“Conheçam sua história, se organizem e lutem!”

Por Laurent Etre

O diretor de O Jovem Marx foi ministro da Cultura do Haiti nos anos 90 e atualmente preside a Femis – respeitada escola de cinema da França. Nascido no Haiti, ainda jovem sua família migrou para o Congo. Estudou nos EUA, na França e na Alemanha. Sua filmografia inclui: L’Homme sur le Quais, que participou da seleção oficial de Cannes, em 1993; Lumumba, sobre o líder assassinado da independência do Congo ; Eu não sou seu Negro, nominado ao Oscar de melhor documentário em 2016.

Qual é a origem do filme O Jovem Karl Marx?

Raoul Peck – Inicialmente representantes da TV europeia Arte me solicitaram o projeto. Eu nunca ousaria propor um filme sobre Marx a uma televisão francesa. Temos que contextualizar que o início do projeto se deu um pouco antes da crise financeira de 2008. A ideia segundo a qual o capitalismo seria o horizonte insuperável da história ainda era amplamente dominante; falar de “luta de classes” era recebido como uma aberração. O capital era hegemônico em todas as frentes. Enfim, quando Arte me pediu para trabalhar no projeto, eu me lancei no filme. Pois, para mim, Marx sempre foi incontornável. Não podemos explicar nada sobre a sociedade (capitalista) na qual vivemos sem voltar ao seu pensamento, aos conceitos que ele criou e à sua grade de explicações. Eu mergulhei no projeto. Mas, depois de um certo tempo, percebendo a sua amplitude e não achando uma maneira eficaz de tratar do tema no formato documentário, decidi voltar à ficção pura e o produzir com a minha própria produtora, a Velvet Film.

Por que escolheu focar o projeto no período da juventude?

Raoul Peck – Eu sabia de cara que eu não poderia encarar o “velho barbudo”. Pois nesse caso eu teria que fazer não um filme, mas dez, para desfazer todas as instrumentalizações e deformações das quais sua obra é objeto. Eu decidi então me concentrar na gênese de seu pensamento, o período entre a tese de doutorado (1841) até o Manifesto do Partido Comunista (1848). São nesses anos que nasce nele a ambição de estabelecer uma ciência da história das sociedades. E tudo está ali.

Na história do marxismo, a evocação do jovem Marx tem uma ligação, na França, ao que se chamou, nos anos 1960, a “querela do humanismo”, com Louis Althusser postulando um “corte epistemológico” entre o jovem Marx, marcado pelo idealismo humanista, e aquele da maturidade, do Capital, que se tornou plenamente “científico”. Você tinha essa ideia na cabeça?

Raoul Peck – Conheço bem esse debate, mas, não, isso não influenciou minha abordagem. Justamente, eu afastei todos os “experts” de Marx, as interpretações, só me baseando nas correspondências. Eu queria mostrar Marx, Engels et Jenny, a esposa de Marx, na vida concreta, a partir da própria palavra deles. Eles são jovens, eles têm em torno de vinte anos, eles são revoltados e eles ambicionam mudar o mundo. É essa a essência do filme. E meu objetivo, desde o início, foi essa formidável história que inspira jovens hoje em dia e espero que ela alimente seus próprios combates. Eu não fiz esse longa metragem olhando pelo retrovisor, mas olhando para a frente, em direção ao presente e ao futuro. Esse filme é um convite para que eles tomem as rédeas de suas vidas, como fizeram esses três jovens na época deles, um convite para que eles mudem tudo o que deve ser mudado, sem colocar limites a priori. Conheçam sua história, aprendam a ver a relação entre os eventos à primeira vista desconectados, se armem intelectualmente, se organizem e lutem! É um trabalho! Essa é a mensagem.

