Entenda como a terceirização é a porta de entrada para o trabalho escravo

Brasil bateu recorde de resgates no trabalho análogo à escravidão. Para procuradora do MPT e dirigentes cutistas a terceirização facilita o trabalho escravo, mas há outros fatores responsáveis pela precarização

O Brasil bateu recorde no número de trabalhadoras e trabalhadores resgatados do trabalho análogo à escravidão no ano passado: 3.190, sendo a grande maioria no setor agrícola. Por detrás desse número há o lado perverso que envolve a terceirização (a cada 10 trabalhadores resgatados, nove são terceirizados), o descaso de empresários, o Congresso Nacional, decisões judiciais e a falta de políticas públicas de Estado mais efetivas. Aliada a esses fatores, a pandemia da Covid-19, que aprofundou a crise econômica, também foi responsável pelo aumento do trabalho análogo à escravidão.

A análise de que esses fatores são os principais responsáveis, dentre tantos outros, pelo trabalho análogo à escravidão ainda persistir no país é da vice-coordenadora Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do MPT, a procuradora do Trabalho, Tatiana Leal Bivar Simonetti.

Desde que a terceirização do trabalho foi aprovada na nefasta reforma Trabalhista de 2017, do governo de Michel Temer (MDB-SP), que cada vez mais empresas terceirizam a mão de obra contratada, sem os devidos cuidados que exigem a legislação.

Segundo a procuradora do MPT, a empresa que terceiriza tem responsabilidade legal pelos seus terceirizados, por sua cadeia de fornecedores, é ela que deve traçar os limites de qual atividade é possível terceirizar.

“Mas há a interpretação social de que qualquer atividade agora pode ser terceirizada. E como se não houvesse requisitos legais, então a empresa que terceiriza, na verdade, deixa de fazer diligências para verificar se suas prestadoras de serviço têm capacidade econômica, se estão cumprindo com os direitos trabalhistas. Essa forma de trabalho flexibilizada impulsiona uma irresponsabilidade nessa cadeia de fornecimento ao se criar uma falsa sensação de que agora se pode terceirizar todos os trabalhos prestados”, diz Tatiana.

O secretário de Relações de Trabalho da CUT Nacional, Sérgio Ricardo Antiqueira, atribuiu exatamente à terceirização a maior responsabilidade pelo crescente número de trabalhadores submetidos a situações análogas à escravidão e, por isso é preciso regulamentar a Emenda Constitucional (EC nº 81), que trata do tema.

“Há 10 anos os resgates se concentravam no setor da construção civil, agora a maioria se encontra na agricultura, mas nós temos no Congresso Nacional as bancadas do boi, bíblia e bala que nem se interessam pela regulamentação da EC que expropria terras urbanas ou rurais de quem escraviza. Ao contrário, essas bancadas incentivam a retirada de direitos trabalhistas”, diz Sergio.

A secretária de Políticas Sociais e Direitos Humanos da CUT Nacional, Jandyra Uehara, ressalta que apesar dos sindicatos fazerem o trabalho de denúncia de trabalho escravo, essa é uma questão que precisa de medidas efetivas de controle do Estado, principalmente em relação à auditoria do trabalho.

“Hoje há um déficit nos quadros da auditoria fiscal o que impacta, por exemplo, na fiscalização do trabalho escravo, no cumprimento da legislação trabalhista e no combate às piores formas de trabalho infantil. Um outro ponto são as sanções, as multas e indenizações às pessoas resgatadas deveriam ser muito maiores para coibir a prática e além disso uma maior divulgação da lista suja para os consumidores terem a real noção das empresas que se utilizam do trabalho escravo”, avalia Jandyra.

A vice-coordenadora do Conaete, no entanto, avalia que o aumento dos resgates tem sido possível graças a um esforço concentrado de vários órgãos, sob a coordenação do Ministério do Trabalho e Emprego, com as parcerias do Ministério Público do Trabalho, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal e o Ministério Público Federal.

“Foram deflagradas várias operações simultâneas em vários estados, ao mesmo tempo para, justamente, diligenciar acerca das denúncias sobre trabalho escravo”, afirma Tatiana.

O trabalho escravo e a legislação

Sobre a legislação de combate ao trabalho escravo, a procuradora do MPT diz que ela é suficiente para punir os responsáveis, e que é elogiada em organismos internacionais.

“Eu não tenho tanta propriedade para falar das dificuldades de processo penal, mas uma das questões trazida pelos colegas, procuradores da República, é que o processo criminal exige um nível de consolidação de provas maior do que o processo civil e o trabalhista. Isso porque a finalidade do tipo penal é pena de reclusão, então as regras são mais rígidas para chegar à condenação criminal”, pondera.

Para Tatiana, o grande desafio que se põe para os órgãos que compõem o grupo móvel que está atuando no combate ao trabalho escravo é estruturar sua atuação, melhorar o nível de prova para que essa condenação seja uniforme e em todas as instâncias judiciais.

“A nossa lei não precisa de reparos, o nosso conceito é estritamente aberto e comporta todo o nível de degradação, de exploração, de subjugação humana para fins de trabalho análogo à escravidão. O problema não é de lei de fato, o problema é talvez, processual”, analisa a procuradora do MPT.

O secretário de Relações do Trabalho da CUT, no entanto, ressalta que o Supremo Tribunal Federal (STF), tem “dificultado” punições em relação a terceirização, o que, segundo ele, favorecem as empresas que burlam as leis trabalhistas.

“Temos visto alguns casos em que o Supremo tem revertido decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo e também do TST [Tribunal Superior do Trabalho], em relação à terceirização e isso favorece essas empresas, principalmente do agronegócio, justamente por conta do governo Temer que produziu a reforma Trabalhista e que Bolsonaro piorou”, diz Sergio.

