Debate público da Comissão da Verdade registra homo e transfobia da ditadura

São Paulo – Uma audiência pública da Comissão Nacional da Verdade realizada na tarde de sábado (29) no Memorial da Resistência, na região da Luz, em São Paulo, reuniu estudiosos e ativistas pelos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT) para relatar as práticas de opressão social e policial empregadas em São Paulo no regime militar (1964-1985). A contribuição de testemunhas e pesquisadores do aparelho de repressão moral da ditadura será somada aos demais depoimentos colhidos pela CNV para embasar a redação do relatório final dos trabalhos, que será entregue à presidenta Dilma Rousseff em dezembro de 2014. O diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, representante da comissão na mesa de apresentação, destacou a importância do reconhecimento desses crimes e de sua continuidade para o avanço da luta pelos direitos LGBT.

“Já é mais do que tempo, 25 anos depois do retorno à democracia, que a lei que criminaliza a homofobia seja aprovada no Congresso Nacional, ainda mais que os direitos dos LGBT estão claramente estabelecidos na Declaração Internacional dos Direitos Humanos e nos sucessivos tratados internacionais assinados pelo país após o fim da ditadura”, apontou, antes do início dos depoimentos. “O debate de hoje não é sobre o passado, mas sobre o presente. O fim da ditadura não encerrou a opressão fascista sobre o público LGBT”, pontuou o deputado estadual Adriano Diogo (PT), integrante da Comissão Estadual da Verdade.

Marisa Fernandes, professora da PUC/SP, feminista e militante pelos direitos lésbicos; Rita de Cássia Rodrigues, especialista em relações de gênero da Universidade Federal Fluminense (UFF); Benjamin Cowan, da Universidade George Mason (Virgínia, EUA); James Green, militante pelos direitos LGBT e professor da Universidade de Brown (Rhode Island, EUA); Rafael Freitas, historiador e mestrando da Pontíficia Universidade de São Paulo (PUC-SP); Jorge Caê Rodrigues, designer, doutorando pela UFF e militantes pelos direitos LGBT; e Renan Quintanilha, advogado e membro da Comissão Estadual da Verdade, compuseram o panorama da censura, discriminação e opressão contra o público LGBT durante aquele período.

“Não vou falar sobre a emoção de estar aqui, falando ao senhores, às senhoras, porque senão eu vou chorar”, iniciou Marisa. Em um depoimento crítico também à resistência contra o regime autoritário, relembrou como as lésbicas eram rechaçadas pela cultura da ditadura e da camada mais conservadora da sociedade tanto quanto pela parcela mais ortodoxa da esquerda, que as acusava de divergir da luta de classes para abraçar uma causa elitista. A resistência solitária atravessou os períodos mais pesados da repressão.

Durante as administrações dos governadores biônicos Paulo Egydio Martins (1975-1979, Arena, atualmente no PSDB) e Paulo Maluf (1979-1982, Arena, atualmente deputado federal pelo PP), intensificaram-se as rondas policiais que abordavam prostitutas, gays, lésbicas e travestis com violência no centro de São Paulo. As ações eram incentivadas por parte da sociedade, que assinava abaixo-assinados em defesa da repressão heteronormativa.

“Quando o delegado José Wilson Richetti comandava a Seccional do Centro, organizava abaixo-assinados com comerciantes e moradores dos bairros para justificar os rondões de madrugada. Naquela época, havia detenção por vadiagem e a ordem policial era fotografar os detidos com os vestidos de mulher que estavam utilizando, para que o juiz mais tarde pudesse decidir o quão perigosos eles eram”, lembrou Freitas. Àquela época, eram encorajadas grandes ações repressivas como a Operação Cidade, que, em poucos dias, mobilizou mais de 100 investigadores da Polícia Civil e levou à prisão de 152 pessoas – em sua maioria, prostitutas, travestis e homossexuais.

Veículos alternativos de comunicação, como o Lampião da Esquina, que entre 1978 e 1981 publicou 38 edições com o objetivo de dar voz às reivindicações do público LGBT, enfrentaram dificuldades com a censura, os recorrentes questionamentos no Judiciário contra a publicação e seus redatores, e até atentados terroristas à bomba às bancas de jornais, onde eram deixados bilhetes que exigiam o fim da comercialização de “pornografia”, entre os quais o jornal ativista. Era a época, também, dos esquadrões da morte, grupos de extermínio formados por extremistas e ex-policiais cujo alvo eram “os comunistas, as putas, os travestis”.

Os relatos prestados durante a audiência pontuaram que a ação violenta nas ruas foi precedida de intensa campanha cultural de segregação do público LGBT. “Na época da Guerra Fria, havia a leitura de que a homossexualidade era uma ferramenta marxista-leninista para destruir as instituições do ocidente”, analisa Cowan. “Desde um primeiro momento, a visão não é de direitos civis, mas do ‘desregramento’ social como forma de recrutar subversivos”, completa. “Normativas da censura que proibiam o debate da pobreza e do racismo também proibiam personagens homossexuais, alimentadas por uma intensa atividade da sociedade civil para denunciar conteúdos ‘anormais'”, explicou Rita de Cássia.

A professora ressaltou que o processo de radicalização do preconceito naquele período foi a causa de “grave regressão” no debate sobre os direitos LGBT por mais de duas décadas, atrasando para a década dos anos 2000 conquistas e reivindicações que começaram a ser postas antes ainda da consolidação dos movimentos LGBT após a redemocratização.

Da Rede Brasil Atual

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