Chico Buarque integra patrimônio da sensibilidade brasileira
Professora fala sobre obra do artista, que hoje (19) completa 80 anos
Cinquenta e oito anos de carreira, 537 canções, 1.302 gravações, 50 discos (próprios ou com parceiros, em estúdio ou ao vivo), quatro peças de teatro, uma novela, um livro de contos e seis romances – o próximo, Bambino a Roma, será publicado em agosto. Esse é o legado do compositor, dramaturgo e escritor Chico Buarque de Hollanda, que nesta quarta-feira (19) comemora 80 anos junto com a família, em Paris.
A vasta obra de Chico é objeto de mais de uma dezena de livros, alguns lançados nesta celebração octogenária. Entre os autores, se destaca Adélia Bezerra de Meneses, professora de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade de São Paulo (USP). Ela escreveu três livros sobre o artista, o último Chico, Buarque ou a Poesia Resistente – Ensaios sobre as Letras de Canções Recentes (editora Ateliê), está em finalização gráfica.
Adélia foi militante estudantil na década de 1960, trabalhou com alfabetização de adultos com o método Paulo Freire em uma vila operária em Osasco, assistiu com “igual paixão” a reuniões da Ação Popular (AP) e aos festivais da MPB no Teatro Paramount (TV Record). Fez mestrado e doutorado sob a orientação de Antonio Candido, professor no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. A tese foi publicada em livro Desenho Mágico – Poesia e Política em Chico Buarque, que ganhou o Prêmio Jabuti de 1982, na categoria Ensaio.
A seguir, os principais trechos da entrevista que Adélia Bezerra de Meneses concedeu por escrito à Agência Brasil.
Agência Brasil: A senhora tem dois livros publicados [mais um no prelo] sobre as composições de Chico Buarque. Por que a canção popular merece estudos de literatura?
Adélia Bezerra de Meneses: Eu tenho na manga um argumento de autoridade. Guardo comigo, como uma preciosidade, que compõe a caixa de tesouros que já doei à minha neta, um cartãozinho do [Carlos] Drummond [de Andrade], em que, agradecendo o envio do meu primeiro livro sobre o Chico Buarque, chama a obra dele de “poesia”.
A canção popular é um extraordinário veículo para a poesia. Atualmente, pouca gente lê um livro de poemas, mas muitos ouvem canção, decoram as letras, cantam junto. Mas isso – essa junção de melodia com letra – não é um fenômeno da modernidade: desde a mais remota antiguidade, a poesia vinha amalgamada com a música: lírica é a poesia acompanhada ao som da lira.
A pergunta toca num ponto sensível, ferozmente polemizado por alguns críticos de música. Por experiência própria, posso afirmar que nem toda letra de canção pode ser tratada como poema, mas as canções de Chico suportam essa abordagem – que não é nem superior, nem inferior à análise musical: é outro o viés buscado. Importa também dizer que há distinções entre os compositores, e Chico – conforme suas próprias declarações – pende mais para a letra do que para a música.
Agência Brasil: Em seu primeiro livro, Desenho Mágico, a senhora se propôs “estabelecer um paralelo” entre a história do Brasil e a obra dele. Que história do Brasil o Chico Buarque compôs?
Adélia Bezerra de Meneses: A maneira de eu abordar a obra de Chico Buarque como um todo foi apontar que a sua produção assumiu as modalidades da “poesia resistência” desdobrada em lirismo nostálgico/lirismo amoroso; utopia; crítica. Isso não significa em absoluto uma redução a canções de temática social explícita.
Como se efetiva essa resistência na obra de Chico Buarque? No lirismo nostálgico, a recusa do presente opressor se dá por uma volta ao passado, seja o passado individual de cada um, que é a própria infância, como em João e Maria e Maninha; seja o passado coletivo, da sociedade pré-industrial, em que as relações humanas não eram degradadas pela estandardização e massificação, como em Realejo, ou A Banda.
