Mulheres chefes de família e a vulnerabilidade à pobreza
Cristina Pereira Vieceli
Uma das políticas adotadas para mitigar os efeitos da pandemia sobre a população mais pobre foi a distribuição da renda básica emergencial. Inicialmente, o governo planejava distribuir R$200,00 para a população. Por pressão dos movimentos sociais, o auxílio passou para R$600,00, e, dentre as famílias chefiadas por mulheres, sem cônjuge no domicílio, para R$1.200,00 [1]. Até junho, o programa beneficiou 29,4 milhões de domicílios brasileiros, o que representa 43% do total de domicílios do país. O auxílio é destinado aos trabalhadores e trabalhadoras informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados [2].
Neste momento, o benefício ganha particular relevância, haja vista os impactos da crise pandêmica no mercado de trabalho. A situação do trabalho no Brasil vinha em desaceleração desde 2015, apresentando forte crescimento no nível de desemprego e da informalidade. Este cenário acomodou o nível de desemprego acima de 10%, com altos índices de informalidade. Ao mesmo tempo, os efeitos da pandemia afetaram também na composição da força de trabalho. No segundo trimestre do ano, houve um crescimento de 20,1% do percentual de trabalhadores fora do mercado de trabalho, o que indica que parcela da população desistiu de procurar emprego, sob reflexo da recessão que envolve o país [3].
A situação de pandemia tende a agravar desigualdades estruturais existentes, entre as quais a de gênero e raça. A destinação de uma parcela da renda básica de R$1.200,00 para as famílias chefiadas por mulheres sem cônjuge e com filhos se baseia no fato de que essa composição familiar é extremamente vulnerável à situação de pobreza. Esse modelo de arranjo é composto por maioria absoluta de mulheres. Em 2018, 12,755 milhões de pessoas viviam em arranjos familiares formados por responsável, sem cônjuge e com filhos até 14 anos, compreendendo 7,4% da população. Desse total, em 90,3% dos domicílios a responsável era mulher. Dentre estas, 67,5% eram pretas ou pardas e 31,2% brancas.
Considerando a situação de pobreza e extrema pobreza, dentre os arranjos familiares, os formados por mulheres, sem cônjuges e com filhos menores de 14 anos estão entre os mais concentrados na situação de pobreza extrema. Esses arranjos compreendem 20,6% do total da população que vive em extrema pobreza no país. Os que possuem chefia de mulheres pretas ou pardas concentram 23,7% da população extremamente pobre, enquanto dentre as brancas o percentual é de 13,9%.
A situação é ainda mais profunda quando consideramos os domicílios pobres, nos quais as mulheres chefes, com filhos e sem cônjuges concentram 54% do total, aqueles chefiados por mulheres pretas e pardas 63%, e os chefiados por mulheres brancas 39,6%. Ou seja, ainda que represente menos de 8% da população do país, esses arranjos concentram a maior parte dos domicílios pobres (Gráfico 1).
Gráfico 1 – Proporção de pessoas (%) e arranjos domiciliares por situação de pobreza e extrema pobreza, Brasil, 2018
É importante, portanto, constatar que o perfil familiar do país mudou, a começar com o crescimento dos domicílios chefiados por mulheres, cujo percentual se aproxima daqueles cuja chefia é masculina, abrangendo 48,2% em 2019 [4], quando entre os homens o percentual é de 51,8%. Em 1995, somente 22% das famílias eram chefiadas por mulheres. A maior responsabilidade por suas famílias, no entanto, não resultou em melhorias na renda e oportunidades de trabalho. As famílias chefiadas por mulheres estão mais concentradas em faixas de renda per capita baixa, 53,4% vivem com até 1 salário mínimo (SM) por mês, quando entre os homens o percentual é de 46,46%. Dentre as famílias chefiadas por mulheres 11,28% recebem renda per capita mensal de até ¼ de SM e 14,54% mais de ¼ até ½ SM; no caso dos homens a participação é de 9,5% e 11,55%, respectivamente (Gráfico 2).
Gráfico 2 – Distribuição dos domicílios chefiados por homens e mulheres por faixas de renda, Brasil, 2019
No outro lado, os chefes homens apresentaram maior participação comparativa entre as faixas de renda per capita domiciliar mais elevadas: 14,63% dos chefes homens estão alocados em domicílios com renda per capita acima de 3 SM; no caso das mulheres chefes a concentração nessa faixa é de 11,66%.
