Um ano após reclamar que China ‘compraria o Brasil’, Bolsonaro quer vender estatais e commodities em visita a Xi Jinping
O presidente Jair Bolsonaro chega nesta quarta-feira (23/10) ao momento mais importante de sua viagem pela Ásia e pelo Oriente Médio com o desafio de avançar em três grandes objetivos econômicos, ao mesmo tempo em que tenta minimizar obstáculos políticos e ideológicos que surgiram após sua posse.
Em sua estreia em solo chinês, o brasileiro aposta no eixo-chave do maior projeto de investimentos de seu governo: encontrar empresários dispostos a comprar estatais em processo de privatização, como a Eletrobras, os Correios e setores da Petrobras. Também quer mostrar um Brasil mais disposto do que nunca a vender soja, carne, petróleo e minério de ferro ao gigante asiático.
Por fim, busca convencer megainvestidores a construirem ferrovias, estradas, portos e usinas de energia na expectativa de destravar a economia brasileira, estacionada em problemas históricos de infraestrutura.
O cliente é um velho conhecido. Há 10 anos, a China é o principal parceiro comercial do Brasil no mundo. A relação entre os dois países vem se aprimorando com o passar do tempo: em 2018, a soma das importações e exportações entre os dois países alcançou um recorde inédito na América Latina — US$ 98,9 bilhões, ou quase R$ 400 bilhões, sinalizando um ápice na relação bilateral.
Mas o governo brasileiro também colocou pedras no caminho para atingir suas próprias metas.
Há um ano, em outubro de 2018, Bolsonaro, ainda candidato à Presidência, subiu o tom contra o país asiático e ganhou manchetes no mundo inteiro ao dizer: “A China não compra no Brasil. A China está comprando o Brasil”.
Cinco meses depois, em aula magna a formandos do Itamaraty, o chanceler bolsonarista Ernesto Araújo disse a diplomatas que o Brasil não iria “vender sua alma” para “exportar minério de ferro e soja” para a China comunista.
O cenário nesta semana é o oposto. Prestes a encontrar o presidente chinês, Xi Jinping, na capital do país com o maior Partido Comunista do planeta, o líder brasileiro tenta aproveitar o vácuo aberto pela guerra comercial entre China e EUA para ampliar ao máximo seus negócios com os chineses.
Em meio a tantos altos e baixos, quais devem ser os resultados práticos da visita e como os chineses reagirão à reaproximação bolsonarista? Que impactos ela pode ter na relação amistosa entre o brasileiro e o presidente americano, Donald Trump? E por que os brasileiros exportam apenas commodities a um dos mercado consumidores mais ávidos por produtos industrializados em todo o planeta?
Choque de realidade
A viagem é descrita por representantes do mercado, da academia e da diplomacia ouvidos pela BBC News Brasil na China como “controle de danos”, “choque de realidade” e “correção entre o discurso eleitoral e o de governo”.
“A gente passou por atritos profundos na relação bilateral durante a campanha eleitoral”, avalia Tulio Cariello, coordenador do Conselho Empresarial Brasil-China, que reúne as principais empresas brasileiras do setor. “As frases polêmicas do governo não faziam o menor sentido por uma razão muito simples: a relação entre Brasil e China é hoje essencialmente econômica, e não política.”
As exportações brasileiras para a China são compostas principalmente por produtos básicos, sem valor agregado. A soja ocupa o topo da lista, com 35% das exportações, seguida por óleos brutos de petróleo (24%) e minério de ferro (21%).
Do outro lado, segundo o Itamaraty, as importações brasileiras de produtos chineses “correspondem, em sua quase totalidade, a produtos manufaturados” — a maioria é formada por componentes elétricos e bens de consumo.
Representando o lado chinês, o especialista em infraestrutura Jesse Guimarães, diretor de uma das maiores multinacionais chinesas de construção pesada, classifica a viagem como uma oportunidade de “destravar mais de 200 projetos de projetos de infraestrutura apresentados pelo governo Bolsonaro para empresários chineses” e “aproveitar um momento recorde de otimismo no empresariado asiático com o Brasil”.
Segundo Guimarães, que participou de reuniões em Pequim entre politicos chineses e o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, em maio deste ano, os principais projetos oferecidos pelos brasileiros se referem a aeroportos, ferrovias e portos. Eles estão em fase de finalização até que as concessões sejam oferecidas por meio de concorrências.
Para a professora Karin Vazquez, chefe do Centro de Estudos dos BRICS da Universidade Fudan, em Xangai, o presidente brasileiro desembarca na China após sofrer um “choque de realidade” posterior às eleições.