Para ele, é preciso que a empresa que terceiriza tenha de fato responsabilidade legal pelos seus terceirizados e, por sua cadeia de fornecedores. Veja abaixo os projetos de lei sobre trabalho escravo.

A procuradora do MPT destaca ainda que o desemprego estrutural faz com que as pessoas aceitem promessas falsas de empregos, por necessidade de sobrevivência.

“Aceitam trabalho por um prato de comida, porque nas suas localidades de origem não há emprego, não há implementação de política pública para dar ali aqueles direitos básicos”, diz Tatiana.

Já a secretária de Políticas Sociais e Direitos Humanos da CUT Nacional ressalta que os trabalhadores vivem ciclos de passagens por locais onde o trabalho análogo à escravidão é comum.

“Isso se dá por falta de alternativas de trabalho nas regiões, e as indenizados decorrentes dos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC’s), firmados não são dirigidas diretamente aos trabalhadores e não são criadas alternativas de empregos. Isso faz com que no ano seguinte vários trabalhadores sejam novamente resgatados do trabalho análogo à escravidão”, diz Jandyra.

Pandemia

Outro fator apontado como causa do aumento do trabalho escravo pela procuradora do MPT foi a pandemia e o período pós-pandêmico que afetaram a educação.

“Houve um revés muito grande na educação formal, o que fez as pessoas entrarem no mercado de trabalho sem qualificação, e isso faz com que elas sejam naturalmente exploradas, por não terem consciência dos seus direitos. Os fatores são múltiplos”, analisa Tatiana.

As lutas da CUT nesse sentido, envolvem outras ações como a redução da idade mínima para o trabalho e a defesa da aprendizagem profissional, pois é a única política pública em vigor para qualificação, profissionalização e inserção de jovens e adolescentes no mercado de trabalho, principalmente aqueles em situações de vulnerabilidade, para que possam ter uma entrada digna no mercado de trabalho após concluir os estudos com melhores chances de transformar a vida e a sociedade.

Aumento de trabalhadoras domésticas escravizadas

No ano passado foram resgatadas 27 trabalhadoras domésticas. A promotora do MPT ressalta que é muito simbólico o aumento do trabalho escravo doméstico porque estamos falando de mulheres, principalmente, negras, que tiveram suas infâncias negadas, pois desde pequenas foram ali traficadas.

“Elas foram cooptadas no interior, levadas para a grande cidade. Estamos falando de resgates que aconteceram em grandes capitais, São Paulo, Belo Horizonte. Isso é muito simbólico para demonstrar a situação da mulher no mercado de trabalho, desse passado escravagista”, analisa Tatiana.

A procuradora do MPT ressalta ainda que o principal desafio é fazer com que essas mulheres entendam que foram escravizadas pois há uma ambiguidade de afetos por elas não conhecerem outra realidade, elas estão ali afetivamente, seja por bem ou por mal, elas estão vinculadas afetivamente, emocionalmente àquela realidade que conhecem.

“Por pior que sejam tratadas e mesmo sendo submetidas a vários tipos de violência, é o único tipo de realidade que elas conhecem. Elas não têm outro tipo de vínculo afetivo. Então, é um desafio extremo a gente olhar para essa realidade e entender o quanto a gente precisa superar a implementar as políticas públicas para que as mulheres, especialmente mulheres negras, não tenham as suas vidas sequestradas por falta de políticas públicas que lhe deem educação formal”, afirma a vice-coordenadora Nacional da Conaete.

Projetos de lei sobre o trabalho escravo

Tanto na Câmara Federal como no Senado tramitam os seguintes projetos de leis sobre o trabalho escravo: PL n° 5970, de 2019, de iniciativa do Senador Randolfe Rodrigues (Rede/AP); PL nº 1.678, de 2021, de autoria dos Senadores Rogério Carvalho (PT/SE) e Paulo Paim (PT/RS), ambos propondo a regulamentação do art. 243 da Constituição Federal sobre a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem a exploração de trabalho escravizado.

Ainda, Projeto de Lei 861, de 2023, de iniciativa do Deputado Federal André Figueiredo (PDT/CE) que propõem a alteração da Lei n. 6.019, de 1974, para determinar que, em caso de terceirização, a contratante seja responsável por impedir que trabalhadores sejam submetidos a condições análogas à de escravo e o Projeto de Lei n° 4371, de 2019, também de iniciativa do Senador Randolfe Rodrigues, que torna crime hediondo a conduta de redução de alguém à condição análoga à de escravo, mediante submissão a trabalhos forçados, jornada exaustiva ou condições degradantes de trabalho ou restrição

Os números das operações

Segundo dados do MPT, a instituição participou de 255 operações de combate ao trabalho escravo em 2023. Também no ano passado, o MPT firmou 218termos de ajuste de conduta (TACs), ajuizou 19 ações civis públicas e garantiu aos trabalhadores R$ 9,7 milhões em indenizações por dano moral coletivo.

De acordo com o MTE, os estados com o maior número de trabalhadores resgatados foram Goiás (739), Minas Gerais (651) e São Paulo (392). Entre os setores com maior quantidade de esgotados estão o cultivo de café, com 302, e a cana-de-açúcar, com 258.

Estados

Os estados que mais tiveram trabalhadores resgatados foram, pela ordem: Goiás (739), Minas Gerais (651), São Paulo (392) e Rio Grande do Sul (334).

Como denunciar o trabalho escravo

Qualquer pessoa pode relatar casos de trabalho análogo à escravidão por meio do Sistema Ipê ou do Disque 100.

O Ipê, portal ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego, recebe e encaminha denúncias exclusivas de crime de redução a trabalho análogo ao de escravo.

O Disque 100 é voltado a quaisquer violações dos direitos humanos e gerido pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

Da CUT

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