Lei de desoneração da folha deve ser cumprida
A Contee vem acompanhando atentamente a questão das desonerações das folhas de pagamento de diversos setores da economia, sobretudo após tentativas de estendê-las às mantenedoras do ensino superior, medida contra a qual a Confederação já se manifestou em diversas ocasiões. O artigo abaixo foi divulgado pela Agência Diap na última semana e reflete sobre as transformações positivas e negativas das desonerações e seus impactos na vida dos trabalhadores.
Por Antônio Augusto de Queiroz (*) e Flávio Tonelli Vaz (**)
Em resposta aos efeitos prolongados da crise internacional, especialmente sobre a indústria, o governo iniciou mais uma rodada de desoneração tributária, agora voltada para a diminuição da contribuição previdenciária patronal de determinados setores, calculada sobre a folha de salários.
Foram várias medidas provisórias e leis tratando sobre essas desonerações. A Lei nº 12.844, de julho de 2013, é a mais recente. Essa lei resulta da conversão da MP 610/2012, que, ressalte-se, não tratava da desoneração das contribuições previdenciárias. Mas, durante a sua tramitação, foram aprovadas emendas incorporando benefícios a diversos segmentos. Em todo esse processo, o Congresso ampliou em muito as desonerações previdenciárias, sem nunca ter sequer estimado o impacto dessas expansões nas contas da previdência.
O Jornal Valor Econômico, em 8/4/13, informava que a desoneração de folha de pagamentos beneficiava 56 setores, responsáveis por uma receita bruta anual de aproximadamente R$ 1,9 trilhão no mercado interno, valor equivalente à metade do Produto Interno Bruto (PIB) do país, antes dos impostos.
Com a desoneração, as empresas trocam a contribuição patronal sobre a folha de pagamentos de 20% por uma contribuição de 1% ou 2% sobre o seu faturamento. Mais do que uma simples troca, os segmentos beneficiados deixam de pagar bilhões de reais para a Previdência Social.
E, para evitar que essa grande renúncia tributária representasse prejuízos ao financiamento da previdência, a lei determinou que o Tesouro fizesse repasses ao RGPS, para compensar todas as perdas.
Para além desse benefício direto às empresas, é preciso analisar as vantagens e desvantagens desse processo para os trabalhadores e para a Previdência Social, e superar os problemas havidos na implantação desse modelo.
Um desses problemas é o fato de o Tesouro não ressarcir a previdência pelas renúncias, conforme prevê a lei. Em 2012, o governo transferiu apenas R$ 1,7 bilhão à previdência social para cobrir uma renúncia que não foi inferior a R$ 4,2 bilhões. Estudos da ANFIP indicam que essa renúncia pode ter somado R$ 7 bilhões. Em 2013, quando mais setores são beneficiados pelas desonerações e as renúncias cresceram muito, o ritmo dos repasses não se alterou. Até maio, sequer a totalidade do valor devido de 2012 havia sido integralizada. E, descontadas essas parcelas atrasadas, os repasses relativos ao período de 2013, efetuados no primeiro semestre, são inferiores a 10% do total estimado, de mais de R$ 16 bilhões de renúncias, para o exercício.
Com repasses menores, decai a contribuição previdenciária, facilitando os discursos do déficit da previdência. Esses discursos são a principal arma para aqueles que exigem as reformas com corte de direitos dos trabalhadores.
Também pode ser caracterizado como negativo o fato de o governo ter concedido uma vantagem econômica tão expressiva para as empresas sem contrapartidas, como a diminuição da rotatividade ou da terceirização.
Mas, esse processo revelou pontos positivos importantes.
As empresas não aceitaram pagar de 1,5% a 2,5% sobre o seu faturamento, em substituição à contribuição previdenciária patronal de 20% sobre a folha. Exigiram uma redução para de 1% e 2%, respectivamente para as empresas industriais ou de serviços. Essa postura demonstra que o discurso sobre o alto custo das despesas com pagamento de salários e encargos é uma farsa. Se 20% sobre a folha é inferior a 1,5% do faturamento, isto significa que os custos do trabalho (salários e encargos) não representam sequer 7,5% do faturamento dessas empresas. E fica demonstrado que o preço do trabalho não é o problema que dificulta a vida dessas empresas.
E, com encargos previdenciários vinculados ao faturamento, fica mais difícil às empresas beneficiadas pela desoneração da folha invocar custos trabalhistas para justificar demissões em momentos de menor faturamento.
Outro aspecto importante é que a desoneração tornou menos interessante a terceirização nos setores beneficiados. Primeiro, porque as empresas de terceirização de mão de obra não foram incluídas nesse programa, portanto, continuam a pagar 20% sobre a folha. Segundo, porque uma indústria, por exemplo, pagará a contribuição previdenciária de 1% sobre o seu faturamento independentemente do número de trabalhadores contratados ou do quantitativo de terceirizados que trabalham para ela. Para a empresa com desoneração, terceirizar mão de obra não mais reduz a contribuição previdenciária patronal.