“Há uma diferença normal entre o discurso eleitoral e o de governo. O eleitoral usa um apelo popular, exageros, uma retórica para ganhar um eleitorado que não conhece a China ou o comércio internacional. É o que ganha voto”, explica.
“Depois que assume, o presidente é imediatamente pressionado pelo lobby do agronegócio, pelas confederações de industria. Ele se dá conta que quase 30% da pauta de exportações se refere à China. E percebe que não fazer negócios com chineses em 2019 é inconcebível para qualquer país”, prossegue.
A China é o principal destino das exportações brasileiras em todo o planeta. De janeiro a setembro de 2019, 27,6% do total das exportações brasileiras foram para o país asiático. No mesmo período, a China também ocupou o primeiro lugar entre os países de origem das importações brasileiras, com 19,9% do total das importações brasileiras.
Favorável ao Brasil há 10 anos, o superávit entre os dois países saltou de US$ 11,8 bilhões para US$ 29,5 bilhões entre 2016 e 2018, de acordo com dados oficiais.
‘China quer namorar o Brasil’
O pragmatismo com que os chineses são conhecidos no mundo dos negócios fala mais alto que qualquer sentimento de rancor ou desconfiança, na opinião dos entrevistados.
“O chinês sempre observa calmamente o que acontece antes de fazer qualquer movimento. Eles não agem por emoção ou impulso, como fez Bolsonaro”, diz Eduardo Ponticelli, um empresário brasileiro que vive há 12 anos na China intermediando importações de produtos brasileiros e exportações para o Brasil.
A visita do vice-presidente Mourão ao país, em maio, trouxe tranquilidade aos chineses, segundo diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil em condição de anonimato.
“Mourão acabou apertando as mãos e acalmando Xi Jinping em pessoa, meses antes do chefe de Estado chinês encontrar o presidente brasileiro”, lembra um membro do Itamaraty. “É um protocolo torto, mas mostrou que o governo brasileiro não pensa daquela maneira.”
Para Ponticelli, a experiência de Mourão e o prestígio do ministro Paulo Guedes (Economia) desfizeram qualquer má impressão.
“Hoje, o que ouço dos chineses é que a China quer namorar o Brasil e roubá-lo do Trump”, brinca.
O comentário surge em meio à guerra comercial travada entre Washington e Pequim – um dos principais impulsionadores do recorde nas trocas comerciais registrada no ano passado entre chineses e brasileiros.
“No curto prazo, os ganhos foram significativos principalmente no agronegócio e no mercado de soja”, lembra o doutor em ciência política Mauricio Santoro, especialista em relações Brasil-China e professor do Departamento de Relações Internacionais da UERJ.
“Mas a guerra comercial cria uma instabilidade grande no sistema multilateral de comércio, cria desrespeito a regras da OMS, aumenta o protecionismo.”
Chineses e americanos sinalizam uma possível trégua por meio de um novo acordo comercial — que traria dor de cabeça aos brasileiros. “Em uma situação de acordo, o Brasil perde, porque chineses vão precisar comprar mais produtos agrícolas dos americanos”, diz Santoro.
Hoje, além de principal parceiro comercial, segundo o Banco Central, a China é o 9º maior investidor no Brasil. Os recursos chineses são destinados principalmente a energia (geração e transmissão, além de petróleo e gás) e infraestrutura (portuária e ferroviária), de acordo com o Ministério da Economia.
Honraria máxima a um Chefe de Estado
A estrutura organizada pelo governo chinês para receber o líder brasileiro mostra que não parece haver ressentimentos sobre os comentários de Bolsonaro na eleição.
Na tarde de sexta-feira (horário chinês), Bolsonaro será recebido no Grande Palácio do Povo pelo presidente Xi JinPing, pelo primeiro-ministro, Li Keqiang, e pelo Presidente da Assembleia Popular da China, Li Zhanshu.
À noite, Xi Jinping oferece jantar ao presidente brasileiro junto aos principais CEOs chineses — entre os quais, especula-se, o magnata Jack Ma, fundador do império de vendas online AliBaba.
Além dos encontros com as autoridades chinesas, Bolsonaro também participa de um jantar organizado pelo presidente da Fiesp, Paulo Skaf, com empresários brasileiros que fazem negócios com a China.
“Se compararmos essa viagem com a abertura da Assembleia-Geral da ONU, veremos outro Bolsonaro. Nas Nações Unidas, ele mostrou seu lado mais extremo, com a retórica antiglobalista e um nacionalista extremado que não reconhece preocupações globais, como meio ambiente. Na China, ele vai se comportar de forma mais trivial, cordial, o que já é um ganho para o Brasil”, avalia Mauricio Santoro, da UERJ.
