“Uberização” da educação: saem pedagogos entram gestores
O País está hipnotizado pelo show diário de meganhagem midiática de colarinhos brancos sendo levados presos por cinematográficos policiais federais com suas reluzentes botas e armas negras.
Por Wilson Roberto Vieira Ferreira, no Cinema Secreto
Porém, a passos lentos mas seguros, no subterrâneo desse espetáculo de moralização nacional está ocorrendo uma revolução silenciosa que vai determinar o futuro das próximas gerações: reformas educacionais que estão impondo uma agenda secreta, a gestão de um novo projeto de nação.
Sai o Neodesenvolvimentismo lulopetista para entrar o Capitalismo Cognitivo. No campo educacional, sai o Construtivismo de Piaget para entrar as neurociências aplicadas à educação, turbinada por ONGs e institutos privadas do indefectível mundo financeiro. Saem pedagogos, entram engenheiros e gestores. No lugar de valores como autonomia e conhecimento entram “disparos neuronais” e “sinapses” para formar futuros profissionais que não mais lidarão com conhecimentos, mas com “efeitos do conhecimento” das plataformas tecnológicas – a “uberização” da educação.
Fala-se que o governo do desinterino Michel Temer carece de um projeto de nação: desmancha conquistas sociais, sucateia o patrimônio nacional e saqueia os cofres públicos correndo contra o tempo enquanto as delações premiadas não entregam todo mundo.
Mas por trás desses escândalos mostrados pela grande mídia (o show da meganhagem das conduções coercitivas da PF ao vivo) ou criticado pelas esquerdas (as denuncias sobre delações seletivas e o esbulho do Estado pela banca financeira), o consórcio golpista jurídico-político-midiático não está para brincadeiras e tem, sim, um projeto de nação. Mas um projeto inconfesso.
As intermináveis fases da Operação Lava Jato e os diários spots que iluminam a ribalta do STF são apenas mera cortina de fumaça, estratégia diversionista para esconder os lentos, porém, seguros passos para um novo projeto de nação – doravante o projeto Neodesenvolvimentistas dos governos lulopetistas será substituído pela agenda da inserção definitiva do Brasil no chamado “Capitalismo Cognitivo”.
Ainda de maneira esporádica, analistas estão começando a perceber os indícios desse secreta agenda: “uberização das profissões”, “economia do compartilhamento cooperativo”, “cooperativismo de plataforma”, “precarização do trabalho”, “terceirização” etc.
Em linhas gerais, sob o escândalo moralizador da Lava Jato e as errantes medidas econômicas, cria-se a desregulamentação trabalhista necessária para o surgimento de uma nova economia na qual temos ofertas de produtos ou serviços com um intermediário extraindo valor entre prestador do serviço e consumidor, não estabelecendo relações formais de trabalho. Sem respeito a leis trabalhistas ou relações pré-existentes nos setores onde prestam serviços.
O que muitos pesquisadores denominam como o fenômeno da “uberização”, relativo ao Uber e a transformação de donos de veículos em motoristas eventuais sem proteções trabalhistas.
Precarização, desregulamentação do trabalho, salários miseráveis, patrões invisíveis escondidos por trás de plataformas tecnológicas e transações econômicas misteriosas na sombra do espaço digital.
O primeiro passo foi o impeachment. O segundo, a cortina de fumaça do moralismo jurídico-midiático da meganhagem televisiva cotidiana. O terceiro, o desmonte da regulamentação trabalhista para a limpeza do terreno.
Mas o quarto passo, mais lento e decisivo, é no plano educativo e imaginário: a implementação de uma nova subjetividade mais afeita ao novo projeto nacional: o Capitalismo Cognitivo. Um projeto que prescinde de construção de cadeias produtivas, grandes infraestruturas como linhas férreas ou portos ou investimento em produção e distribuição de energia.
Um projeto sob consultoria de ONGs e institutos privados que sugerem reformas educacionais para um “brave new world” no qual cidadãos sem mais trabalhos formais são convertidos em empreendedores de si mesmos, crentes de que um dia a sua força de trabalho magicamente se converterá em capital.
