Sobre o ódio do STF aos direitos trabalhistas e à Justiça do Trabalho

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

O eternamente acreditado e sempre louvado, com inteira justiça, professor José Geraldo de Souza Júnior — que foi reitor da UnB e idealizador e organizador do relevantíssimo movimento “Direito achado na rua”, ao início dos anos de 1990 —, em debate na CPI do MST, em junho de 2023, com sua invejável serenidade, inesgotável cultura multifacetada e perspicaz ironia, disse a uma deputada (a qual, feito autômato, acusava a esmo o MST), que com ela era impossível dialogar, porque sua percepção, como cosmovisão, não lhe permite enxergar a realidade, mas só o que dela recorta, que nada tem de real.

Essa magistral lição filosófica, guardadas as devidas proporções, calha como luva ao recorte que o Supremo Tribunal Federal (STF) faz das relações de trabalho, por ele mesmo reconhecidas, em passado recente, como talhadas pela assimetria (desigualdade), no processo RE 590415, julgado em 2015.

A proposital percepção do STF, como cosmovisão social, não encontra eco na realidade brasileira, sendo talhada não por deficiência cognitiva, mas como tática para alcançar a estratégia de domínio absoluto do capital sobre o trabalho, que, juntamente, com a Justiça do Trabalho, que tem a função social constitucional de o resguardar, deve ser aniquilado, nada restando do que é preconizado pelo Art. 7º da CF.

Para fazer triunfante e insuscetível de qualquer abalo sua estratégia, despudoradamente, cria uma realidade paralela, como que a plagiar a famosa série de televisão do final dos anos de 1970 e início de 1980, Fantasy Island (Ilha da Fantasia), criada por Spelling e Golberg e exibida pela rede de televisão ABC, em que o misterioso senhor Roarke, esplendidamente estrelado por Ricardo Montalban, fazia concretizarem-se todas as fantasias de seus hóspedes, por mais surreais que fossem.

Como é consabido, desde suas origens, a fantasia do capital, aqui e alhures, é navegar-se livremente, sem restrição, sem parâmetros e sem limites. Em uma palavra: navegar-se em um mundo no qual nem sequer se cogite a existência de direitos trabalhistas e de Justiça do Trabalho que os proteja.

No caso brasileiro, ao STF, erigido como guardião da CF, conforme seu Art. 102 — o que ele repudia às escâncaras quanto aos direitos fundamentais sociais —, cumpre o perverso papel de realizador dessas fantasias capitalistas, como se fora o Roarke da série Ilha da Fantasia. Com a abissal diferença de que, nessa, as fantasias eram ficcionais; no caso brasileiro, são convertidas em realidade que se transforma em tragédia social.

As centenas de decisões proferidas pelo STF nos últimos anos, com vistas a completar o que as leis da terceirização (Lei 13.429/2017) e da reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) iniciaram, patenteiam o contrato de vassalagem que celebrara com o capital, como que a repetir o que era prática comum no período feudal. A crucial diferença é que, naquele, o vassalo recebia proteção do suserano; na atual realidade brasileira, ao suserano, que é o capital, não compete nenhuma responsabilidade, cabendo ao vassalo, o STF, os papéis de protetor, vigilante e executor da vontade do suserano, sem nada exigir, até onde se sabe.

No conto A Sereníssima República (Conferência do Cônego Vargas), de Machado de Assis, publicado em 1882, em “ Papéis avulsos”, à eleição de um coletor de espórtulas (donativos), na república das aranhas, concorreram Caneca e Nebraska, tendo sido extraída do saco eleitoral a bola com o nome de Nebraska. Porém, faltando a última letra, pois que nela estava grafado Nebrask.

Apesar de cinco testemunhas jurarem que, nos termos da lei, eleito era o próprio e único Nebraska da república, o candidato derrotado recorreu do resultado, sob o argumento de que o nome retirado era o dele, Caneca, e o não o de seu concorrente.

A questão foi resolvida com o parecer de “um grande filólogo”, que, após torturar as letras, “demonstrou” que a ausência da última letra do nome Nebraska não era fortuita, mas sim intencional, posto que o nome realmente escrito era Caneca. Sendo acolhida essa teratológica interpretação filológica, resolveu-se a eleição nesses termos, com a vitória do candidato recorrente.

Como que imitando a arte, o STF, quando o assunto são os direitos fundamentais sociais, age como o filólogo do citado conto para os aniquilar, atendendo às recorrentes demandas do capital, a quem ele jurou vassalagem infinda; ou, parafraseando a expressão apache, utilizada no filme “Caminhos ásperos”, de 1953, varlabena, que significa para sempre.

