Uma decisão do STF a favor da liberdade e da dignidade humana
“Uma multidão observa Hester Prynne sendo escoltada da prisão até o pelourinho, carregando um bebê no colo e com a letra escarlate “A” bordada no peito. [..] Depois, ela é interrogada pelo clero da cidade, que a instiga a dizer o nome do homem com quem ela teve a filha. Hester se recusa a dizer e é levada de volta à prisão. [..] Após sete anos carregando a letra escarlate..”
Estes excertos são retirados do livro do escritor norte-americano Nathaniel Hawthorne, A letra escarlate, publicado em 1850, retratando, com precisão e crueza, o fanatismo e a intolerância que reinavam absolutos àquela época. A letra “A”, bordada no peito da infeliz Hester Prynne e, por ela carregada, à força, por sete anos, simbolizava o adultério.
Passados 168 anos da publicação do citado livro, o espetáculo da execração pública ainda não desapareceu. Só que, agora, com nova roupagem, vem travestido da repugnante condução coercitiva de investigados, que ganhou força quase que incontrolável a partir da chamada Lava Jato.
Como bem registra o ministro Gilmar Mendes, no voto proferido como relator nas ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) N. 395 e 444, com julgamento concluído no dia 14 de junho corrente:
“As conduções coercitivas são o novo capítulo da espetacularização da investigação, a qual ganhou força no nosso país no início deste século”.
Esta nova roupagem da execração pública, ao que parece, visa a desautorizar o brado de esperança do psiquiatra norte-americano Benjamim Rush lançado no longínquo ano de 1787, citado por Michel Foucault no livro Vigiar e punir, e assim expresso: “Só posso esperar que não esteja longe o tempo em que as forcas, o pelourinho, o patíbulo, o chicote, a roda, serão considerados, na história dos suplícios, como as marcas da barbárie dos séculos e dos países e como as provas da fraca influência da razão e da religião sobre o espírito humano”.
Os tempos de agora trazem à memória de todos quantos não transigem com a liberdade os clamores do imortal poeta e teatrólogo alemão Bertolt Brecht, em seu poema “Aos que virão depois de nós” – traduzido por Manoel Bandeira –: Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes. Pois implica silenciar tantos horrores!”.
Tempos em que a odiosa delação premiada foi erigida à condição de rainha das provas (regina probationum), como bem salientou, em artigo publicado em 2016, o advogado criminalista Leonardo Isaac Yarochewsky .
Tempos em que reina absoluto o famigerado direito penal do inimigo – que nada mais é do que morte ao inimigo –, ou, como dito na música “Disco Voador”, da dupla caipira Palmeira e Biá, gravada em 1955: ”Aqui na terra só se pensa em guerra Matar o vizinho é nossa intenção!”. E o que é pior: sem sequer relevar a alternativa de Quincas Borba – personagem da obra de Machado de Assis (com o mesmo nome) – que, na sua irônica teoria “Humanitas”, reservava ao vencido, na disputa pelo campo de batata, compaixão ou ódio. O direito penal do inimigo somente reserva a este o ódio.
Felizmente, o STF, ao concluir o julgamento das citadas ADPFS 395 e 444, por maioria de um (6×5) – o que é bastante –, pôs cobro à inaceitável condução coercitiva de investigados; o que, se, por um lado, não é o fim do circo de horrores, longe disso, por outro, representa, ao menos, o fim da execração pública de investigados, o que, convenha-se, não é pouco, pois, a liberdade, em seu amplo leque, é o bem mais precioso do ser humano.
Por ser confirmador dessa inafastável assertiva, vale trazer, aqui, excerto do voto do ministro Celso Mello, no referido julgamento:
“A liberdade humana, inclusive a de qualquer pessoa sob investigação criminal ou persecução penal, não constitui nem se qualifica como simples concessão do Estado. Ao contrário, a liberdade traduz um dos mais expressivos privilégios individuais, além de configurar inquestionável direito fundamental de qualquer pessoa cuja origem tem sua gênese no texto da própria Constituição da República.
“Os postulados constitucionais que consagram a presunção de inocência e a essencial dignidade da pessoa humana repudiam, por ilegítimas, práticas estatais que convertem atos de prisão ou de condução coercitiva de meros suspeitos, investigados ou réus em cerimônias públicas de arbitrária degradação moral daqueles que são expostos a procedimentos de investigação criminal ou de persecução penal. O dever de proteção das liberdades fundamentais asseguradas no texto da Constituição da República representa encargo constitucional de que este Supremo Tribunal Federal não pode demitir-se, sob pena de frustração de conquistas históricas que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor de que a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional. Na realidade, a resposta do poder público ao fenômeno criminoso, resposta essa que não pode manifestar-se de modo cego e instintivo, há de ser uma reação pautada por regras que viabilizem a instauração, perante juízes isentos, imparciais e independentes, de um processo que neutralize as paixões exacerbadas das multidões, em ordem a que prevaleça, no âmbito de qualquer persecução penal movida pelo Estado, aquela velha (e clássica) definição aristotélica de que o Direito há de ser compreendido em sua dimensão racional, da razão desprovida de paixão!”.
Essa Decisão reclama o apoio de todos quantos não se associam ao direito penal do inimigo, que tem como antessala a execração pública, e, que por conseguinte, não transigem com a liberdade plena, sem a qual não há dignidade humana.
José Geraldo de Santana Oliveira, consultor jurídico da Contee