E para que essa crença se generalize, exige-se uma ampla mudança educacional e mental rumo ao Capitalismo Cognitivo – a necessidade de implementação de uma formação educacional voltada para o trabalho cognitivo-cultural em serviços comerciais e financeiros caracterizados pela tecnologia digital, dentro de organizações flexíveis ou pós-fordistas.
“Visão estreita de educação”
Saem pedagogos, entram engenheiros e gestores que prestam consultoria às atuais reformas educacionais impostas pelo Governo: Marcos Magalhães do Instituto de Co-Responsabilidades pela Educação (ICE) e engenheiro (“pedagogo tem visão estreita da educação”, disse certa vez), assessor do atual Ministro da Educação; Deniz Mizne, diretor-executivo da Fundação Lemann (de Jorge Paulo Lemann, o “rei da cerveja” e homem mais rico do Brasil – um dos donos da Ambev); Ana Ioue, consultora de educação da Fundação Itaú; Ricardo Henriques, superintendente-executivo da Fundação Unibanco; David Saad, diretor-presidente do Instituto Natura entre outros como Instituto Inspirare (com seus projetos de “educação integral na prática” e “escola digital”) e Todos Pela Educação (TPE).
Institutos e fundações privadas cujos donos ou figuram nos vazamentos do chamado “Panamá Papers” sobre lavagem de dinheiro em paraísos fiscais ou em delações premiadas na Lava Jato.
Mas não só saem os pedagogos: sai o modelo educacional do construtivismo de Piaget, Emilia Ferreiro e Vygotsky (a educação pela autonomia na construção do conhecimento) e entram as neurociências aplicadas na educação – nas quais a atenção a “disparos neuronais” e “sinapses” fazem analogia da mente a um computador que assimila informação, processa e dá feedbacks. O indivíduo como um nódulo, seja numa rede neuronal ou eletrônica.
Analfabetismo visual
Em postagem anterior discutíamos a reforma do ensino médio na qual “flexibiliza” disciplinas como Arte e Educação Física e observávamos o início da implementação dessa agenda secreta: intervir na autoconsciência corporal e cinestésica (propriocepção, decisiva na inteligência visual) e reforçar o analfabetismo visual com a “flexibilização” de disciplina que trabalha a sintaxe visual.
O resultado é o analfabetismo visual e recepção acrítica dos conteúdos da grande mídia, perpetuando um modelo de comunicação monopolizado criado desde os governos militares – sobre isso clique aqui.
Agora as reformas educacionais chegam com a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) divulgada pelo Governo cujo principal ponto é a antecipação da alfabetização dos 8 para os 7 anos, do 3o para o 2o ano do ensino fundamental.
As justificativas para essa antecipação cheiram a racionalizações para ocultar motivações que certamente estão em outra “cena”. Falam em “avanço lento” dos dados do Índice de Desenvolvimento de Educação Básica (Ideb)”, alta taxa de evasão porque a escola “não é interessante” etc.
A outra cena
Um indício dessa “outra cena” pode ser encontrada em artigos publicados por especialistas em veículos dessas ONGs e Institutos privados, como, por exemplo, no artigo “Educação, produtividade e crescimento” de janeiro de 2016 nas publicações de análises de cenários da Itaú BBA:
Em 1992 os brasileiros estudavam 4,8 anos, em média. Em 2014, o número subiu para 8 anos. Com esses resultados, a produtividade da mão de obra no Brasil deveria estar aumentando, contribuindo para o crescimento do PIB potencial do país. No entanto, as estimativas de evolução da produtividade calculadas a partir das contas nacionais e dos números do mercado de trabalho sugerem que, na melhor das hipóteses, a produtividade ficou constante. Por que isso acontece?