Na vertente crítica, há a recusa do presente adverso, ferindo-o através da crítica social, seja de forma direta, como em Construção, Angélica e O Meu Guri; seja através das ricas modulações de que se reveste a ironia, como em Mulheres de Atenas, Bye Bye, Brasil, Bancarrota Blues, etc. Quanto às canções de protesto, como Apesar de Você, Cálice e Quando o Carnaval Chegar, originam-se no vértice da crítica e da utopia. Assim, Apesar de Você, que se tornou uma espécie de hino oficial contra a ditadura, recusa de um presente de opressão e espera de um “amanhã” que há de ser um outro dia.
Na variante utópica verifica-se a recusa da realidade opressora, projetando-se para um tempo-espaço outros, em que não se daria mais o reino da falta da liberdade, da exploração e do simulacro. São canções que cantam o “dia que virá”, ou propõem um futuro em que se dará a reconciliação do homem consigo próprio e com o mundo. Delas, a paradigmática é O Que Será, visionária e épica, um canto libertário, erótico e político.
Uma observação importante é que, em seu prosseguimento, a utopia rareia cada vez mais na produção de Chico Buarque. De fato, difícil utopia essa dos anos que atravessamos, contra o pano de fundo do capitalismo multinacional e da pasteurização dos projetos revolucionários. Que princípio esperança resta para ser afirmado num mundo que verga ao fim da história” e que o novo perdeu sua força mobilizadora?
Agência Brasil: A senhora escreveu sobre “figuras do feminino na canção de Chico Buarque”. Que mulheres há nessas canções?
Adélia Bezerra de Meneses: É uma pergunta complicada de ser respondida, como todas assim genéricas, levando-se em conta que Chico privilegia a mulher como protagonista, modulando o feminino de diversas maneiras. Uma observação inicial é que, sendo quase sempre no contexto de uma intensa relação afetiva que se flagra o fundamental do feminino, desliza-se inescapavelmente para o terreno dos afetos, obrigando-nos a descortinar o poderoso filão da lírica amorosa do autor. Em outras palavras, falar sobre a lírica amorosa de Chico Buarque quase que se confunde com falar sobre a mulher. Pegando alguns exemplos ao acaso: Pedaço de Mim ou Olhos nos Olhos: aí se destaca a mulher num momento de separação afetiva – por sinal, revelando reações femininas polares: percepção de incompletude e mutilação, no primeiro caso; e, no segundo, atitude desafiante frente ao antigo amor que, após uma separação desarraigada, vai encontrá-la “refeita”, “até remoçando”. Ou tomemos Mar e Lua, que mostra uma relação homoerótica no registro feminino, de infinita delicadeza e sensibilidade: “Todo mundo conta / que uma andava tonta / grávida de lua / E outra andava nua / ávida de mar.”
Agência Brasil: Outros compositores anteriores e contemporâneos do Chico Buarque escreveram canções com o eu lírico feminino. Por que ele é o mais lembrado por compor assim?
Adélia Bezerra de Meneses: Quero crer que esse “mais lembrado” seja o índice de um consenso do público, portanto uma consagração popular, não? Sem se fazer nenhuma estatística, tem-se a impressão de que tanto quantitativa quanto qualitativamente, Chico, dentre os compositores mais conhecidos, sobressai compondo no feminino, com uma competência única.
Por quê? Porque ele é poeta. Com efeito, o poeta é aquele ser a quem é dado, mais do que aos outros, o poder de manifestar a vida dos afetos; é como se ele tivesse uma maior possibilidade de contato com o inconsciente, pessoal e filogenético [genealógico], e a poesia é um espaço em que se permite ao inconsciente aflorar. É assim que nas canções de Chico Buarque emerge a fala da mulher, de uma perspectiva, por vezes, espantosamente feminina. Diante de algumas de suas composições, eu já me pilhei pensando: como é que ele sabe?
Agência Brasil: Chico Buarque escreveu quatro peças de teatro, uma novela, um livro de contos e seis romances. Essa literatura tem a mesma importância e qualidades estéticas das canções?
