“Imperialismo causa inflação”: economista explica alta de preços além dos aspectos monetários
Professor Leonardo Leite, da UFF, chama atenção para o papel do Brasil como país periférico na economia mundial
A inflação não é apenas um fenômeno monetário, que pode ser resolvido com pequenas reformas na política econômica. Ela está ligada ao papel que os países desempenham no capitalismo global, como ditam ou absorvem tendências, e para onde são transferidas suas riquezas.
É sob esse olhar que o economista Leonardo Leite, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), analisa um problema que intriga desde o Fundo Monetário Internacional (FMI) até os milhões trabalhadores que perderam renda na pandemia e se deparam com o aumento dos preços nos supermercados.
“Sabe o que mais causa inflação nos países periféricos? O imperialismo!”, escreveu Leite no último dia 13, em sua conta no Twitter.
Entre críticas e elogios, a postagem – que explica e demonstra graficamente sua hipótese – fez com que ele dobrasse o número de seguidores na rede social.
Para o professor da UFF, a repercussão demonstra a atualidade do tema e a pertinência da análise, que ele pretende desenvolver em pesquisas acadêmicas.
O imperialismo, a que Leite se refere, é o conjunto de políticas de domínio econômico, político e cultural que os países ricos exercem sobre aqueles que estão na periferia do capitalismo global, como o Brasil.
O economista, que integra o Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (Niep-Marx), explica por que aumentar a taxa de juros não resolverá o problema do acesso a mercadorias e alimentos.
Na interpretação dele, o problema requer mudanças estruturais, que envolvem desde o incentivo à agricultura familiar até uma reforma urbana.
Confira os melhores momentos da entrevista com Leonardo Leite:
Brasil de Fato: Muitas vezes, a inflação é tratada apenas como um fenômeno monetário, que poderia ser controlado a partir de medidas como o aumento dos juros. Essa vem sendo a opção de Bolsonaro e Paulo Guedes e, mesmo assim, os preços continuam subindo. Por que isso acontece?
Leonardo Leite: Eu estava acompanhando ontem [21/10] uma discussão do Banco Central Europeu, com o presidente do FMI, entre outros. E um dos economistas que participavam do evento chamou atenção para o fato de não termos uma teoria da inflação.
Então, nem os teóricos liberais, os economistas tradicionais, têm certeza do que é inflação e como ela é causada.
Muitas vezes, a gente ouve falar só de taxa de juros, mas a inflação não é apenas um fenômeno monetário. Não é apenas uma maior quantidade de moeda em circulação que causa a inflação.
O Brasil não é um país que produz as tendências da economia mundial. Ele se insere nela de forma subordinada e recebe, absorve essas tendências.
A gente tem um histórico de inflação que não é recente. É um problema recorrente, desde as décadas de 1950, 1960. Todo mundo lembra que, nos anos 1980, também tivemos uma crise inflacionária muito grande.
E não é só no Brasil. A inflação média nos países chamados periféricos, que têm essa inserção subordinada, é maior do que nos países desenvolvidos.
O chamado G7 das economias mundiais tem uma inflação muito menor, e isso é histórico. Então, tem componentes importantes, estruturais, que explicam isso. Não é só um erro de política econômica.
No nosso caso, a inflação está especialmente associada ao preço do dólar. Esse é o ponto-chave. Quando ele aumenta, isso gera uma série de efeitos que produzem aumento de preços.
Inclusive o FMI, no Panorama Econômico Mundial, divulgado recentemente, mostra que a aceleração da inflação está associada a episódios de desvalorização da moeda.
O aumento do preço do dólar encarece, por um lado, os produtos que a gente importa. E, ao mesmo tempo, por exemplo, temos hoje no Brasil um problema com o preço da carne. Por que ele, sobe, com a desvalorização cambial, se a gente não importa carne? Porque os grandes frigoríficos diminuíram o abastecimento do mercado interno para mandar mercadorias ao exterior.
Então, a diminuição do volume de mercadorias no mercado interno aumenta o preço.
A valorização do dólar não acontece por acaso. Estamos falando da moeda dos Estados Unidos, de decisões que são tomadas por empresários e operadores do mercado financeiro no Hemisfério Norte e que impactam na vida dos trabalhadores brasileiros. É por isso que você sustenta que o imperialismo é uma das causas da inflação em países periféricos?
Exato. Quando a gente analisa a conjuntura econômica, tem alguns elementos que são estruturais. Por exemplo, o imperialismo. Ele molda a forma como a gente se conecta com as demais economias do mundo.
Nós temos uma tendência de transferir valores para o resto do mundo. Esse é um ponto-chave, compartilhado pelo conjunto da América Latina.
As empresas que atuam no Brasil transferem valores ao exterior por vários caminhos. Por exemplo, parte das empresas transnacionais que atuam no Brasil remetem lucros ao exterior. Então, todo final do ano, a empresa gera um montante que é repatriado pelas matrizes.
E há vários outros canais: pagamento de juros da dívida externa, pagamento de royalties... Pelo comércio internacional, também ocorre uma série de processos de transferência de valor para o exterior.
É, basicamente, transferência de riqueza produzida aqui dentro – de dinheiro, em última instância.
Essa transferência gera, constantemente, uma pressão e uma escassez de dólares, então o preço aumenta aqui dentro.
A inflação dos anos 1980, por exemplo, está muito associada à crise da dívida externa, aumento da taxa de juros nos EUA e fuga de riquezas para lá. Então, são vários episódios que explicam e mostram para a gente como isso aconteceu.
Esses episódios recorrentes de crise inflacionária no Brasil têm elementos em comum, mas também particularidades – como as que você mencionou sobre os anos 1980. Qual a especificidade do atual momento de alta dos preços? A desindustrialização e a dependência cada vez maior do agronegócio são fatores decisivos?