O filme tem uma cena que condensa os debates desenvolvidos na transformação da “Liga dos Justos” em “Liga dos Comunistas”. A exigência da cientificidade parece central na abordagem de Engels, que estava na tribuna para defender as ideias que ele compartilhava com Marx…

Raoul Peck – Sim, ele evidencia a necessidade de sair do romantismo. A Liga dos Justos tinha por lema “Todos os homens são irmãos”. Engels confronta com eloquência esse slogan à realidade das contradições sociais. Como apoiar, efetivamente, que o patrão e o operário, o explorador e o explorado, são irmãos? Não, decididamente, todos os homens não são irmãos. O novo lema se impõe então: “Proletários de todos os países uni-vos!” Claro, hoje em dia, cabe a nós saber o que incluir no termo “proletário”.

A ideia central do filme não é justamente essa? Na maneira pela qual ele mostra a maturação de um comunismo, saindo das contradições do real para ir em direção à realização do ideal, contra um socialismo utópico, que sobrepõe o ideal à realidade e que desarma, por conta disso, o proletariado?

Raoul Peck – As respostas que vinham à cabeça das pessoas naquela época eram aquelas daquele tempo. Era o início da revolução industrial, depois da Revolução Francesa. Estava-se começando a entender que são os homens que fazem a história, no momento mesmo em que se colocava em prática uma nova alienação do trabalho, por meio das grandes fábricas. Esse contexto contraditório favorece o desenvolvimento de grandes utopias, como o Falanstério de Fourier. Mas, é verdade, Marx renovou fundamentalmente o pensamento do movimento operário nascente, convidando a recomeçar da análise meticulosa das estruturas da sociedade. Para ele, era o único método verdadeiro para decidir em seguida – juntos – em qual direção se engajar. O romantismo não o interessa; ele quer demonstrações, com argumentos e provas. É uma maneira de pensar bastante alemã, num certo sentido. Em alemão, o verbo é colocado no fim da frase. Isso obriga a realmente refletir sobre que queremos dizer, antes de o dizer. É uma língua estruturante. No filme, a cena onde Marx pressiona Proudhon até o seu limite sobre a questão da propriedade ilustra bem essa diferença cultural. Diante de Proudhon, que decreta que a “propriedade é o roubo”, Marx pergunta: “Que propriedade?”. E ele não o deixa em paz. Ele não pode se satisfazer com tais generalizações.

Como você conseguiu tornar instigante, na tela, os debates filosóficos complexos que, no papel, podem desinteressar os leigos?

Raoul Peck – Nós levamos dez anos para conseguir isso (risos). Não há segredo. O primeiro rascunho do roteiro era muito mais didático. Precisamos de muito trabalho para nos aproximarmos, uma versão após a outra, do cinema. Mas esse cinema tem como base o real, um cinema rigoroso! Não inventamos nada. Também pude contar com o talento de meu amigo roteirista, Pascal Bonitzer, que sabe transformar cenas suscetíveis de ser teóricas demais em cenas dinâmicas sem nunca abrir mão do conteúdo, do rigor das declarações. Por outro lado, eu priorizei atores que viessem do teatro: August Diehl (Karl Marx), Stefan Konarske (Friedrich Engels) e Vicky Krieps (Jenny Marx). São pessoas que tem a capacidade de criar personagens autênticos. Um diálogo é uma maneira de se posicionar, de se deslocar, de preencher ou não os silêncios. Na minha maneira de filmar, eu frequentemente recorro aos planos sequência, que oferecem uma verdadeira respiração aos atores, que permitem a eles modelar de verdade seus personagens.

Quais são as ideias força que você retém de Marx?

Raoul Peck – Ao contrário de meus contemporâneos, que só retêm dele a parte teórica, Marx é para mim, acima de tudo, uma maneira de apreender o mundo com uma curiosidade insaciável. Num embate memorável com Wilhelm Weitling, figura de proa do socialismo utópico alemão da época, Marx lança essa frase, que acho particularmente inspiradora: “A ignorância nunca ajudou ninguém”. Ora, hoje estamos em plena ignorância. Ignorância do outro, ignorância da nossa história. Nos apresentam insidiosamente os imigrantes como uma ameaça, a Europa se fecha sobre ela mesma… Assistimos à instalação de receitas de decadência, receitas para fim de reinado. É necessário aprender novamente a pensar dialeticamente, realçando as relações “escondidas”, colocando os fatos numa historicidade. Não há diversas histórias na Terra, mas uma só na qual tudo está ligado. A criação de riqueza numa região específica do globo é acompanhada pela criação de pobreza em outro ponto. Quando uma empresa abandona uma região, criando ali desemprego e miséria, ela não desaparece. Ela vai explorar outro lugar, ali onde os salários são mais baixos, ali onde a correlação de forças do capital-trabalho é favorável ao capital. E principalmente, onde quer que seja, não são aqueles que criam a riqueza que aproveitam, mas sim os proprietários, os acionistas.

