Divisão de tarefas domésticas ainda é desigual no Brasil

No fim do ano de 2010, o jornalista e executivo Claudio Henrique dos Santos deixou o Brasil com a família rumo a Cingapura.Sua mulher havia recebido um convite para trabalhar no país asiático. Ele fechou sua recém-aberta loja de vinhos e previu que a experiência anterior como assessor de comunicação em grandes empresas multinacionais abriria portas profissionais no novo país.

Ao chegar lá, a realidade foi outra, porém. Santos não conseguiu obter um visto de trabalho para o novo lar. Isso não prejudicou a vida da família: o salário da esposa era suficiente para dar ao casal e à filha de 3 anos uma condição confortável. No entanto, a situação mexeu com a cabeça dele.

— Eu era um cara supermachista. Não sabia, mas era. Passei o primeiro ano com dificuldades. Eu trabalhei a vida inteira, nunca dependi de ninguém e de repente precisava pedir dinheiro para a minha mulher para comprar um sanduíche.

Sem trabalhar fora, o jornalista se incumbiu da vida doméstica — apenas para passar o tempo, como ele próprio admite, e não por um senso de responsabilidade. Afinal, entendia que aquela não deveria ser sua função.

— Para mim era assim: o gato mia, o cachorro late e a mulher cuida da casa e dos filhos. Parecia uma coisa tão natural.

Pouco tempo depois, a mulher foi promovida e transferida para os Estados Unidos. Santos conta que viu o sucesso da companheira, percebeu que a família estava levando uma boa vida e percebeu que não podia ser ego- ísta a ponto de se rebelar contra isso. Decidiu “sair do armário”: a partir dali, tornou-se dono de casa em tempo integral.

A transformação forçada abriu os olhos de Santos, mas muitos homens brasileiros ainda encaram com normalidade a desigualdade entre os gêneros no compartilhamento das tarefas domésticas. Em abril, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou números, extraídos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, que mostram a diferença da participação de homens e de mulheres nos encargos cotidianos. Apesar de um maior envolvimento deles em comparação com os dados colhidos no passado, ainda são elas que carregam a maior parte do fardo: dedicam o dobro do tempo às tarefas domésticas.

Dupla jornada

Um fator que contribui para alimentar essa desigualdade está associado, curiosamente, a uma mudança social positiva que se processou nas últimas décadas: a inserção resiliente da mulher no mercado de trabalho formal.

A participação feminina na população economicamente ativa avolumou-se consistentemente de meados do século passado até hoje, chegando mais perto de um equilíbrio com a parcela masculina desse grupo — a disparidade chegava, no fim dos anos 1970, a sete homens e três mulheres em cada grupo de dez trabalhadores.

Também cresceu a taxa de atividade econômica dentro da população feminina, que mais do que dobrou no mesmo período, o que significa mais mulheres inseridas ou buscando se inserir no mercado remunerado. Apesar de o auge dessa tendência não ter atingido o mesmo patamar que o da população masculina, a evolução foi bem maior do que a registrada entre os homens.

A especialista em políticas públicas e pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Natália Fontoura explica que essa transformação aconteceu sem que houvesse atenção ao que se passava da porta de casa para dentro. A maior participação das mulheres no mercado de trabalho não veio combinada com uma revisão das configurações domésticas.

Como resultado, a mulher passou a exercer uma jornada múltipla: além do seu novo papel como trabalhadora formal, ela precisa cumprir as tarefas do lar.

— O arranjo tradicional é que o homem é o provedor e a mulher é a cuidadora. Quando passamos a ter uma entrada mais forte das mulheres no mercado de trabalho, começa a haver divisão do trabalho de provimento. Mas o trabalho de cuidados não é compartilhado na mesma magnitude.

A resistência à adaptação das rotinas cotidianas nas famílias é atribuída a valores culturais, que podem estar mudando lentamente. Para a socióloga Milena do Carmo, coordenadora do Instituto Promundo, é possível detectar conscientização crescente entre os novos adultos.

— Acredito que é uma questão geracional. Se antes trabalhávamos com resistência em todos os segmentos da sociedade, hoje encontramos transformações nesse quadro, em especial entre as classes médias.

O Promundo é uma organização não governamental (ONG) que trabalha com a promoção da equidade de gênero em várias frentes. Uma delas é a promoção do envolvimento dos homens na paternidade e nos cuidados domésticos, por meio de projetos educativos em escolas e centros de saúde, de seminários e de pesquisas periódicas.

Esforço

Apesar de enxergar um maior interesse dos homens, em nível individual, em se envolverem na transformação dos modelos padrão de organização familiar, Milena observa que ainda há pouco respaldo social para impulsionar essa mudança.

— Homens cuidando de crianças e limpando a casa ainda causam estranhamento e não têm encontrado apoio da família estendida, de amigos e do local de trabalho. Diversos relatos de pais envolvidos apontam para a dificuldade de encontrar outros homens na mesma situação.

