STF apedreja trabalhadores/as e considera constitucional normas coletivas que retirem direitos

Os instrumentos normativos coletivos, quando estabelecerem a ultratividade das normas neles contidas, não são válidos, mesmo que pactuados livremente. Porém, quando reduzirem ou suprimirem direitos, sem qualquer contrapartida, são constitucionais

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

Os emblemáticos versos da epígrafe compõem o poema “No meio do caminho”, do poeta Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1928, que parecem metaforicamente tratar-se das dificuldades e dos obstáculos do cotidiano da vida.

2          Parafraseando-os, com esse sentido, pode-se afirmar que, no meio do caminho dos/as trabalhadores/as brasileiros/as, há muito mais que uma pedra: há uma montanha gigantesca e mal-assombrada, o STF (Supremo Tribunal Federal), que, a cada decisão, fragiliza-os e os desprotege, tornando-os mais suscetíveis à precarização e à degradação de suas condições de trabalho e, portanto, de vida, ao tempo em que garante a quem os degrada — o capital — segurança jurídica e risco mínimo.

3          Prosseguindo nessa sanha de amortalhar direitos fundamentais sociais, o STF concluiu, ao dia 2 de junho corrente, o julgamento do agravo em recurso extraordinário (ARE) 1121633, que tinha como objeto a declaração de constitucionalidade de instrumentos normativos coletivos (convenções e acordos coletivos) que se se cingem à redução e/ou à supressão de direitos, sem nenhuma contrapartida aos/às trabalhadores/as prejudicados/as.

4          Consoante a certidão de julgamento, inserta nos autos do realçado ARE, foi fixada a seguinte tese com repercussão geral:

“São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.

5          Na página de notícias dessa Corte, no mesmo dia de conclusão do julgamento, foi postado o seguinte texto:

“STF decide que norma coletiva que restringe direito trabalhista é constitucional

O Tribunal observou, contudo, que a redução de direitos por acordos coletivos deve respeitar as garantias constitucionalmente asseguradas aos trabalhadores.

O Supremo Tribunal Federal (STF), na sessão desta quinta-feira (2), decidiu que acordos ou convenções coletivas de trabalho que limitam ou suprimem direitos trabalhistas são válidas, desde que seja assegurado um patamar civilizatório mínimo ao trabalhador. Por maioria de votos, o colegiado deu provimento ao Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1121633, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.046).

No caso concreto, questionava-se decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que havia afastado a aplicação de norma coletiva que previa o fornecimento, pela Mineração Serra Grande S.A., de Goiás, de transporte para deslocamento dos empregados ao trabalho e a supressão do pagamento do tempo de percurso. O fundamento da decisão foi o fato de a mineradora estar situada em local de difícil acesso e de o horário do transporte público ser incompatível com a jornada de trabalho.

No recurso, a mineradora sustentava que, ao negar validade à cláusula, o TST teria ultrapassado o princípio constitucional da prevalência da negociação coletiva.

Direitos indisponíveis

Prevaleceu, no julgamento, o voto do ministro Gilmar Mendes (relator) pela procedência do recurso. Ele afirmou que a jurisprudência do STF reconhece a validade de acordo ou convenção coletiva de trabalho que disponha sobre a redução de direitos trabalhistas.

O ministro ponderou, no entanto, que essa supressão ou redução deve, em qualquer caso, respeitar os direitos indisponíveis, assegurados constitucionalmente. Em regra, as cláusulas não podem ferir um patamar civilizatório mínimo, composto, em linhas gerais, pelas normas constitucionais, pelas normas de tratados e convenções internacionais incorporados ao direito brasileiro e pelas normas que, mesmo infraconstitucionais, asseguram garantias mínimas de cidadania aos trabalhadores.

A respeito das horas in itinere, tema do caso concreto, o ministro afirmou que, de acordo com a jurisprudência do STF, a questão se vincula diretamente ao salário e à jornada de trabalho, temáticas em relação às quais a Constituição autoriza a elaboração de normas coletivas de trabalho (inciso XIII e XIV do artigo 7° da Constituição Federal).

Ele foi acompanhado pelos ministros André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli e pela ministra Cármen Lúcia.

Padrão protetivo

Ficaram vencidos o ministro Edson Fachin e a ministra Rosa Weber, que votaram pelo desprovimento do recurso. Na avaliação de Fachin, considerando-se que a discussão dos autos envolve o direito a horas extras (in itinere), previsto no artigo 7°, incisos XIII e XVI, da Constituição, é inadmissível que a negociação coletiva se sobreponha à vontade do legislador constituinte.

Tese

A tese fixada foi a seguinte: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.

