. A legislação deixa abertura para muita coisa, porque ora ela fala em “adulto”, ora ela fala em “professor”. E, sabemos, que na primeira cabe um universo de possibilidades, mas quando você fala “professor” já é um termo que restringe bastante. A gente tem turmas de educação infantil que demandam mais de um adulto ou professor ou estagiário ou auxiliar.

EC – Ainda há muita confusão entre as atribuições do professor e do auxiliar?
Fochi – Aí, ao procurar na legislação o auxiliar não existe. Não existe a função do auxiliar. O que o auxiliar faz? Para mim, isso diz respeito a esse lugar do profissional que nós ainda não conquistamos plenamente. Tem a ver inclusive com reconhecer qual a especificidade da educação, por exemplo. Há uma coisa de um mês atrás, um município me ligou e perguntou se um pedagogo que é professor de berçário poderia trocar fraldas. Se isso não deveria ser uma incumbência do auxiliar. Isso é tão interessante, porque se a gente for pensar do ponto de vista da formação, não tem nada que vá tratar na formação inicial desse professor sobre o “trocar fralda”. A minha especialidade é bebês. É o que eu estudo especificamente. É fundamental o momento da troca. É um momento da maior intimidade de uma criança que precisa constituir o vínculo com alguém, mesmo que seja profissional, para o que diz respeito à sua subjetivação. Essa criança passa doze horas dentro de uma instituição. Não é só uma questão de higiene, mas também de desenvolvimento da inteireza da criança.

EC – E é função docente trocar a fralda?
Fochi – Sim. Eu defendo que seja o professor. Só que do ponto de vista da formação, ele não aprende sobre isso. Daí eu brinco sempre que o método, inclusive quando eu fui professor de criança chamava-se NHP (Na Hora Pinta): um jeito de trocar a fralda, de alimentar seis ao mesmo tempo, etc. Porque a profissão de professor da educação infantil, as atribuições, por vezes se confunde com questões maternas, o que eu acho equivocado. Mas confunde porque a formação também não dá conta.

EC – Existe muito desvio de função?
Fochi – Tem uma coisa que, nas escolas de educação Infantil são para o bem e para o mal. O fato de ser uma casa, torna mais amável para as crianças do que um prédio, as escolas dos grandes como eles falam. É um grande choque pra eles quando mudam de uma para a outra. Eu fiz uma pesquisa e crianças da última turma da educação infantil trocaram cartas com uma turma do primeiro ano do fundamental. Os pequenos queriam saber como era a escola dos grandes e essas crianças que recém tinham chegado na escola dos grandes contaram como é que era melhor chegar lá. E, a primeira pergunta dos pequenos era: “onde é o banheiro?”. Nós ficamos muito surpresos com essa pergunta. Pois achamos que eles iam perguntar sobre pátio, sobre brincadeiras, sobre comida, sobre qualquer outra coisa. A gente foi explorar isso e percebemos o óbvio. Elas têm banheiro na sala ou muito próximo. Eles sempre sabem onde é. Então imagina a angústia de estar num lugar e não saber onde fica o banheiro. Então, o lado bom da escola infantil é o lugar estar mais associado ao ambiente familiar, pois acolhe o universo das crianças.

EC – Mas também tem um outro lado, que não é tão bom, não é?
Fochi – Por outro lado, do ponto de vista profissional se confunde tudo. Mas eu não acho que isso ocorra por conta do ambiente familiar, ocorre porque não temos claras as funções do professor da educação infantil. Pra mim é muito claro que o professor da educação infantil deve trocar fralda e saber alimentar uma criança. E isso é muito importante, e tem de aprender na formação inicial. Aliás, o critério não pode ter de ser mãe para trabalhar com bebês, assim como não precisa ser mãe para ser pediatra. Por outro lado, a gente tem de clarear no sentido de que esse profissional não faz trabalho de secretaria, nem levar um monte de coisas pra casa, não tem de cozinhar e nem faxinar.

EC – Nas escolas privadas, como a questão do aluno-cliente impacta na vida dos professores?
Fochi – Na escola privada tem uma relação de cliente com os pais que é muito nociva. Quase que o professor vira um profissional de tele-marketing, se por exemplo um aluno começa a faltar. Além de tentar manter o aluno na escola o professor precisa fazer as vezes de psicólogo e assistente social. Esse é o problema do clientelismo no ensino privado. Num ambiente em que as relações não estão profissionalizadas propicia esse tipo de desvio. Na educação infantil o professor é uma profissão que está sendo inventada. Sem aquela ideia sobre o professor que dá aula para todos ao mesmo tempo e da mesma forma. Estamos inventando esse professor, inclusive para marcar este lugar como sendo o do professor de crianças, que não é o de alunos e que tem outra visão curricular.

EC – Que professor é esse?
Fochi – Não é a tia, não é a cuidadora, não é a babá e também não é a professora do fundamental. É bem diferente. Eu, particularmente acho que o fundamental deve ser reinventado. Ele não se reinventa. Já se tentou com a ampliação do fundamental. Isso só reafirma como o fundamental está engessado e não tem como mexer. A ideia de educação nesse nível está fracassada há muito tempo desde quando eu era aluno. Mas, de qualquer modo, nós da educação infantil temos conseguido construir essa ideia de docência do ponto de vista das relações, do ponto de vista da pesquisa, mas precisamos melhorar as negociações do ponto de vista do trabalho. Vou dar um exemplo. Nas redes públicas temos conquistado um terço de hora para planejamento, porém ele é realizado fora da escola, o que é um equívoco, e muitas vezes funciona como folga. Na rede privada sequer existe este tempo para planejar.

EC – E como fazer essa distinção entre as atribuições e papéis dos adultos na educação infantil?
Fochi – Uma das questões que a escola privada tem de compreender diz respeito ao ser professor, que não é só dar aula. Não é só estar com as crianças. Tem uma outra parte que é tão importante quanto, que vai qualificar a relação, dar um lugar para o professor e recuperar sua autoria do trabalho. Isso passa longe da tarefa de auxiliar, pois o distingue de um outro adulto que não é o professor.

Do jornal Extra Classe, do Sinpro/RS

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