O empresário opta, muitas vezes, por aplicar seu dinheiro na Bolsa de Valores, em títulos públicos, bitcoins, em vez de fazer um investimento produtivo, que aumentaria a oferta de produtos e teria um impacto sobre a inflação.
Então, a reprimarização da nossa economia, associada a essa financeirização, são duas características decisivas do período atual.
O aumento da taxa de juros, como tentativa de controlar a inflação, pode ter efeito contrário, estimulando ainda mais a financeirização? Qual a alternativa, nesse caso?
A taxa de juros tem dois papéis básicos. Um é deprimir, desaquecer a economia. Só que isso é uma tragédia em um país que vive uma crise social como a que estamos assistindo.
É um mecanismo que desaquece também o mercado de trabalho.
Outro aspecto é que o aumento da taxa de juros atrai capitais especulativos de fora para dentro. É uma tentativa de reverter essa transferência de valor, trazendo dólares ao Brasil.
Qual o problema disso? Os Estados Unidos estão passando hoje por um período que eles chamam de “aperto monetário”. Eles estão começando a reduzir os estímulos gigantescos que incluíram após a crise de 2008 e que reforçaram com a pandemia. E, daqui a pouco, vão aumentar as taxas de juros.
Então, esse aumento da taxa de juros aqui tende a ser anulado, porque esse capital está interessado a ir aos EUA, onde tem um ganho mais certo.
Ou seja, a taxa de juros não é o mecanismo ideal para combater a inflação.
A inflação no Brasil tem dois componentes principais hoje: o preço do dólar, que já mencionei, e a crise energética, uma escassez hídrica que levou ao aumento do custo da produção de energia elétrica.
De onde vem essa crise energética? Da utilização da água. E quem mais utiliza água no Brasil? O agronegócio, que também é o grande exportador.
Este ano, segundo o IBGE, teremos um recorde da safra de soja. Essa safra é exportada. Então, a exportação de soja é uma exportação de água também, porque a água está incorporada na produção.
Então, tem uma série de mecanismos de natureza mais estrutural que precisariam ser feitos. Por exemplo, um componente importante da inflação no Brasil é a alimentação.
A inflação da cesta básica está em 16% este ano. Quem produz alimentos no Brasil? A agricultura familiar. Então, são necessários mecanismos de estímulo à agricultura familiar, reforma agrária, que ampliassem a oferta de alimentos saudáveis na mesa do brasileiro.
Então, eu tenho dificuldade de ver mecanismos na política econômica capazes de reverter esse processo. A não ser, mecanismos que estimulassem a produção, de fato. Mas, isso exigiria uma série de reformas estruturais.
Por exemplo, 16% da inflação vem da habitação. O preço dos aluguéis está subindo exorbitantemente. Qual a saída para isso? Uma reforma urbana, que utilize parte dos imóveis desocupados para fins sociais, o que diminuiria a pressão sobre os aluguéis.
Ou seja, me parece que, com um conjunto de reformas estruturais, populares, é possível atacar a inflação sem piorar a vida do povo.
As reformas que você menciona levam a pensar os problemas econômicos além da “caixinha” do liberalismo. Essa é uma das propostas da Teoria Marxista da Dependência, que teve ampla repercussão na América Latina a partir dos anos 1960. Você vê nessa teoria contribuições importantes para pensar o Brasil do século 21?
Estamos em uma crise muito grave, radical, e muito dramática. Vemos cenas de barbárie no nosso cotidiano. Estamos normalizando pessoas revirando caminhão de lixo, indo atrás de carcaças de bovinos. Do ponto de vista ecológico, é uma crise igualmente grave, cuja solução paliativa não vai resolver o problema.
Então, uma crise nas proporções que estamos vivendo, só poderá ser superada de maneira positiva, para o conjunto da população, pensando fora da caixinha.
O conjunto de soluções implementadas até hoje não deram certo, então precisamos pensar em alternativas diferentes.
Temos teorias construídas por pensadores na América Latina que nos ajudam a compreender os problemas de hoje. Uma delas é a Teoria Marxista da Dependência, embora os primeiros trabalhos sejam dos anos 1960 e 1970.
O autor básico dessa teoria é Ruy Mauro Marini, que constrói uma interpretação muito particular do capitalismo latino-americano.
O ponto-chave é a vinculação entre a inserção da América Latina no capitalismo global, que gera um processo de dependência através do imperialismo, com a superexploração da força de trabalho.
É uma força de trabalho que tem remuneração cada vez menor, com condição cada vez menor de ter acesso a bens e serviços – um padrão de vida que vai se deteriorando.
Hoje em dia, os EUA estão passando por uma reestruturação do mercado de trabalho. Com a injeção bilionária de recursos na economia, está havendo um crescimento econômico, com desemprego em nível baixíssimo. O poder de barganha dos trabalhadores está aumentando, os salários estão crescendo.
Então, as empresas estão adotando tecnologias que economizam, poupam e eliminam trabalho do processo produtivo. Não só lá: se a gente for em qualquer rede de fast-food no Brasil, vemos uma tendência de automatização, com cada vez menos funcionários atendendo.
Essas inovações tecnológicas, essa automatização, vão ser incorporadas no processo produtivo no Brasil. As empresas brasileiras, no afã de lucrar mais, vão incorporar essas técnicas, gerando uma crise dramática no mundo do trabalho.
Esses trabalhadores vão para a marginalidade social, para um processo de pauperização mais acelerado, que é a superexploração da força de trabalho.
Perceba a atualidade desses conceitos. E pensar o Brasil a partir deles nos exige soluções que transformem nossa realidade radicalmente. Ou seja, soluções paliativas não vão resolver o problema.