Mas, junto a toda a cordialidade do encontro, obstáculos politicos podem dificultar a lua de mel econômica entre os presidentes.
Nova Rota da Seda
Avaliado como o maior projeto de política externa da China em 40 anos, a Nova Rota da Seda é um mega programa de investimentos em infraestrutura que deve movimentar mais de 1 trilhão de dólares vindos da China em mais de 70 países com a construção de portos, ferrovias, estradas, gasodutos e oleodutos.
O objetivo chinês é expandir o acesso de seus produtos a outros mercados, ao mesmo tempo em que multiplica a presença de suas multinacionais ao redor do mundo e amplia seu acesso a recursos naturais escassos em seu território.
O projeto, que inicialmente se concentrava na Ásia e na África, se expandiu para a América Latina, onde já tem a adesão de 19 países — o principal deles é o Chile, somado a economias menores no Caribe e na América Central.
A adesão formal de uma economia forte como a brasileira ao projeto seria uma enorme vitória política para os chineses e é um dos principais esforços da diplomacia de Pequim no momento.
O problema, no entanto, é a reação que isso causaria em Washington.
“O discurso do Brasil é de querer estes investimentos, mas pelo Programa de Parceria de Investimentos (PPI), e não pela Rota da Seda”, explica Santoro.
“O Brasil quer evitar o ônus político na sua relação com os EUA. É uma preocupação legítima. Apoiar o projeto chinês é se posicionar diante de uma disputa comercial intensa entre o país asiático e Donald Trump, que é um parceiro-chave do Brasil neste momento”, diz.
Para a professora Karin Vazquez, o Brasil precisaria de contrapartidas fortes para aderir ao projeto.
“Traria um ganho político imenso para a China, na medida em que a China tenta aumentar seu ‘foot print’ na América Latina. Mas, do lado do Brasil, não me parecem claras as vantagens para um país que já atrai investimentos do tipo há décadas e já é uma das maiores economias do continente.”
Tulio Cariello, do Conselho Empresarial Brasil-China, concorda. “Uma eventual assinatura teria efeito mais político do que econômico. A vantagem teria que estar muito clara para o Brasil embarcar”, afirma.
Commodities, burocracia e o mercado consumidor chinês
Nos últimos anos, o governo chinês tem investido pesado na expansão da importância do consumo no seu PIB.
De 1978, com o processo de abertura da economia chinesa, até hoje, o PIB do país cresceu 172 vezes.
O analfabetismo, que alcançava 80% da população, hoje se aproxima de zero. A expectativa de vida saltou de 35 anos para 75.
Com isso, uma nova classe média, mais conectada aos costumes do ocidente e ávida por consumo, se consolidou no país.
“Muitos politicos e empresários no Brasil têm uma visão da China pré-revolução, ou o país que produzia artigos baratos e de baixa qualidade. É uma visão muito estigmatizada e antiga, que faz com o que o Brasil não aproveite as maiores oportunidades desse mercado”, avalia a professora Vazquez.
“Estamos falando sobre um país que desenvolveu uma lua artificial para oferecer energia, que criou o trem-bala mais rápido do mundo, que lidera a quarta revolução industrial, pautada por tecnologia de ponta, cidades inteligentes, big data, ciber-segurança”, diz.
Mas por que o Brasil não exporta produtos industrializados para essa sociedade em ebulição?
O caso do café oferece respostas interessantes.
“O Brasil é o maior exportador mundial de café bruto. Pela primeira vez na história, os chineses, tradicionais consumidores de chá, estão se tornando grandes bebedores de café. O mercado está crescendo a quase 40% ao ano. Seria ótimo para o Brasil”, conta Mauricio Santoro.
O jovem chinês, no entanto, não procura o café ensacado tradicional do supermercado, mas variedades “gourmet”.
“Este não é o café brasileiro. É um café com forte valor agregado em marketing. Um café para um consumidor que está ficando mais refinado, mais rico. O Brasil poderia entrar nesse mercado, mas ainda não associa seus produtos a esta imagem e acabamos ficando presos às matérias-primas,”
Do outro lado, os chineses reclamam da dificuldade de investir no Brasil — principalmente a burocracia estatal.
“O ICMS é um bom exemplo. Os chineses reclamam muito porque há uma regra diferente para cada Estado. No final das contas, são várias regras diferentes para pagamentos de impostos e isso dificulta muito o trabalho”, diz Santoro.