A maior parte das mulheres chefes de família está ocupada como trabalhadora no setor privado, abrangendo 36% do total. Porém há um percentual elevado de trabalhadoras domésticas e por conta própria, que abrangem 17,2% e 25,2% respectivamente; as duas ocupações somam 42,4% do total das chefes ocupadas. Outro grupo importante é o daquelas ocupadas no setor privado, 36,0%, e no setor público, 16,5%. No caso dos homens chefes, a maior participação está no setor privado: 46,1%, trabalhadores por conta própria, 34,2% e empregados no setor público, 9,3% (Gráfico 3).
Gráfico 3 – Distribuição dos domicílios chefiados por homens e mulheres por posição na ocupação do(a) chefe da família e sexo, 2019
No caso dos domicílios chefiados por mulheres, um dos principais fatores relacionados à vulnerabilidade à pobreza está relacionado com a forma precária como o país oferta os trabalhos reprodutivos, sejam eles remunerados e não remunerados. Ao mesmo tempo que faltam políticas públicas voltadas à essas atividades, obrigando as famílias, principalmente as mulheres, a arranjarem espaços em sua rotina para desempenhar os serviços.
A respeito da suscetibilidade das famílias chefiadas por mulheres à problemas ligados à falta de recursos monetários e de tempo, Felker-Kantor e Wood (2012) [5] analisaram, a partir da Pesquisa de Segurança Alimentar realizada pelo IBGE em 2009, que as famílias chefiadas por mulheres tinham 32% maior probabilidade de se encontrarem em situação de insegurança alimentar moderada e 16% maior probabilidade de se encontrarem em situação de insegurança alimentar severa quando comparadas com as famílias chefiadas por homens. No entanto, a chance do domicílio de se encontrar em situação de insegurança alimentar aumenta com o incremento de homens adultos e crianças. Por outro lado, o acréscimo de mulheres não diminui a insegurança alimentar. O estudo, portanto, reitera duas conclusões: as mulheres possuem maior suscetibilidade à pobreza, pela sua forma de ingresso no mercado de trabalho e sobrecarga de trabalhos domésticos, e, também, que o trabalho feminino e o perfil de consumo feminino possuem efeito positivo sobre o bem estar das crianças e dos demais membros dos domicílios.
A situação de pobreza e vulnerabilidade feminina e dos domicílios chefiados por mulheres tende a se aprofundar no período de pandemia, com o deslocamento de parte dos trabalhos de reprodução social do mercado para os domicílios. A crise tende a radicar o papel da mulher como cuidadora. Pesquisa realizada pelo DataFolha (2020) revelou que 57% das mulheres que passaram a trabalhar em regime de home office relataram que acumulam a maior parte dos cuidados com a casa; no caso dos homens o percentual é de 21% [6]. Outra pesquisa, organizada pela “Gênero e Número” e “Sempre Viva Organização Feminista” (2020), indica que 50% das mulheres passaram a cuidar de alguém e 72% afirmaram que a pandemia aumentou a necessidade de monitoramento e companhia [7].
Por conseguinte, durante e após o período da pandemia deve-se considerar políticas que visem a manutenção da renda da população mais pobre, na qual se encontram as mulheres. Estas devem ser financiadas por uma tributação progressiva, considerando a maior tributação sobre o patrimônio, lucros e dividendos. Também, a permanência da desoneração de impostos sobre a cesta básica de alimentos, haja vista a diminuição da renda total da classe trabalhadora, especialmente as famílias em maior vulnerabilidade. Por fim, é importante para os formuladores de políticas públicas, a incorporação de indicadores de pobreza de tempo que possui relação direta com a monetária.
Também há necessidade urgente de aumentar os gastos públicos em áreas voltadas aos cuidados de pessoas, sejam eles diretos ou indiretos. Um estudo organizado pelo projeto Care Work and Economy indica a importância das políticas fiscais voltadas para as áreas de cuidados [8]. Os resultados da pesquisa apontam que as políticas voltadas para a criação de empregos nas áreas de cuidados são mais eficazes em termos de geração de renda, diminuição da pobreza monetária e de tempo, e redução das desigualdades de gênero do que as voltadas para a criação de empregos nas áreas de construção civil e infraestrutura. Para tanto, é necessária uma agenda econômica que tenha como prioridade a vida das pessoas, o que perpassa pela revisão do teto dos gastos.
Notas
2 28354-distribuicao-de-auxilio-
3 Dados da PNAD-C/IBGE
4 Dados PNAD-C/IBGE
5 FELKER-KANTOR. E; WOOD C. H. Female households and food insecurity in Brazil. Food insecurity, dez 2012. Disponível em: https://www.researchgate.net/
7 http://mulheresnapandemia.sof.
8 Disponível em: http://research.american.edu/
Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutoranda em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, colunista do site DMT e integra o coletivo Movimento Economia Pró-Gente.