Contribuição assistencial, uma tese em sua defesa
Liberdade sindical no Brasil e a OIT: a questão da cláusula assistencial – do PN 119 ao caso 2739 – uma dupla perspectiva
Sandro Lunard Nicoladeli* e
Stanley Arthur Gacek**
1) Perspectiva nacional do tema – marco situacional interno [1]
Na última década, o movimento sindical brasileiro tem experimentado um cenário de agudização das incertezas jurídicas nos seus instrumentos jurídicos – acordos e convenções coletivas – decorrente do ataque à eficácia e consistência das cláusulas contributivas, inseridas nos referidos pactos coletivos.
O referido quadro jurídico-político decorre da aplicação do Precedente Normativo 119 do TST [2]. O mencionado precedente judicial tem sustentado a atuação administrativa e judicial de componentes do Ministério Público do Trabalho.
O MPT, no âmbito administrativo, tem proposto e executado centenas de ajustamentos de conduta/TAC; ou quando não, o aforamento direto de demandas judiciais: ações civis públicas, ações anulatórias e/ou declaratórias de nulidade cláusulas de instrumentos normativos.
As medidas judiciais demandam tutela jurisdicional buscando a invalidade, nulidade das cláusulas contributivas e/ou até a devolução dos valores descontados a título das taxas e contribuições assistenciais.
Diga-se de passagem, tais contribuições, em termos gerais, são aprovadas em assembleia geral da categoria profissional, contando, inclusive, com a participação dos trabalhadores não filiados ao sindicato; mas, por óbvio, beneficiários do instrumento coletivo, vez que as convenções coletivas têm sua reconhecida característica de universalidade, em razão da estruturação do sistema sindical brasileiro.
É digno de registro as várias iniciativas intentadas pelo movimento sindical brasileiro, representado pelas centrais sindicais, no sentido de mediar tentativas de mudança de posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho, via revisão do referido precedente, ou quando não ao menos, o retorno do entendimento residente no então Precedente Normativo 74 do TST.
Todas as tentativas restaram infrutíferas, pelo contrário, as medidas administrativas e judiciais intentadas pelo Ministério Público do Trabalho têm, em verdade, aumentado significativamente, gerando, na prática, efeitos nefastos nas finanças sindicais, pois estão compelidas a limitarem bruscamente suas fontes de receita, por conta da asfixia financeira, em razão da dupla intervenção estatal: 1) seja pela edição do precedente normativo (119) que interfere na organização sindical, determinando a forma de arrecadação e os destinatários/contribuintes passíveis de imposição da arrecadação das entidades sindicais; 2) seja pela atuação inquisitória de alguns membros do Ministério Público do Trabalho, impondo TAC ou aforando medidas judiciais, sendo que tais procedimentos determinam, inexoravelmente, prejuízos aos trabalhadores, pois fragilizam suas entidades de representação.
Os efeitos diretos e indiretos destas medidas, a longo prazo, resultam no desequilíbrio dos atores sociais inseridos na relação capital e trabalho; além disso, reduzem ou suprimem diversos serviços assistenciais (saúde, convênios, escolas e etc.). Noutras palavras, há claro rebaixamento do patamar civilizatório dos trabalhadores e de indesejável enfraquecimento do sindicato como interlocutor social responsável pela necessária mediação das relações coletivas de trabalho.
Dessa forma, diante deste cenário inóspito, materializado pelos constantes ataques ao movimento sindical, mobilizaram-se as centrais sindicais: Força Sindical (FS), Nova Central Sindical de Trabalhadores do Brasil (NCST), União Geral dos Trabalhadores (UGT), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras dos Brasil (CTB) e a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), que formularam queixa perante o Comitê de Liberdade Sindical (CLS).
A queixa foi apresentada perante o CLS no dia 2 de novembro de 2009, na sede da Organização Internacional do Trabalho na cidade de Genebra, Suíça. A denúncia alegou descumprimento dos princípios de liberdade sindical, por conta da política do MPT de processar sindicatos pela inclusão de cláusulas de contribuições assistenciais nos acordos e nas convenções negociadas, que também obrigam o pagamento dessas contribuições pelos trabalhadores não filiados, levando à Justiça do Trabalho demandas calcadas no precedente jurisprudencial 119 do Tribunal Superior do Trabalho.