Claudio Henrique dos Santos tem se esforçado para ser parte catalisadora desse esforço. Hoje morando na França, ele vem ao Brasil periodicamente para dar palestras sobre suas experiências pessoais. Também escreveu um livro: Macho do Século XXI — O executivo que virou dono de casa. E acabou gostando (Ed. Claridade, 2013). A adaptação da obra para o cinema está em fase de pré-produção.

Santos conta que se depara com reações positivas dos homens na audiência de suas palestras. Alguns, que já incorporam o compartilhamento de tarefas como parte fundamental da vida cotidiana, mostram-se incentivados a “sair do armário”.

Outros — os “mais cabeçudos”, diz — não reagem mal às exposições, pelo contrário: o jornalista acredita que a trajetória particular dele, sendo inicialmente um homem completamente insensível a essa questão, ajuda- -o a se comunicar bem com essa parcela do público masculino.

— Coloco o cara para pensar que poderia ser ele [no meu lugar], porque eu era igual [a ele]. Se eu não tivesse vivido uma experiência super-radical, continuaria fazendo as mesmas coisas — explica.

Atividade no lar poderá ter reconhecimento como parte da economia e ser incluída no PIB

A desigualdade de gênero no campo das tarefas domésticas não é um tema que possa ser corrigido por interferência legislativa direta, mas há alternativas possíveis ao alcance das políticas públicas. Natália Fontoura, do Ipea, é uma das autoras de um estudo que busca estabelecer um marco conceitual para esse setor de atividades — chamado de “economia dos cuidados”.

A delimitação do termo já é alvo de discussões em nível acadêmico e há inclusive correntes divergentes que defendem definições mais ou menos abrangentes: uma delas se restringe aos cuidados diretos de pessoas dependentes e vulneráveis, enquanto a outra se refere a toda atividade necessária para manter a integridade de um ambiente (como lavar louça, fazer faxina e cozinhar). O que ambas as definições têm em comum, porém, é o objetivo de dar reconhecimento econômico a tarefas que são consideradas corriqueiras, mas que, se não forem realizadas, inviabilizam o funcionamento da economia formal.

— O cuidado doméstico não brota naturalmente se ninguém fizer, e só se alguém fizer é que as pessoas podem fazer todas as outras atividades, como trabalhar fora e ir para a escola. Tudo depende disso. A noção de trabalho tinha muito a ver com o mundo produtivo, gerando um bem ou produto mercantilizado, mas é importante entender que os cuidados são um trabalho — argumenta Natália.

O marco conceitual buscado pelo estudo do Ipea teria a função de inserir a economia dos cuidados no produto interno bruto (PIB) brasileiro, encontrando uma forma de quantificá-lo e atribuir a ele uma fatia da economia nacional. Com essa estatística em mãos, seria possível evidenciar a contribuição que as tarefas domésticas cotidianas prestam para a produtividade nacional.

Natália entende, ainda, que identificar essa contribuição jogará uma luz diferente sobre a discrepância da participação de cada gênero nas atividades domésticas.

Projetos

Há um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que busca atingir essa finalidade. O PL 7.815/2017, da deputada Ana Perugini (PT-SP), inclui a economia de cuidados (em definição mais ampla) no Sistema de Contas Nacionais — uma base de dados do IBGE que afere o desenvolvimento econômico e social do país e serve de parâmetro para a elaboração de políticas públicas.

O projeto já foi aprovado pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e ainda precisa passar por três outros colegiados antes de ser votado pelo Plenário da Câmara.

Iniciativas parlamentares que têm a intenção de corrigir o problema da desigualdade na divisão de tarefas domésticas devem fazê-lo de forma indireta, tangenciando a questão pelas suas consequências. É o caso, por exemplo, do PLS 151/2017, da senadora Rose de Freitas (PMDB-ES), que amplia a licença-maternidade de 120 para 180 dias e permite o compartilhamento de um terço desse período com o cônjuge. O objetivo é estimular maior envolvimento dos pais na etapa inicial da criação dos filhos.

Também faz parte dessa agenda o PLS 236/2011, da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), que obriga todas as empresas com mais de 100 funcionários a manterem creche em seus estabelecimentos. Dessa forma, as trabalhadoras teriam um recurso para poder retomar a vida profissional com tranquilidade.

Iniciativas como essas são consideradas positivas por Milena do Carmo, do Instituto Promundo. Ela defende maior envolvimento do poder público na sensibilização da sociedade para a necessidade de se implementar políticas de equalização das obrigações.

— Todo e qualquer apoio e responsabilização do Estado e da sociedade como um todo na educação de crianças irá transformar a realidade das famílias — afirma.

Natália também vê com bons olhos as ideias, mas adverte que elas devem ser formuladas de modo a não perpetuar a naturalização da divisão desigual de tarefas.

— As propostas são válidas, mas não suficientes. Não basta só oferecer vaga de creche sem entender que esse trabalho não deveria ser só da mulher.

Agência Senado

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