Adélia Bezerra de Meneses: Chico Buarque é um desses casos de artista com verdadeiro comprometimento com a palavra nas suas várias modalidades, com a mesma eficácia estética: é o romancista laureado, de penetração internacional, é o dramaturgo de peças que marcaram o teatro brasileiro, é o contista rascante que nos leva para os anos de chumbo. No entanto, para a imensa maioria dos nossos conterrâneos, Chico é o compositor/poeta, autor de canções que passaram a integrar o patrimônio da sensibilidade brasileira. Não por acaso, ganhou o Prêmio Camões, a mais alta honraria atribuída a autores da língua portuguesa, pelo conjunto da obra. Mas uma coisa interessantíssima é que em seu discurso em Portugal, por ocasião do recebimento do prêmio, no Palácio de Queluz, e confessa, com surpreendente simplicidade: “Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular…”
Temos aqui, como se vê, um caso em que a avaliação do público e a autoavaliação do artista convergem. E, um pouco antes, no mesmo discurso, ele tinha citado Vinicius de Moraes, amigo de sua família, para quem a palavra cantada talvez fosse “simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua.” Talvez esteja aqui a explicação para a penetração da canção popular, que vai mais fundo que o texto escrito ficcional: a canção, palavra cantada, nos pega sensorialmente.
Sua pergunta também dá oportunidade para uma última observação: é de se notar, na dramaturgia de Chico Buarque, a importância das canções, muitas vezes estruturando o enredo das suas peças. E algumas se autonomizaram, descolando-se da ação dramática onde se originaram: é o caso de Pedaço de Mim (da Ópera do Malandro), de Cala a Boca, Bárbara (da peça Calabar), de Gota d´Água e de Roda Viva (das peças de, respectivamente, mesmo nome). Elas ganharam tal força que são cantadas sem que se faça referência ao texto dramático de onde provieram.
Agência Brasil: Sua tese que resultou no livro Desenho Mágico foi orientada pelo professor e crítico literário Antonio Candido, amigo dos pais de Chico Buarque – Maria Amélia e Sérgio Buarque de Hollanda. Eles leram os originais do seu trabalho. O escritor Humberto Werneck conta que o próprio Chico Buarque ligou para a senhora após sua aprovação no doutorado. Como foi a relação com o seu objeto de estudo? Chico leu seus livros sobre ele?
Adélia Bezerra de Meneses: De fato, o professor Antonio Candido me apresentou ao professor Sérgio e à dona Maria Amélia, pessoas de uma extraordinária riqueza afetiva. Eles leram o meu trabalho e logo providenciaram para que um exemplar chegasse às mãos do Chico – e o portador foi ninguém mais nem menos que o Darcy Ribeiro. E eu pude conversar com o Chico ainda antes da publicação do livro, resolvendo alguns problemas – em geral, de estabelecimento de texto.
Quanto à sua pergunta sobre a relação com o “objeto de estudo”, criou-se na [minha] família um anedotário cercando as comunicações com o Chico, já famosíssimo. No dia do doutorado, na festinha de comemoração, em que estavam presentes o professor Sérgio e dona Maria Amélia, tocou o telefone e quando a pessoa que atendeu a ligação do Rio de Janeiro perguntou quem queria falar com a Adélia, a resposta foi: “é a tese”. As brincadeiras continuavam: posteriormente à publicação, quando o livro ganhou o Prêmio Jabuti, seu telefonema cumprimentava pelo “recebimento da tartaruga.”
Agência Brasil: Qual a canção de Chico Buarque de que a senhora mais gosta? Por quê?
Adélia Bezerra de Meneses: Que pergunta difícil… Eu seria absolutamente incapaz de escolher uma única. E o problema é que, com o passar dos anos, a resposta fica cada vez mais difícil porque, ao elenco que eu possa ter elegido, deve-se acrescentar algo novo que terá surgido, de alta qualidade, como uma estrela nova a alterar a constelação tão custosamente formada. Quando em 2017 o jornal Folha de S.Paulo fez uma enquete, perguntando quais as três canções preferidas a um grupo de críticos, eu fiz uma listinha de quatro. Mas, agora, passados alguns anos, mais uma veio, necessariamente, se agregar ao elenco. São cinco: Cala a Boca, Barbara; O Que Será; Todo Sentimento; Construção; e As Caravanas.
Edição: Juliana Andrade