A queixa relata a ocorrência de atos violadores à liberdade sindical, praticadas por componentes do MPT, seja pela via administrativa (TAC) ou reflexa, por meio de ajuizamento de medidas judiciais conducentes às decisões da Justiça do Trabalho, que chancelam a anulação e/ou desconstituição da vigência e/ou da efetividade das referidas cláusulas contributivas previstas nos instrumentos coletivos, em decorrência da aplicação do Precedente Normativo 119 do Tribunal Superior do Trabalho, sendo que alguns casos determina-se até a devolução dos recursos financeiros de forma retroativa. A denúncia foi registrada e cadastrada como o caso 2739 do Comitê de Liberdade Sindical da OIT (CLS).
2) Perspectiva internacional do tema – o sistema de controle da OIT [3]
A OIT possui sistema de controle da aplicação das normas internacionais, acionado mediante procedimento previsto nos artigos 24 e 26 da Constituição da OIT, na forma de queixa/reclamação. O Comitê de Liberdade Sindical (CLS) se insere como parte do controle especial procedido pelo órgão, subordinado ao Conselho de Administração do organismo internacional, guardião da liberdade sindical e da aplicação das convenções 87 e 98 da OIT.
Criado em novembro de 1951 pela OIT, o CLS é constituído no modelo tripartite, composto, portanto, por três representantes de cada grupo representado na OIT (trabalhadores/empregadores/governos) – totalizando nove componentes, presidido por uma personalidade independente.
A missão do CLS, como órgão de controle da OIT, é a de garantir e promover o direito de associação dos trabalhadores e empregadores, examinando as queixas apresentadas contra os governos por violação dos convênios e princípios em matéria de liberdade sindical. Todos os 185 estados-membro da OIT, devido à autoridade constitucional da organização, têm a obrigação de responder ao CLS sobre qualquer queixa registrada contra eles, sem a necessidade de ratificação das Convenções 87 (liberdade sindical) e 98 (organização sindical e negociação coletiva) pelo estado-membro em questão. Portanto, o Brasil tem o dever de responder ao Comitê, mesmo sem sua ratificação da Convenção 87. A Convenção 98 foi ratificada pelo Brasil em 1952.
3) Conclusões do CLS: análise da queixa [4]
Após longo procedimento de comunicações e observações fornecidas pelo governo brasileiro, o CLS produziu orelatório definitivo no caso 2739 em junho de 2012, contendo suas conclusões finais [5] – item 332: “Quanto à questão de contribuições destinadas à sustentação da estrutura sindical, descontadas dos salários dos trabalhadores,inclusive dos não filiados, conforme a uma cláusula negociada numa convenção ou um acordo coletivo aplicável também aos não filiados que aproveitam dos benefícios da representação sindical, o Comitê havia seguido em casos anteriores o seguinte princípio: se a legislação permitir a prática do desconto obrigatório de contribuições destinadas à sustentação da atividade sindical, inclusive dos não filiados, a prática tem que ser realizada exclusivamente através da negociação dos acordos e das convenções coletivas.” (tradução livre do inglês: Gacek)
A transcrição do trecho supra é resultado concreto do trabalho analítico e interpretativo levado a cabo pelo CLS. Portanto, é importante salientar que as observações reproduzidas representam a avaliação mais atualizada do sistema normativo da OIT em relação à realidade brasileira, notadamente sobre a questão do custeio sindical, vez que já se manifestara sobre este tema, de forma idêntica, no precedente 480, conforme a Recopilação de decisões e princípios do CLS [6].
4) Apreciações gerais do contexto brasileiro
Em razão do contido no relatório definitivo do caso 2739, as deduções contributivas – cláusulas assistenciais – também chamadas deduções de seguridade sindical, ou union security, em inglês, fixadas em assembleia da categoria e inseridas nos instrumentos coletivos de trabalho e cobradas dos não filiados à entidade sindical são válidas de acordo com a doutrina da OIT.
Dessa feita, não são contrários aos princípios de liberdade sindical, desde que a legislação nacional permita a prática dos descontos obrigatórios, e exclusivamente através do processo de negociação coletiva, sem a imposição direta pelas autoridades do Estado. Portanto, vale ressaltar que dentre as prerrogativas sindicaispermitidas pelo artigo 513, alínea “b” da CLT, situa-se a competência para “celebrar convenções de trabalho”, e, na alínea “e”, do mesmo artigo, é atribuição do sindicato: “impor contribuições a todos aqueles que participam as categorias econômicas ou profissionais ou das profissões liberais representadas.”