Ou seja, tortura as expressões constitucionais para lhes dar o sentido que não comportam, mesmo que isso malfira sua literalidade. Ilustram essa interpretação disforme centenas de decisões que restringem os direitos elencados no Art. 7º da CF, que são 34, àqueles com vínculo empregatício. Isso, não obstante a literalidade do dispositivo constitucional ser a seguinte: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”.

Assim sendo, na propositalmente caolha ótica do STF, a expressão direitos dos trabalhadores é reduzida a direitos dos contratados formalmente como empregados. Só isso já seria bastante para fazer corar o filólogo do conto machadiano.

Em que pese o Art. 114 da CF, de forma literal, isto é, sem redução e/ou acréscimo de qualquer letra, asseverar que “Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I as ações oriundas da relação de trabalho…”, o STF, em dezenas de decisões, afirma que a competência para tal mister, quanto aos contratos autônomos e pejotas, é da justiça comum, como se colhe na reclamação (Recl.) 72873, que remete a ela os processos que versam sobre reconhecimento de vínculos em contratos pejotas; e no Tema 1389 (ARE 1532603), em que o ministro Gilmar Mendes suspende, liminarmente, a tramitação das centenas de milhares de processos que envolvem a famigerada pejotização.

Na ADI 3975, que julgou constitucional a Lei 11.603/2007, que autorizou o trabalho aos domingos nas atividades do comércio, o STF reduziu o alcance do advérbio de modo preferencialmente, grafado no inciso XV, do Art. 7º — repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos —, para interpretá-lo como de vez em quando aos domingos.

Em belíssimo artigo publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico, ao 1º de maio corrente, com o título “Pejotização: o que está em jogo no Supremo”, a procuradora do Trabalho Rosângela Lacerda, do MPT da 5ª Região (BA), e a juíza do trabalho do TRT da 5ª Região, Sílvia Teixeira do Vale, bradam:

Não é mais novidade que o Supremo Tribunal Federal tem tentado nos últimos anos fazer a reforma trabalhista que não foi feita pelo Estado-Legislador em 2017. As reclamações constitucionais vinham atuando como meio para se alcançar a expansão do que não foi dito no acórdão da ADPF nº 324 ou no Tema nº 725 de Repercussão Geral, sendo certo que mesmo na ausência de aderência estrita às teses firmadas, ainda assim as reclamações vêm servindo como meio para revolver fatos e provas, analisar se há ou não relação de emprego e se a Justiça do Trabalho possui competência material para analisar as lides que sempre analisou.

[]

Estaria a nossa Corte Suprema tentando operar mutação constitucional, já que o texto constitucional permanece o mesmo, mas o seu sentido vem sendo desfigurado? Parece que sim, pois concluir que a Justiça especializada não é competente para processar e julgar relação de trabalho, quando literalmente o dispositivo prevê justamente isso, de fato, modificar o sentido da Constituição, sem, no entanto, modificar o seu texto…”.

Vale registar, ainda, que a corrida desenfreada ao STF, por meio de centenas de reclamações contra decisões da Justiça do Trabalho, que insiste em cumprir sua função social constitucional, de proteção ao trabalho, e que são, por ele, apreciadas e deferidas, a rigor, sem exceção, longe de engrandecer a Corte, só a apequena, posto que ela, voluntariamente, acaba se transformando em plantão judiciário. E o que é pior: não o faz para proteger direitos, mas, ao reverso, para os afastar.

Diante dessa realidade recortada de ponta cabeça, parece não remanescer dúvida alguma de que a realidade que o STF recorta não existe para além daqueles que a criam, emolduram e defendem cegamente, que representam a maioria absoluta dos 11 ministros que o compõem.

Mais uma vez, parafraseando o professor José Geraldo de Souza Júnior, citado ao início, aquele que vê, que é o SFT, só vê o que está escrito nos interesses que ele lamentavelmente representa, que são os do capital, tratando sempre, como inimigos a serem abatidos impiedosamente, os direitos trabalhistas e a Justiça do Trabalho que os protegem.

Por tudo o que foi dito e o que não foi, por falta de espaço, muito embora exista, dando mais dramaticidade ao canto funeral do mundo do trabalho, é preciso que o movimento sindical e a Justiça do Trabalho reajam e saiam da letargia em que se encontram, assistindo ao STF os destruir com ódio, como defendia Quincas Borba, em sua filosofia “Humanitas”: “Ao vencido, compaixão ou ódio”. No caso concreto, não há compaixão, só ódio.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo
666filmizle.xyz