O 13 de maio e o brado dos(as) negros(as) contra a escravidão e pela cidadania

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

Voltaire – filósofo francês do século XVIII, considerado um das mais autorizadas vozes do iluminismo – bradava que só tinha esperança no clamor popular.

Os acontecimentos da vida social, que correu e corre nos séculos seguintes – XIX, XX e XXI -, cuidaram de dar razão a esta ilustrada metáfora, a começar pela revolução francesa, que rebentou logo depois de ela ser lançada à posteridade por todo o sempre, bem como todos os movimentos sociais que a esta se sucederam e que se contam às centenas.

Apesar de muitos assim não considerarem, a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, que, portanto, acaba de completar 126 anos, simboliza o coroamento da primeira etapa do multissecular clamor social dos milhões de negros(as),  trazidos(as) e/ou transportados(as) à força das armas e da crueldade para o Brasil nas fases colonial e imperial, do início do século XVI ao final do XVIII; clamor ao qual se associaram retumbantes vozes, como a do imortal poeta Castro Alves. Esta lei pôs fim à odiosa, caduca e desumana legalização da escravidão.

Se é fato que a efetiva libertação dos(as) negros(as) ainda não se consumou com a conquista da cidadania plena, como provam os persistentes atos de racismo, aqui e alhures, demonstrados por palavras, gestos e estatísticas, como as do mundo e do mercado de trabalho, as educacionais e as carcerárias, a perseverança destas chagas sociais não pode servir de mote para se desqualificar o simbolismo da Lei Áurea, pois que isto significaria negar o eco dos retumbantes gritos dos quilombos, personificados em Zumbi do Palmares, de Luís Gama, que simbolizou a luta pelo abolicionismo nas últimas décadas do século XIX, e dos milhares que morreram em busca da liberdade, ao longo de quase quatro séculos de escravidão; gritos que percorrem, de forma infinita e atemporal, o tempo e o espaço.

O poeta Castro Alves, no seu poema “O navio negreiro”, de marcas indeléveis na luta contra o tráfico negreiro e, por conseguinte, da escravidão, criada e mantida por ele, diz que os negros escravizados nem sequer eram livres para morrer.

Com a abolição oficial da escravatura, em 1888, não veio a conquista da liberdade plena, que é corolário da cidadania, sendo que uma não existe sem a outra; no entanto, ao menos, os negros tornaram-se livres para nascer e para morrer, parafraseando o poeta; o que, convenha-se, não é pouco para quem durante mais de 350 anos nem a isso tinha direito.

Fausto, lendário personagem da Idade Média – magnificamente, retratado pelo romancista e poeta alemão Goethe -, que fez um pacto com Mefistófeles (Lúcifer) para manter a eterna juventude, dizia, com a sua soberba ímpar, que os vestígios de seus dias na Terra passados nem em milênios seriam apagados.

O mesmo se pode e se deve dizer da escravidão, cujas marcas de desumanidade em tempo algum serão apagadas.

O poeta alemão do século XVIII Heinriche Heine – ferrenho adversário do tráfico negreiro e de sua face indissociável, a escravidão – e que inspirou Castro Alves -, em seu colossal poema “O navio negreiro”, escrito no início da segunda metade do século XIX (1853), que tem como tema o tráfico e como destino o Porto do Rio de Janeiro, dá a exata dimensão do que este comércio representava e como os(as) negros(as) eram vistos e tratados.

 

Vide-o:

 

O navio negreiro

 

I

 

Sr. Van Koek, o sobrecarga,

Mergulha em contas na cabine,

Calcula os gastos da empreitada,

Depois o lucro ele define.

“Pimenta e pelas de borracha,

Marfim do bom e ouro em pó –

Tonéis e caixas – mas eu acho

A carga escura bem melhor.

Seiscentos negros lá do Níger

Que barganhei no Senegal;

Tendões de aço e pele rija,

Tal qual estátuas de metal.

Troquei por caixas de birita,

Contas de vidro e armamento;

Caso a metade sobreviva,

Hei de lucrar uns mil por cento.

Se ao cais do Rio, em bom estado,

Levar trezentos, venderei

Cada cabeça a cem ducados

À Casa Gonçalves Pereira.”

De súbito, a meditação

Do sobrecarga é interrompida;

O médico da embarcação,

Van der Smissen, o requisita.

Um narigudo macilento

De cara toda enverrugada –

Van Koek pergunta: “Aí, barbeiro,

A quantas anda essa negrada?”

“Estou aqui nesse tocante”,

Diz o doutor com gravidade,

“Cresceu a nível preocupante

A taxa de mortalidade.