6          Não é demais lembrar que, uma semana antes, dia 27 de maio, o STF concluiu o julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 323, decretando, por 8 votos a 3, o fim da ultratividade da norma coletiva e autorizando, expressamente, a supressão de todos os direitos nela insertos ao dia seguinte ao término de seu período de vigência, caso não tenha sido expressamente renovada. Consta do voto vencedor do ministro relator, Gilmar Mendes:

Na hipótese de não ser ajuizado dissídio coletivo, ou não firmado novo acordo, a convenção automaticamente estará extinta”.

Como se não bastasse isso, que representa colossal derrota dos/as trabalhadores/as, assentou a constitucionalidade do § 3º do Art. 614 da CLT, com a redação dada pela Lei N. 13.467/2017, que impiedosamente dispõe:

§ 3º Não será permitido estipular duração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho superior a dois anos, sendo vedada a ultratividade”.

7          Comparando-se as duas decisões, forçosamente, é de se entender que o STF, no tocante aos direitos fundamentais sociais, ao menos desde 2015, quando abriu largos para a prevalência do negociado sobre o legislado (RE590415), age como o desalmado Procusto da mitologia grega, que, a pretexto de conformar suas vítimas ao comprimento de sua cama, feito sob sua medida, cortava-lhes as pernas e/ou os esticava à base da mutilação.

8          Eis o resultado da referida comparação: os instrumentos normativos coletivos, quando estabelecerem a ultratividade das normas neles contidas, esbarram-se na vedação do Art. 614, § 3º, ou seja, não são válidos, mesmo que pactuados livremente. Porém, quando reduzirem ou suprimirem direitos, sem qualquer contrapartida, são constitucionais.

9          Pois bem! Em que pese o rombo que essa decisão representa para o já agonizante processo negocial entre representantes patronais e laborais, por reiteradas decisões do próprio STF (ADIs 3431, 2200, 3975, ADPF 323 e RE 958252), não se deve tomá-la por alcance maior do que ela contém, para que não se arrefeçam à exaustão as legal e jurisprudencialmente enfraquecidas forças sindicais. Deve-se, isto sim, tomá-la como nela se assenta, tendo como referencial a supracitada matéria oficial, posto que publicada na página do próprio STF.

10        Nela, acha-se registrado relevante excerto do voto do relator, acolhido por 6 outros ministros, assim exarado:

O ministro ponderou, no entanto, que essa supressão ou redução deve, em qualquer caso, respeitar os direitos indisponíveis, assegurados constitucionalmente. Em regra, as cláusulas não podem ferir um patamar civilizatório mínimo, composto, em linhas gerais, pelas normas constitucionais, pelas normas de tratados e convenções internacionais incorporados ao direito brasileiro e pelas normas que, mesmo infraconstitucionais, asseguram garantias mínimas de cidadania aos trabalhadores”.

11        O ministro Luís Roberto Barroso, no voto proferido no RE 590415, acolhido pelos demais, aborda o alcance da expressão “patamar civilizatório mínimo”, agora, inserta no voto do ministro Gilmar Mendes, no ARE sob discussão, que assevera, no item 25:

Por fim, de acordo com o princípio da adequação setorial negociada, as regras autônomas juscoletivas podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo, mesmo que sejam restritivas dos direitos dos trabalhadores, desde que não transacionem setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade absoluta. Embora, o critério definidor de quais sejam as parcelas de indisponibilidade absoluta seja vago, afirma-se que estão protegidos contra a negociação in pejus os direitos que correspondam a um patamar civilizatório mínimo, como a anotação da CTPS, o pagamento do salário mínimo, o repouso semanal remunerado, as normas de saúde e segurança do trabalho, dispositivos antidiscriminatórios, a liberdade de trabalho etc. Enquanto tal patamar civilizatório mínimo deveria ser preservado pela legislação heterônoma, os direitos que o excedem sujeitar-se-iam à negociação coletiva, que, justamente por isso, constituiria um valioso mecanismo de adequação das normas trabalhistas aos diferentes setores da economia e a diferenciadas conjunturas econômicas”.

12        Tendo como base de referência essa prolação do ministro Luís Roberto Barroso, só se pode extrair do transcrito excerto do voto do ministro Gilmar Mendes no ARE 1121633, acolhido por 6 outros ministros — portanto, vencedor —, que os instrumentos normativos coletivos supressores e/ou redutores de direitos trabalhistas, no tocante àqueles assegurados pelo Art. 7º da CF, obrigatoriamente, cingem-se aos incisos VI, XIII e XIV, por expressa autorização do próprio texto constitucional, como se colhe de sua literalidade:

Art. 7º– São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[]

VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

[]

XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;

XIV – jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva”.

Ou será que, quando for instado a se pronunciar o alcance dessa realçada ressalva, o STF, parafraseando o jagunço Riobaldo, personagem central do monumental “Grande sertão: veredas”, dirá que “Um sentir é do sentente, mas o outro é o do sentidor”?

O único remédio é aguardar, torcendo-se para que essa metáfora não balize o inevitável pronunciamento do STF.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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