Seu filme coloca o dedo na ferida da clivagem de classes da sociedade capitalista. Quer dizer, ele não se insere a priori no diapasão da indústria do espetáculo…. Você não encontrou obstáculos?

Raoul Peck – Evidentemente! É preciso se dar conta que esse filme sobre Marx é o primeiro do gênero no Ocidente. Então, é claro que deveríamos esperar que obstáculos pudessem aparecer. Primeiro, existe uma certa autocensura. Eu mesmo poderia ter entrado nessa armadilha. Mas dela me liberei com muito gosto. E quando comecei a trabalhar, ninguém tentou intervir na orientação do projeto. Eu também nunca teria tolerado isso. Foi no financiamento que tivemos algumas peripécias reveladoras. Antes de tudo, eu faço questão de dizer que eu sempre pude me apoiar num sistema que permanece bastante democrático, com incentivos, instituições que permitem, num sistema europeu, alcançar um certo orçamento. Eu nunca poderia ter realizado esse filme com investimentos americanos, você pode imaginar…. Então, para voltar à sua questão, na França e na Bélgica, conseguimos mais ou menos os financiamentos previstos. A surpresa veio da Alemanha onde nós tivemos que enfrentar, num primeiro momento, reações de rejeição. Quando nós submetemos o filme à comissão franco-alemã de apoio à produção de filmes, os três integrantes alemães votaram contra, e o único dos três franceses que votou contra era de origem alemã. Custo a crer em uma mera coincidência. Eles não devem ter gostado que um não alemão fizesse um filme sobre uma grande figura do patrimônio intelectual deles. A partir daí nós decidimos politizar a coisa e apresentá-la assim a nossos parceiros alemães. Uma barreira caiu, paradoxalmente, diante de uma comissão de incentivo na ex-Alemanha do Leste. Depois, foi mais simples. Mas o verdadeiro escândalo foi a atitude da instância europeia de apoio ao cinema, Euroimages, que nos recusou um incentivo decisivo, sob pressão de alguns países do ex-bloco do Leste. Resumindo, eles alegaram: nem pensar em Marx sem Stalin. Um ato de censura política para uma instituição que não tem nenhuma vocação para determinar conteúdos, mas sim de se pronunciar sobre a montagem financeira de um projeto de filme e sobre sua solidez. Um projeto fortemente apoiado pelas três maiores nações de cinema da Europa (França, Bélgica e Alemanha) foi eliminado autoritariamente por Chipre e alguns outros por razões políticas!

Seu filme abrange um público bem amplo. Mas o que você diz para os espectadores que se reconhecem na herança do autor de O Capital?

Raoul Peck – O Jovem Karl Marx questiona os enganos nas lógicas repressivas, autoritárias, mostrando toda a efervescência democrática no seio do movimento operário em vias de organização da qual Marx e Engels participavam. Os dois amigos são firmes, eles não medem palavras… Mas eles estão sempre abertos à discussão, eles nunca renunciam a convencer as pessoas. Toda a radicalidade do filme está aí, no fato de mostrar o alcance transformador desse gesto democrático e, principalmente, na necessidade de um pensamento claro. O campo progressista, no sentido mais amplo, nunca pôde, de batalha em batalha, realmente fazer sua autocrítica. Contudo, é necessário confrontar os erros, as errâncias, as ilusões, os crimes também, para ter início um outro combate. E esse, na democracia.

Retirado do jornal L’Humanité.

Tradução: Monique Matni.

Laurent Etre é jornalista do L’Humanité (jornal do Partido Comunista Francês, fundado por Jean Jaurés em 1904)

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