Mas, talvez, o ponto mais importante tenha sido implementar na previdência social um modelo que se demonstrou muito eficaz para a Seguridade Social: a pluralidade das fontes de financiamento. Criado na Constituição de 1988, permitiu à Seguridade valer-se de contribuições sociais cobradas das empresas sobre múltiplos fatores: o lucro, o faturamento e a folha de salários.
Antes da desoneração, a parcela majoritária do financiamento da previdência era a folha de salários. Nesse cenário, uma empresa que automatiza a sua produção ou demite, passa a pagar menos previdência. Essa redução causa problemas para a previdência manter o pagamento do conjunto dos benefícios. Sempre que isso ocorre, há um coro exigindo cortes nos benefícios, ampliação das carências e mais exigências para o trabalhador alcançar os direitos previdenciários.
Ainda hoje, um dos argumentos mais frequentes para novas reformas na previdência é a associação entre o número de trabalhadores ativos e o quantitativo de aposentados. Essa associação decorre de um modelo de financiamento previdenciário que estabelece ser a folha de pagamento das empresas sobre os seus trabalhadores (ativos) a principal fonte para a cobertura dos benefícios previdenciários.
Nesse momento, em que mundialmente as pessoas vivem mais, estamos repletos de exemplos a exigir idades maiores para a aposentadoria, mesmo quando as empresas estão sempre faturando e lucrando cada vez mais.
Quando as contribuições das empresas são transferidas para o faturamento, mesmo que ela aumente a automação, o pagamento à previdência se mantém, porque não é calculado sobre a folha, mas sobre as receitas da empresa.
O economista Edward Amadeo, ex-ministro do Trabalho do governo FHC, hoje sócio da Gávea Investimentos, um defensor emérito das reformas neoliberais, escreveu que a desoneração da folha de pessoal promovida pelo governo, que reduz os custos de contratação de mão de obra, pode produzir efeitos colaterais indesejados. Daí ele apresentar sérias restrições à medida. Disse o economista que o fim da contribuição sobre folha rompe com a lógica clássica do financiamento de aposentadorias que deve incidir sobre folha, porque cabe aos trabalhadores financiar suas aposentadorias. Para ele, as aposentadorias devem ser calculadas com base nos salários ao longo da vida e na expectativa de vida. Ao transferir esse financiamento para o faturamento das empresas, ficou mais difícil justificar, por exemplo, o aumento da idade mínima para aposentadoria ou da alíquota de contribuição. “É muito mais fácil, técnica e politicamente, proteger os demais gastos se houver um claro vínculo entre folha salarial e gastos da previdência”, sustentou o economista (Valor Econômico 17/04/2013).
Outro aspecto importante da desoneração está relacionado à opção de algumas empresas em terceirizar parcela de sua produção, adquirindo partes do produto final de outras empresas nacionais ou estrangeiras. Nesse caso, a contribuição previdenciária, como está calculada em função do preço final do produto, incorpora o custo de todas essas aquisições. Num veículo, por exemplo, a opção por comprar o motor de outra empresa nacional ou mesmo importá-lo não diminuirá a contribuição da montadora à previdência, porque pagará como se todo o veículo estive sido produzido por ela, no país.
E, para complementar esse importante processo de tornar plural o modelo de financiamento da previdência social, é preciso determinar que alguns segmentos passem a pagar a contribuição previdenciária sobre o lucro. É o caso, por exemplo, dos segmentos rurais exportadores. Eles representam os segmentos rurais com maior capacidade econômica e, mesmo assim, estão dispensados da pagar a previdência. Como o setor rural paga a previdência em relação à comercialização da produção e a Constituição eximiu os exportadores dessa cobrança, sobre o seu faturamento, é preciso que esses empregadores passem a pagar a previdência em relação aos seus lucros.
Os trabalhadores sempre tiveram um papel importante na defesa da previdência social. E essa defesa passa hoje pela imediata exigência de que a lei seja cumprida e o Tesouro repasse à previdência social os valores correspondentes às renúncias previdenciárias. Se, em meio a essa crise internacional, a desoneração foi importante, porque viabilizou a diminuição dos custos da folha e seus encargos sem que os salários ou os direitos fossem reduzidos, é urgente que o governo cumpra a sua parte e faça prontamente os devidos ressarcimentos à Previdência Social, para compensar todas as perdas.
(*) Jornalista, analista político e diretor Documentação do Diap
(**) Bacharel em Direito e Assessor Técnico na Câmara dos Deputados
Texto publicado originalmente no portal “www.conjur.com.br” em 21/08/2013