Em média perco dois por dia,

Mas hoje sete já morreram,

No livro-caixa eu fiz a lista:

São quatro machos e três fêmeas.

Examinei bastante os corpos,

Pois amiúde é negro esperto

Apenas fingindo de morto,

Pra se soltar no mar aberto.

As gargalheiras e grilhões

Eu removi; mandei jogar,

Assim que o dia clareou,

Os tais cadáveres ao mar.

Mal afundaram no oceano,

Já os abocanham os tubarões –

Ah, como gosta de africano

A clientela de glutões!

As feras seguem o navio

Desde que entrou em mar profundo,

E com que gozo doentio

Farejam o cheiro de um defunto.

É até engraçado observá-los

Estraçalhando a carne humana –

Uns mordem os braços, outros rasgam

Pernas e tronco, e com que gana!

E quando acabam de comer,

Todo o cardume olha pra mim,

Como se fosse agradecer

Por mais um matinal festim.”

Findo o relato, o tal Van Koek

Suspira fundo: “Ora, eu preciso

Saber depressa o que fazer

Para estancar o prejuízo!”

Diz o doutor: “Morrem os negros

Por culpa própria nos porões,

Empesteando-o com doença

Que trazem dentro dos pulmões.

De tédio eles também se afundam,

Pois não se ocupam de trabalhos;

Talvez ar fresco, dança e música

Seja o remédio pra curá-los”.

Van Koek se agita: “Boa dica!

Este barbeiro é mesmo grande,

Tão sábio quanto o Estagirita

Que deu lições para Alexandre.

O diretor da Sociedade

De Criadores de Tulipa

É esperto mas nem a metade –

A tua inteligência é ímpar.

Vamos à música! A negrada

Há de dançar lá no convés.

Quem não gostar de rebolar

Mando chicotear os pés”.

 

II

 

No azul da abóboda infinita,

De olho sagaz e arregalado,

Feito os de uma mulher bonita,

Milhões de estrelas num bordado –

Olhando atentas o oceano

Se agasalhar em névoa púrpura,

Fosforecente-irradiante;

As ondas lânguidas sussurram.

Nada se move no velame

Da nau negreira; a calmaria

Envolve tudo; e só as chamas

Tremulam sob a algaravia.

Toca a rabeca o contramestre,

O cozinheiro no flautim,

A percussão faz um grumete,

O médico sopra o clarim.

Uma centena de africanos

Saracoteia, urrando alto;

A cada passo os ferros rangem

Num ritmo cadenciado.

Batem no chão em gozo e fúria;

E escravas lindas, sensuais,

Esfregam-se nos homens nus –

No ar espalham-se os ais.

O beleguim se faz de mestre

De cerimônia, e com o chicote

Anima aqueles que se negam

A requebrar e dar pinote.

Praticumbum prugurundum!

Todo o barulho despertou,

Na escuridão do mar profundo,

Estranhos seres do torpor.

Tontos de sono, os tubarões

Em bando vão subindo à tona,

Pra ver, esbugalhando os olhos,

O que lhes trouxe aquela insônia.

Já sabem que é de madrugada,

Cedo demais pro dejejum;

Bocejam pra conter a raiva,

Mostrando os dentes um por um.

Praticumbum prugurundum –

Se arrasta a dança noite adentro.

De impaciência, os tubarões

Cravam na própria cauda os dentes.

Eu creio que não apreciam

A música. Já disse um vate

Famoso inglês: “Jamais confie

Em feras que desprezam a arte”.

Praticumbum prugurundum –

Se arrasta a dança noite afora.

Na gávea, o sobrecarga então

Faz o sinal da cruz e ora:

“Deus, pelo amor de Jesus Cristo,

Me poupa a vida da negrada!

Pecam por serem quase bichos –

Perdoa – não sabem de nada.

Cristo Jesus, lá do teu horto,

Salva meus pretos, eu te peço!

Se não chegar metade ao porto,

Deste negócio eu me despeço.”

 

Castro Alves, o poeta da liberdade, inspirado em Heine, também imortalizou o seu repúdio aos odiosos tráfico negreiro e escravidão negra, em seu magnífico poema que, igualmente, recebeu o título de “O navio negreiro”; vide- a parte da tragédia:

 

“(…)

 

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais … inda mais… não pode olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras!

É canto funeral! … Que tétricas figuras! …

Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

 

IV

 

Era um sonho dantesco… o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros… estalar de açoite…

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar…

 

Negras mulheres, suspendendo às tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães:

Outras moças, mas nuas e espantadas,

No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!

