Teto de gastos: histérico, mercado força crise para pressionar juros e faturar com dólar
A crise, na verdade, estaria sendo fabricada pelo deus mercado — em proveito próprio! Quando derrubaram Dilma Rousseff, o mercado agiu exatamente como agora, compara ele, ao recordar a histeria com as pedaladas fiscais — por eles inventada. “Isso jamais teve pé nem cabeça”. Importância da pedalada: zero. O que conta é a Lei da Responsabilidade Fiscal. Pedalada e teto seriam invenções criminosas do empresariado nacional.
Entre outras incisivas colocações, Feldmann mostra como o Auxílio Emergencial e o recém-criado Bolsa Brasil (antigo Bolsa Família) tem potencial de aquecer a economia ao permitir que pessoas pobres possam consumir. Aumenta, portanto, a número de consumidores: a melhor coisa que pode acontecer para uma economia. Eis o segredo da China: transformou uma massa enorme de pobres em consumidores.
Diálogos do Sul: Recentemente, a expressão crise fiscal anda mais na boca da população do que Deus nos acuda. A vida vai piorar muito mesmo?
Roberto Feldmann: A questão central na alardeada crise fiscal é motivada pelo fato de o governo romper o teto de gastos. A verdade é que ela está sendo fabricada pelo mercado em proveito próprio.
Dá para demonstrar de que forma isso acontece?
Essa crise é totalmente exagerada porque o fato de o governo gastar acima do teto não quer dizer absolutamente nada. Primeiro porque o controle do teto é uma coisa absurda, uma camisa de força para complicar a vida dos governantes.
Trocando em miúdos, o que vem a ser isso?
Teto de gastos é idiotice total, um valor definido, pelo qual os gastos do governo Federal em um ano não podem exceder os gastos do ano anterior, corrigidos pela inflação. Besteira sem pé nem cabeça. Importante mesmo é a lei de Responsabilidade Fiscal, pela qual um governo não pode gastar mais do que arrecada. Mas o teto não tem cabimento. Imagine você que em determinado ano um governo arrecade muito. Nem assim a administração poderá gastar mais? É algo totalmente esdrúxulo. Enfim… como o governo está rompendo o teto de gastos isso está gerando uma crise.
O que não falta é gente criticando o novo Bolsa Brasil…
Isso tem de ser dito também. O rompimento do teto de gastos que está se colocando no Bolsa Brasil é algo que não tem cabimento. É mentira deslavada dizer que a é culpa do Bolsa Brasil o rompimento do teto de gastos do governo. O BB é um auxílio de R$ 400 para 17 milhões para famílias de baixa renda. Ele vai custar ao governo Federal R$ 84 bilhões por ano. Ele entra no lugar do Bolsa Família e acrescenta cerca de R$ 42 bilhões ao gasto, porque o Bolsa Família já custava a metade. Custa algo em torno de R$ 40 bilhões, agora dobrados.
Veja, R$ 40 bilhões é nada para um governo que gasta R$ 1,7 trilhões por ano. 40bi é pouco mais de 2% pouco. Quer dizer, o governo não tem como alocar esse valor para o Bolsa Brasil? Uma ajuda para 17 milhões de pessoas deixarem de passar fome? É isso que está complicando a vida do país? É um total absurdo.
Existem alternativas para sair desta sinuca?
Há incontáveis soluções. Por exemplo, a reforma tributária não feita até hoje. A injustiça tributária é alarmante no Brasil: se você ganha R$ 6 mil por mês, a alíquota do imposto de renda é de 27%. Se você ganha R$ 60 milhões/mês, é a mesma coisa. Não existe imposto sobre riqueza no Brasil, nem Imposto de Renda Progressivo. Não há Imposto sobre (grandes) Heranças, nada que taxe os ricos é aprovado neste país.
Ora, isso seria algo que resolveria o problema de uma forma muito simplificada. É muito fácil obter dos muito ricos esses 40 bilhões que estão faltando agora. Mas havia ‘ene’ outras formas. O centrão impôs ao governo Federal as emendas dos deputados. Eles precisam favorecer suas paróquias, os redutos eleitorais. Os deputados do Baixo Clero torraram R$ 18 bilhões. Poxa, esse dinheiro todo para fazer coreto no meio de praça. É isso que é importante?
