PL do Estupro: Retrocesso e desrespeito à dignidade humana das mulheres e meninas

“Criança não é mãe, Estuprador não é pai”, esse tem sido o clamor das ruas desde que o requerimento de urgência para apreciar o PL do estupro (PL n°1904/24) foi aprovado na Câmara, a toque de caixa, no dia 12 de junho, sem debate no parlamento, sem ouvir a sociedade.

A matéria equipara o aborto legal em idade gestacional acima de 22 semanas, inclusive em casos de estupro, ao crime de homicídio simples, prevendo pena de 6 a 20 anos de prisão.

Na opinião da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), o projeto representa retrocesso civilizatório e desrespeita à dignidade humana das mulheres e meninas. A Contee se soma às mobilizações da sociedade e defende o arquivamento dessa proposta inaceitável, carregada de inconsistências, de autoria do Deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).

O contexto é lamentável. Endurecer a legislação torna a questão do aborto mais complexa ainda e aprofunda as mazelas sociais, as desigualdades. É o maior dos absurdos, a medida estipular pena mais elevada para quem aborta do que para quem estupra. Criminalizar as mulheres que recorrem ao aborto em situações de vulnerabilidades é um ato de violência dos mais cruéis. Não é de lei mais dura que precisamos, mas sim de criar/ampliar políticas públicas de prevenção, proteção e suporte às vítimas de violência e abuso sexual”, ponderou a entidade.  

Para se ter ideia do grave cenário, que pode ser agravado pelo PL em tramitação, veja o que sinaliza o Forúm Brasileiro de Segurança Pública, em seu anuário de 2022: 60% dos registros de violência sexual tiveram crianças menores de 13 anos como vítimas, 64% dos autores eram familiares.

Já estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) estima que o Brasil tem cerca de 822 mil casos de estupro a cada ano, dois por minuto. Do montante apresentado, apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde.

Especialistas declaram que a violência sexual contra as mulheres é um problema de saúde pública, por ser um grande fator de risco para o desenvolvimento de depressão, ansiedade, impulsividade, distúrbios alimentares, sexuais e de humor e alteração na qualidade do sono. As crianças são as que mais sofrem.

O quadro é gritante. Além da impunidade, a falta de assistência às vítimas de estupro é enorme. Os dados mostram que as autoridades competentes não ficam sabendo da maioria dos casos e denunciam as políticas públicas deficitárias ou inexistentes para tratar dessa problemática, que oprime e afeta a saúde mental de milhares de mulheres e meninas.

LEI VIGENTE NO BRASIL

O art. 213 do Código Penal determina pena para estupro de seis a dez anos de reclusão. Em casos que resulta lesão corporal do crime ou quando o estupro tem vítima menor de 18 anos ou maior de 14 anos, a pena aumenta para oito a 12 anos de reclusão. Quando a vítima é menor de 14 anos, a lei estabelece reclusão de oito a 15 anos. 

Atualmente, a legislação permite que o aborto seja realizado em três casos: estupro, risco de morte à mulher e anencefalia do feto.  Em todos esses casos, o aborto pode ser feito em qualquer momento da gestação. Todos os demais casos são ilícitos e podem ser punidos com até três anos de detenção.

ALERTA

Caso o PL seja aprovado, o Brasil pode ter uma legislação severa, semelhante a de El Salvador, provocando prisão de mulheres e abortos clandestinos. Em entrevista concedida ao Brasil de Fato, a presidenta do Instituto de Investigação, Capacitação e Desenvolvimento da Mulher (IMU) do país, Mayarí Alvarado explicou:

“A lei salvadorenha criminaliza todas as formas de aborto, inclusive o aborto terapêutico, e pune tanto as mulheres quanto os médicos. Se forem considerados culpados, as sentenças variam de dois a oito anos. No entanto, em muitos casos, o crime é alterado para homicídio agravado devido ao relacionamento da vítima com o autor do crime, e as mulheres podem ser condenadas a até 30 anos de prisão”.

ONDA DE PROTESTOS

O fim de semana foi marcado por protestos em vários lugares do Brasil. Em Minas Gerais, os atos ocorreram em Belo Horizonte, São João Del Rei, Barbacena, Juiz de Fora, Viçosa, Ouro Preto e Uberlândia. Na capital de São Paulo, as mulheres ocuparam a Avenida Paulista, na região central da cidade. No Rio de Janeiro, as manifestações foram feitas em Copacabana.

INDIGNAÇÃO

Mesmo com a forte repercussão negativa da matéria, o PL 1904/2024 ganhou mais de duas dezenas de assinaturas para além das originais, chegando atualmente ao total de 56 nomes.

A maioria dos signatários integra a oposição. O PL é o partido com mais autores do projeto; União Brasil e Republicanos vêm depois. São 36 parlamentares do Partido Liberal, cinco do União Brasil, quatro do Republicanos, três do MDB, três do PP, uma do PSDB, uma do Podemos, uma do PSD, uma do Avante e uma do PRD.

DECISÃO DE LIRA

Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, decidiu criar uma comissão representativa para discutir o PL a partir do segundo semestre.

A Bancada evangélica prossegue defendendo o PL do Estupro, afirmando que a vida deve ser preservada em qualquer circunstância. Membros da bancada argumentam que é melhor para a grávida parir o filho e doá-lo para a adoção, não levando em conta as implicações psicológicas.

CONTO DA AIA

O Conto da Aia, distopia da Canadense Margareth Atwood, inspirou protestos contra o PL do Estupro. O livro retrata mulheres e meninas sendo submetidas a um sistema perverso que devem servir como “aias”, cuja função principal é gerar filhos para as famílias dominantes em um cenário de baixa taxa de natalidade.

As “aias” não têm direito ao próprio corpo, são escravizadas como máquinas de reproduzir. Atwood a partir desse enredo e de outros recortes denuncia o fundamentalismo religioso, o patriarcado, a pauta de costumes e critica a opressão em nome de Deus.

Que continuem as mobilizações para que venha à tona o arquivamento da proposta e “O conto da Aia” não configure a realidade, siga sendo um símbolo da luta em favor dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, bem como do Estado laico, da igualdade de gênero e das liberdades individuais. Espera-se que a justiça social prevaleça. ‘Criança não é mãe, estuprador não é pai, Bíblia não é constituição’.

Por Romênia Mariani

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