Fica bem claro o modelo educacional que motiva o alto investimento (188,8 milhões de reais do banco Itaú apenas em 2015) do setor financeiro em projetos educacionais privados e a consultoria nas reformas da educação pública: a formação de uma nova força de trabalho mais flexível, facilmente adaptável a cenários tecnológicos mutantes que exigem competências cada vez mais “imateriais” e “abstratas” como “inteligência emocional”, “foco”, “motivação” e outras disposições que nada têm a ver com o “saber fazer”.
Também fica claro como as transformações do mundo do trabalho (flexibilização, enfraquecimento associativo e sindical, profissionalização substituída por capacitações etc.) prescindem cada vez mais da escola, cujos modelos educacionais ainda se orientam por referenciais construtivistas de autonomia, pensamento crítico, raciocínio, julgamento e argumentação – aliás metas jamais cumpridas na totalidade, sempre prejudicadas pela condições sócio-econômicas tanto de professores quanto dos alunos.
“Conhecimento” é diferente de “informação”
A escola ainda tinha como horizonte produção do conhecimento a partir de um processo gradual que ia do jogo e o lúdico (desenvolver autoconfiança no corpo e habilidade motoras e sensoriais) até o ingresso na linguagem escrita e as estruturas do pensamento lógico. Eram valores ainda de uma sociedade de conhecimento – o conhecimento como resultante da interação com o meio físico e as relações sociais, mediado pela linguagem.
Ao contrário, as mudanças rápidas do mundo das organizações impõem a sociedade da informação: plataformas tecnológicas e suas interfaces (dispositivos moveis, tablets, computadores etc.) colocam os novos trabalhadores das organizações flexíveis na posição de manipuladores de efeitos de conhecimento (informação) e não do conhecimento.
Na organização do trabalho regida pela informação, a linguagem (a sintaxe das interfaces com seus ícones e símbolos) não é mais mediação para algum conhecimento, mas um fim em si mesmo: assimilar, processar, compreender, partilhar informações numa aparente liberdade criativa de uma sociedade de rede – liberdade de formular problemas e de inventar soluções, porém dentro de alternativas pré-estabelecidas.
Nesse contexto a metáfora da mente se transforma: de uma máquina heurística/hermenêutica para um computador pensado pela interface linguística-neurociência.
Escola: a pedra no sapato do mundo corporativo
Até aqui a escola tem colocado no mercado de trabalho indivíduos com muitas expectativas em relação à profissão e ao mundo. O mundo corporativo sempre teve que fazer um esforço hercúleo (através dos seus psicólogos de RH e gestores) de baixar as expectativas, desencantar e tornar seus “colaboradores” resignados pelo temor da perda do emprego.
Na verdade a escola sempre foi uma pedra no sapato para o mundo corporativo: uma instituição que ainda teima em criar expectativas no indivíduo para o mundo do conhecimento numa sociedade que condiciona usuários apenas para gerenciar informações.
Ao lado de esquisitices como o “Escola Sem Partido”, a alfabetização mais cedo de crianças faz parte desse enquadramento corporativo da escola sob a atenta consultoria de engenheiros e gestores de ONGs e institutos privados.
A popularização de tablets, smartphones, aplicativos e comunicadores instantâneos desde o início foram formas de capacitação informais das competências esperadas pelo Capitalismo Cognitivo. Porém, é necessário mais: antecipar o desencanto do mundo corporativo no universo escolar infantil – desde cedo familiarizar a criança com o sistema simbólico, só que agora não mais como mediação para o conhecimento mas como prática funcional de input/output de dados e informações.
Aqui, os desdobramentos do projeto de inserção do País no Capitalismo Cognitivo são claros: se as reformas do ensino médio produzem o analfabetismo visual para tornar os indivíduos dóceis e acríticos à grande mídia, as reformas do ensino fundamental antecipam as competências esperadas pelo mundo corporativo: a manipulação também acrítica de símbolos e ícones em interfaces, sem em nenhum momento imaginar que outro mundo seria possível.
Ao invés do conhecimento, assimilar e adaptar-se às demandas das informações.
Afinal, é para isso que se pretende antecipar o mundo simbólico da linguagem, atropelando o jogo, o lúdico e a imaginação.