 

E ri-se a orquestra irônica, estridente…

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais …

Se o velho arqueja, se no chão resvala,

Ouvem-se gritos… o chicote estala.

E voam mais e mais…

 

Presa nos elos de uma só cadeia,

A multidão faminta cambaleia,

E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece,

Outro, que martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!

 

No entanto o capitão manda a manobra,

E após fitando o céu que se desdobra,

Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros:

“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dançar!…”

 

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais…

Qual um sonho dantesco as sombras voam!…

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

E ri-se Satanás!…

 

V

 

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura… se é verdade

Tanto horror perante os céus?!

Ó mar, por que não apagas

Co’a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?…

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!

 

Quem são estes desgraçados

Que não encontram em vós

Mais que o rir calmo da turba

Que excita a fúria do algoz?

Quem são? Se a estrela se cala,

Se a vaga à pressa resvala

Como um cúmplice fugaz,

Perante a noite confusa…

Dize-o tu, severa Musa,

Musa libérrima, audaz!…

 

São os filhos do deserto,

Onde a terra esposa a luz.

Onde vive em campo aberto

A tribo dos homens nus…

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão.

Ontem simples, fortes, bravos.

Hoje míseros escravos,

Sem luz, sem ar, sem razão. . .

 

São mulheres desgraçadas,

Como Agar o foi também.

Que sedentas, alquebradas,

De longe… bem longe vêm…

Trazendo com tíbios passos,

Filhos e algemas nos braços,

N’alma — lágrimas e fel…

Como Agar sofrendo tanto,

Que nem o leite de pranto

Têm que dar para Ismael.

 

Lá nas areias infindas,

Das palmeiras no país,

Nasceram crianças lindas,

Viveram moças gentis…

Passa um dia a caravana,

Quando a virgem na cabana

Cisma da noite nos véus …

… Adeus, ó choça do monte,

… Adeus, palmeiras da fonte!…

… Adeus, amores… adeus!…

 

Depois, o areal extenso…

Depois, o oceano de pó.

Depois no horizonte imenso

Desertos… desertos só…

E a fome, o cansaço, a sede…

Ai! quanto infeliz que cede,

E cai p’ra não mais s’erguer!…

Vaga um lugar na cadeia,

Mas o chacal sobre a areia

Acha um corpo que roer.

 

Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormido à toa

Sob as tendas d’amplidão!

Hoje… o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar…

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar…

 

Ontem plena liberdade,

A vontade por poder…

Hoje… cúm’lo de maldade,

Nem são livres p’ra morrer. .

Prende-os a mesma corrente

— Férrea, lúgubre serpente —

Nas roscas da escravidão.

E assim zombando da morte,

Dança a lúgubre coorte

Ao som do açoute… Irrisão!…

 

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus,

Se eu deliro… ou se é verdade

Tanto horror perante os céus?!…

Ó mar, por que não apagas

Co’a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão! …

 

VI

 

Existe um povo que a bandeira empresta

P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!…

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio. Musa… chora, e chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto! …

 

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança…

Tu que, da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!…

 

Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu nas vagas,

Como um íris no pélago profundo!

Mas é infâmia demais! … Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!

Andrada! arranca esse pendão dos ares!

Colombo! Fecha a porta dos teus mares!”

Machado de Assis, um dos maiores – senão o maior – romancistas brasileiros, em sua obra “O memorial de Ayres”, de 1908, ilustra bem o que significou a abolição da escravatura:

“Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral.

Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me lugar no seu carro, que estava na rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organizado para rodear o paço da cidade, e fazer ovação à Regente. Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a ele e aos outros, que se juntaram e partiram da rua Primeiro de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam também todos os ministros. Se eu lá fosse, provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me teria entendido… Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos.

Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia. A poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine, em que o nosso nome está perpétuo. Neles conta o capitão do navio negreiro haver deixado trezentos negros no Rio de Janeiro, onde “a casa Gonçalves Pereira” lhe pagou cem ducados por peça. Não importa que o poeta corrompa o nome do comprador e lhe chame Gonzales Perreiro; foi a rima ou a sua má pronúncia que o levou a isso. Também não temos ducados, mas aí foi o vendedor que trocou na sua língua o dinheiro do comprador”.

Por tudo o quanto se disse aqui, que o dia 13 de maio seja de reverência aos milhares que, por séculos, tombaram em prol da liberdade, e de renovação da luta pela conquista da cidadania plena, o que implica o fim das múltiplas formas de discriminação, para todos os(as) brasileiros(as), de todas as etnias, cores e credos.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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