Em geral, os órgãos de controle da OIT, além do CLS, mais especificamente, o Comitê de Peritos pela Aplicação de Convenções e Recomendações, têm observado e concluído que o Estado e as autoridades governamentais têm o dever de afastar-se da administração e do financiamento interno das organizações sindicais, portanto, tal entendimento de não intervenção ou abstencionista na administração sindical é também definido no relatório produzido pela comissão de peritos da OIT [7].
Tal relatório exemplifica os casos de ingerências contra a autonomia administrativa e financeira sindical praticadas por parte das autoridades públicas: (…) o poder de supervisão geral e indefinida das contas sindicais pelas autoridades públicas; o poder das autoridades de regular e limitar os salários e os benefícios máximos dos empregados contratados pelos sindicatos; regulamentação do montante dos fundos repassados às federações sindicais; (…) intervenção e gerenciamento externo na aplicação dos ativos e das contas de um sindicato nos casos de multas e penalidades impostas na organização. [8]”
Em suma, segundo os órgãos de controle da OIT, não é contrário aos princípios de liberdade sindical, desde que a legislação nacional permita, a cotização sindical – cláusula assistencial – prevista nos instrumentos coletivos, tal contribuição é, também, devida pelos trabalhadores não associados. Portanto, a referida conclusão encontra-se em consonância com os princípios da liberdade sindical prevista nos instrumentos da OIT, sobretudo em sintonia com o conteúdo normativo da Convenção 98 da OIT sobre a organização sindical e a negociação coletiva, tratado internacional ratificado pelo Brasil, e da Convenção 87 sobre liberdade sindical, não ratificada pelo Brasil, mas com os seus princípios aplicáveis ao Brasil por meio da competência do CLS.
(*) Advogado trabalhista, especialista em normas internacionais e liberdade sindical pela OIT, mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná/UFPR e professor de Direito do Trabalho na UFPR.
(**) Advogado trabalhista, diretor-adjunto do Escritório da OIT no Brasil desde 2011, membro da Ordem de Advogados do Distrito de Columbia (Washington, D.C.) desde 1979, juris doutor em Direito pela Harvard Law School, e professor visitante, Harvard University, Departamento de Sociologia, em 2008.
Veja parecer do ministro Sepulveda Pertence sobre o tema
Leia também:
TST defende contribuição sindical para trabalhadores
NOTAS:
[1] Tópico e comentário sob a responsabilidade exclusiva de Sandro Lunard Nicoladeli
[2] PN 119. Contribuições sindicais – inobservância de preceitos constitucionais. “A Constituição da República, em seus arts. 5º, XX e 8º, V, assegura o direito de livre associação e sindicalização. É ofensiva a essa modalidade de liberdade cláusula constante de acordo, convenção coletiva ou sentença normativa estabelecendo contribuição em favor de entidade sindical a título de taxa para custeio do sistema confederativo, assistencial, revigoramento ou fortalecimento sindical e outras da mesma espécie, obrigando trabalhadores não sindicalizados. Sendo nulas as estipulações que inobservem tal restrição, tornam-se passíveis de devolução os valores irregularmente descontados.”
[3] Tópico e comentário sob a responsabilidade de Stanley Gacek
[4] Tópico e comentário sob a responsabilidade de Stanley Gacek
[5] Caso Nº 2739, Brasil, Relatório definitivo, junho de 2012 – Consultado em 18 de abril de 2014:http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=1000:50002:0::NO:50002:P50002_COMPLAINT_TEXT_ID:3063459
[6] Organização Internacional do Trabalho. Recopilação de decisões e princípios do Comitê de Liberdade Sindical do Conselho de Administração da OIT. in: Direito Coletivo, a liberdade sindical e as normas internacionais: vol. II. revisão técnica Sandro Lunard Nicoladeli e Tatyana Scheila Friedrich. São Paulo: LTr, 2013 p. 125
[7] General Survey on the Fundamental Conventions Concerning Rights at Work in Light of the ILO Declaration on Social Justice for a Fair Globalization, 2008, ILC, 101st Session, 2012, Committee of Experts, ILO Geneva, 2012, pp. 42-44, dos Peritos da OIT, 2012. Extraído do site www.ilo.org/dyn/normlex consultado em 22 de abril de 2014
[8] General Survey on the Fundamental Conventions, ILC, 101st Session, 2012, Committee of Experts, ILO Geneva, 2012, pp. 43-44, extraído do site www.ilo.org/dyn/normlex consultado em 22 de abril de 2014.
Do Diap