Os militares ganham aumentos, cargos no governo, penduricalhos…
Mas nisso o governo não mexe. Melhor é jogar a culpa toda no Bolsa Brasil. A remuneração dos militares é outra alternativa, sim. Enquanto o soldo deles aumentou, o salário dos servidores públicos ficou congelado. No ano que vem, em 22, o aumento para as Forças Armadas vai custar 6 bilhões a mais no passivo. Não precisava desse aumento. Não deram aumento para ninguém. Por que dar os militares?
Quem lucra mais com esta crise?
A verdade é que o mercado quer gerar essa crise. Ele precisa dessa crise. E está criando um clima — muito ruim para o país — de desconfiança total. Veja bem, eu seria a última pessoa do mundo a defender Paulo Guedes ou Bolsonaro, mas o mercado está querendo passar uma imagem muito pior desta dupla (macabra) do que corresponde à triste realidade. Não há uma desorganização total da Economia como o mercado diz. Não há falta de controle absoluta sobre o orçamento, como diz o mercado.
Eles propagam tais ideias com total apoio da mídia. A imprensa não fala de outra coisa. Resultado: o dólar dispara, e aqui chegamos ao grande objetivo. Tem várias vantagens para o mercado, a partir da disparada do dólar.
Quais seriam as vantagens da Faria Lima?
Primeiro, o empresariado investe muito em dólar. Na verdade, nada mais fácil para eles do que fazer a moeda dos EUA disparar. É só provocar muito a procura por dólar. Os investidores estrangeiros saem do país e levam seu dinheiro. Começa a faltar dólar — como está acontecendo agora — e finalmente a moeda sobe. Isso acarreta sério problema para o país, principalmente para os pobres.
Isso porque o dólar no Brasil é o principal gerador de Inflação. Então se preparem: vamos ter um aumento inflacionário muito grande na medida em que o dólar for subindo. Os primeiros que vão sofrer são justamente são os mais pobres, que só tem possibilidade de comprar alimentos. E alimentos foram os que mais subiram nesse país. A inflação nos alimentos está na casa dos 30% de um ano para cá.
Pobres se esfolam, ricos fazem turismo na Lua e em Marte…
Ora, ricos não sofrem — como se sabe — porque têm aplicações em dólar. Vide Paulo Guedes: ele tem somente U$ 10 milhões aplicados lá fora. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, U$ 2 milhões bem guardados e aplicados no exterior. Eles ficaram muito mais ricos com a nova crise que assola o país. Para os super ricos em geral, essa desvalorização do real é muito boa. Eles acabam ganhando com isso.
Mas de que forma os magnatas faturam?
Basta acelerar a inflação no país e lá vem a solução: o recorrente aumento da taxa de juros. E quem ganha com a elevação do juro? O mercado, como sempre. Ninguém ganha mais do que o mercado. O sonho da vida de quem faz parte da elite do mercado é o juro alto — até porque a partir daí as pessoas passam a aplicar mais em renda fixa.
Quais seriam as consequências imediatas da crise atual?
A ciranda começa com o aumento da valorização do dólar — portanto a desvalorização do real. A inflação vai acontecer de maneira ainda mais forte ainda neste final de outubro e nas primeiras semanas de novembro. Isso vai fazer com que o governo tenha de aumentar as taxas de juros, exatamente o que o mercado mais quer na vida. O aumento na taxa de juros eleva o lucro dos bancos, incrementa a rentabilidade dos *rentistas. A Faria Lima fica muito feliz, é o sonho dela ver as taxas de juros nas alturas. No fundo do fundo, esta histeria que estamos vendo atualmente no mercado é totalmente forjada. Fabricada para que a gente tenha cada vez mais aumento na taxa de juros.
A tática já foi utilizada no passado…
E como. Veja o caso da derrubada da Dilma Rousseff, o que fez o mercado? A mesma coisa. Ficaram histéricos com as pedaladas fiscais. Inventaram pedaladas fiscais — algo que igualmente não tinha pé nem cabeça. Qual a importância da pedalada fiscal? Nenhuma. O que valeu e ainda vale é a Lei da Responsabilidade Fiscal. É exatamente o que está acontecendo agora com o teto. O que interessa teto de gastos? Eles inventam essas coisas para depois tirar do poder as pessoas que eles querem.
Agora, é bem provável que esse segmento empresarial queira tirar Paulo Guedes e o Bolsonaro. Há razões suficientes para assim proceder, mas o que não pode é o mercado ter tal poder.
