Alta de juros e arrocho fiscal levam à derrota a coalizão de Boric na eleição constitucional do Chile

Com o PIB em queda após um ano de arrocho fiscal e elevação da taxa de juros básica pelo Banco Central, Boric tem a coligação por ele apoiada derrotada pela extrema-direita chilena em eleições para o Conselho Constitucional.

O partido de Kast, a quem Boric batera nas presidenciais de 2021, o Republicano, saiu-se vencedor com 23 conselheiros, enquanto a coalizão governista só obteve 16. A agora chamada ‘direita civilizada’ de Piñera e afins alcançou 11.

Alguns dados de economia chilena expõem razões para o descrédito que atinge o governo Boric, que está, segundo pesquisas locais, com sua popularidade em torno de magros 30%.

A política definida pelo ministro da Economia, Mario Maciel, ex-presidente do Banco Central no governo do antecessor, Sebastián Piñera, aplicada pelo BC atual e pelo Conselho Fiscal Autónomo não deixou nada a desejar para quem reivindica governar com base na cartilha neoliberal.

Aliás, mais que isso, significou uma aplicação de mais aperto do que nos governos de cunho neoliberal vencidos por Boric.

Estamos falando de um arrocho com corte de 23% nos gastos públicos, de forma que se chegou a um superávit primário de 1,1%, isso, ao lado de uma elevação da taxa de juros de 9,75% para 11,25%, elementos recessivos que o setor econômico de Boric chama de “estabilização” para “atrair investimento”.

Como disse o comunicado do BC chileno ao Senado: “A política monetária tem feito um ajuste significativo e está favorecendo a resolução dos desequilíbrios presentes na economia”.

Tanto assim que o PIB chileno que vinha de uma recuperação de 11,7% em 2021, sobre uma base deprimida de – 5,5%, durante a pandemia, entrou em retrocesso para se reduzir a 2,3% de crescimento em 2022 e, o que é ainda pior, com o Ministério das Finanças prevendo uma retração entre -0,5% e -0,7% para este ano de 2023. As previsões do BC são ainda mais recessivas com a retração podendo chegar a -1,5%.

Quanto ao arrocho fiscal aplicado em 2022, ele foi tão violento que fez com que a economia chilena não trabalhasse com déficit pela primeira vez em 11 anos. No governo de Piñera o déficit era de 7,7%.

Boric buscou compensar as perdas (13% de inflação em 2022, a maior desde 1991) com reajustes do salário mínimo acima da inflação.

FIASCO DA PAUTA IDENTITÁRIA

À gestão apática, para dizer o mínimo, com relação à necessidade de elevação dos investimentos públicos para melhorar as condições de vida à população e encetar o desenvolvimento do país, se somaram os arranhões devido ao baque levado no Referendo Constitucional que não foi aprovado com votação contrária de 62% devido em grande parte a um texto recheado de concessões às pautas identitárias com peso a tal ponto que afrontava o sentimento de identidade nacional do povo chileno.

Depois da derrota da proposta do grupo de Boric, para o processo de uma nova proposta constitucional ficou estabelecido um acordo, chamado de “12 consensos”, com balizas que incluem a explicitação do “respeito aos símbolos pátrios”, bem como o “reconhecimento dos povos originários como parte da nação chilena”.

A nova formulação, no entanto, mantém concessões ao neoliberalismo que já estavam presentes na derrotada proposta de Boric, a exemplo de petrificar a autonomia do Banco Central, já em vigor no Chile, questão na qual o governo Boric não mexeu e, até manteve sem nenhuma modificação em sua sugestão de carta anterior, a que foi rejeitada.

Após a eleição dos membros conselho constitucional, se chegou a um resultado que torna nebuloso o desfecho final do esforço por uma Constituição que enterre de vez o que tem sido a fonte de todas as crises no Chile nas décadas recentes: os resquícios de pinochetismo e o neoliberalismo, que entravam o desenvolvimento, impedem a superação das extremas e anacrônicas desigualdades e bloqueiam o avanço da democracia e da inclusão.

O total de conselheiros obtido pela lista Unidade para o Chile, que englobou comunistas, socialistas e frente-amplistas, ficou aquém do piso de 2/5 (21 cadeiras) que a possibilitaria exercer direito de veto no texto final e facilitaria acordos.

Também facilitou a vitória da direita o fato de que, diante da perda de popularidade do governo Boric, setores que antes integravam a chamada Concertacion entre eles os democratas cristãos, bases de apoio na eleição do atual presidente, decidiram lançar lista própria.

DEMAGOGIA E FAKE NEWS

Agora, o pinochetista José Antonio Kast e seu Partido Republicano, os derrotados do segundo turno das presidenciais de 2021, cantam vitória e até apostam numa marcha batida ao La Moneda, após obter 3.451.066 votos, ou 35,4%, e se tornar a maior força no Conselho.

Resultado obtido também graças à demagogia mais deslavada e junto com a capitalização das hesitações do governo Boric, tudo isso recheado de preconceitos e fake news, cujo passaporte foram os delírios identitários e o desconhecimento do sentimento nacional chileno.

Com um governo eleito para “enterrar o neoliberalismo” aplicando a “política de ajuste” de modo mais radical do que o antecessor Piñera, não foi difícil à extrema-direita redirecionar seus bots em massa, que em setembro passado diziam que o Chile “se dividiria em muitas nações” e os cultos “seriam proibidos aos cristãos”, para a atualizada versão de que as ameaças viriam do “crime, imigração e inflação descontrolados” sob “um governo falido”. Acusações que deputados da base do governo Boric admitiam ser muito difícil responder nas bases populares.

ENXURRADA INÉDITA DE VOTOS NULOS

Outro ingrediente importante desse resultado foi a inédita amplitude dos votos nulos, que passaram de 1,5% no pleito de setembro passado para 17% agora. Nulos e brancos somaram no domingo quase 2,7 milhões de votos, também refletindo a insatisfação chilena que se generaliza, caso contrário como explicar que milhões saíram de seus lares para votar nulo? A isso deve-se registrar que setores de identitaristas optaram por fazer campanha pelo voto nulo, alegando protesto contra o que consideraram um procedimento excludente, acordado pelo parlamento chileno, para regular o atual processo constitucional.

Assim, uma parte importante desses votos nulos em excesso seriam da esquerda, no entender de um articulista do jornal El Siglo, do PC chileno, e ex-colaborador do governo Allende, Miguel Lawner. El Siglo estimou a perda de votos em relação à eleição presidencial e até ao plebiscito de setembro em “mais de um milhão e duzentos mil”, após comparar a votação recebida nos dois pleitos prévios, de 4,8 milhões de votos, com os 3,6 milhões agora.

Bastaria metade dos votos nulos para a Unidade pelo Chile, ultrapassar a votação da extrema-direita, ainda que por pouca margem.

Hora do Povo

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