Dá para estimar quantos são os donos do mercado?
Calcula-se que mercado no Brasil reúna cerca de 10 milhões de pessoas. Exagerando, poderíamos chegar a 15 milhões de indivíduos operando no mercado. Isso considerando as famílias todas. Por que, efetivamente, são as classes A e B que aplicam mesmo no mercado brasileiro, chegando nem sequer a 10% da população. Esse é o contingente que aplica no mercado. Como é que menos de 10% da população pode dominar completamente a Economia do Brasil? É um absurdo, nenhum país do mundo tem o poder que eles têm no Brasil.
Mais uma jabuticaba made in Brazil…
Em qualquer país, banco serve para fazer a economia girar, para fazer empresas crescer, investir nas empresas, permitir que elas comprem máquinas. No Brasil não. Eles quase não emprestam dinheiro. Eles vivem de aplicações financeiras: isso é absolutamente indecente, não serve para estimular a indústria brasileira, para fazer economia, o comércio do país funcionar.
Auxílio Emergencial e Bolsa Família são a antítese desta armação toda…
Gostaria de complementar algumas coisas importantes que ninguém está comentando. Quando se concede uma Bolsa Brasil como essa há muitos aspectos positivos. Você faz com que as pessoas mais pobres possam consumir. Portanto, aumenta a número de consumidores e isso é a melhor coisa que pode acontecer para uma economia: aumentar o volume de consumidores, eis o segredo.
O que a China fez para chegar a seu milagre econômico? Transformou uma massa enorme de pobres em consumidores. Esse é o milagre chinês.
O Brasil algumas vezes fez isso. Ano passado, por exemplo, isso ocorreu com o Auxílio Emergência. Os R$ 600 foram uma coisa muito boa, mas ninguém comenta isso — interessante, não acha? Em 2019, os estados brasileiros estavam completamente quebrados. Não tinham dinheiro nem sequer para pagar salário de funcionários, dinheiro para nada.
Algum exemplo, professor?
O Rio Grande do Sul, assim como muitos outros estados, estava falido em 2019. Agora estão todos muito bem, obrigado. De repente, todos os estados ficaram bem. Como? Acontece que, quando as pessoas mais pobres receberam os R$ 600 eles passaram a consumir. Esse consumo de leite, carne, pão, etc, geram Imposto de Circulação de mercadorias e Serviços, ICMS. 18% do valor que eles receberam foi gasto com ICMS — que move os governos estaduais.
Graças ao Auxílio Emergencial, foi gerado R$ 50 milhões para os estados da União. Todos resolveram suas pendências financeiras. Estão todos bem agora. Quando você dá dinheiro pras famílias mais pobres consumir é muito bom para a economia do país. Aumenta o consumo. No mínimo, aumenta o ICMS para os estados.
Mas o que não falta é engravatado falando que isso só agrava o problema por causa do déficit.
Não tem como achar que um auxílio como este agora em discussão vá trazer problemas. A melhor coisa que se pode fazer neste momento é justamente isso, na situação de crise atual. Dar condições de consumo a quem não tem, a fim de fazer as pessoas consumirem. Isso faz a economia se revigorar novamente. Portanto, essa histeria do mercado é totalmente descabida. É egoísta, como a elite brasileira. A verdade é que a elite econômica do Brasil é atrasada, ignorante — não sem razão que o Brasil foi o último país do mundo a acabar com a escravidão. Então, a elite nacional não percebe, não entende que, ao colocar dinheiro na mão dos mais pobres você gera consumo. E esse consumo faz a economia do país girar.
Qual é tua opinião sobre a ingerência do banqueiro André Esteves dublê de ministro na economia de Pindorama?
Em país civilizado, presidente de Banco Central não pode conversar com banqueiros para acertar valor da taxa de juros. É claro que para donos de banco, quanto maior for a taxa, mais eles vão ganhar. A taxa de juros tem de ser interessante para a Nação, não para os bancos. Taxa alta sempre causa recessão. Portanto, é assunto delicado e técnico. Não tem o menor cabimento consultar banqueiro para isso.
Demolidor, mestre.
*Capitalismo rentista (selvagem) é o termo usado para descrever a crença em práticas econômicas de monopolização do acesso a qualquer tipo de propriedade: física, financeira, intelectual, etc. Visa obtenção de lucros significativos sem contribuição para a sociedade.