Sem demarcação, com violência: indígenas criticam conciliação proposta por Gilmar Mendes em ações contra marco temporal
'Não vamos fazer coalizão e vender nossos direitos territoriais', defendeu Kari Guajajara no segundo dia do ATL 2024
Bianca Feifel, Brasil de Fato | Brasília (DF)
A demarcação de terras indígenas segue como principal tema do Acampamento Terra Livre (ATL). A disputa liderada pela bancada ruralista no Congresso em torno da tese do marco temporal continua fragilizando os direitos e a segurança dos povos originários no Brasil. Desde a aprovação em dezembro de 2023 da lei 14.701/2023, conhecida como Lei do Marco Temporal, pelo menos nove indígenas foram assassinados e mais de 23 conflitos em territórios indígenas ocorreram no país, segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
“A Constituição Federal estabeleceu um regime de proteção territorial e de proteção ao direito originário dos povos indígenas. Mas em 2024, esse regime ainda está sendo disputado pelas grandes elites econômicas coloniais”, afirmou o coordenador jurídico da Apib, Mauricio Terena, ao abrir a plenária “Os desafios enfrentados pelos povos indígenas frente à aprovação da Lei do Marco Temporal”, realizada nessa terça-feira (23), na tenda principal do acampamento.
Em setembro, povos indígenas de todo o país comemoraram o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), que considerou inconstitucional a tese do marco temporal. No apagar das luzes de 2023, no entanto, o Congresso Nacional, na contramão do Judiciário, aprovou a Lei do Marco Temporal, que estabelece que só podem ser demarcadas as terras que estavam ocupadas por povos originários até o marco de 1988, ano em que a Constituição foi promulgada.
O texto prevê também a cooperação entre indígenas e não indígenas para explorar economicamente os territórios; uma maior burocratização do processo demarcatório (que hoje leva em torno de 30 anos); e a possibilidade de contestação de terras já regularizadas.
“O texto constitucional está sendo descaracterizado. O direito originário dos povos indígenas e o usufruto exclusivo de nossas terras está sendo descaracterizado. E é necessário que haja uma reação enérgica nossa, dizendo claramente que não estamos contentes”, defendeu Mauricio Terana.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou alguns trechos da lei, mas os vetos foram derrubados no Congresso e a norma, promulgada. Agora, a disputa voltou ao STF, por meio de ações movidas pela Abip, em conjunto com a Rede e o Psol, e pelo setor ruralista, por meio do PL, o PP e o Republicanos.
Surpresa e decepção
Os advogados indígenas que participaram da plenária se disseram surpreendidos e decepcionados com a decisão proferida na segunda-feira (22) pelo ministro do STF Gilmar Mendes de suspender todas as ações que tratam da constitucionalidade da lei 14.701/2023 até decisão final da Corte.
Mendes também determinou a instauração de processo de conciliaçãoentre as partes envolvidas nas ações. A primeira audiência de conciliação entre organizações indígenas, partidos políticos e entidades ligadas ao agronegócio deve acontecer em 30 dias.
“Nós não estamos aqui para fazer coalizão e vender ou rifar nossos direitos territoriais. Nós não negociamos com tese do marco temporal”, defendeu Kari Guajajara, assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “É extremamente preocupante observar que todos os poderes que teoricamente estavam em um processo de disputa parecem muito mais alinhados numa tentativa absurda de retirar e fragilizar os direitos indígenas”, completou.
O procurador-regional da República Felício Pontes disse que o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) também foram surpreendidos: “uma decisão que não esperávamos”. Segundo ele, os procuradores acompanham atualmente cerca de 900 recursos travados contra povos indígenas por representantes de cinco atividades: “madeireiro, fazendeiro, empresa mineradora, empresa de energia e empresa de monocultura, sobretudo na Amazônia”.
“Como levar esses recursos para uma mesa de conciliação?”, questionou. “Há coisas que não podem ser conciliadas. O que que nós vamos ceder para que essa conciliação seja realizada? Nós temos que dizer não à conciliação. Porque como os próprios povos indígenas dizem: terra é mãe, e mãe não se concilia”, defendeu o procurador.
Falta de demarcação gera mais violência
“Parecia que o ATL desse ano seria um momento de festejar”, afirmou a defensora pública do estado da Bahia, Aléssia Tuxá, em alusão às recentes conquistas institucionais das comunidades indígenas, como a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), a ocupação da presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) por Joenia Wapichana e a derrubada da tese do marco temporal pelo STF.
Além do retorno da ameaça do marco temporal, a alegria da vigésima edição da maior mobilização indígena do Brasil é assombrada pela demora na demarcação de terras indígenas já na fase final do processo de homologação e pelo aumento da violência contra lideranças, problemas que estão conectados.
Durante a transição, o presidente Lula assumiu o compromisso de demarcar 14 terras indígenas nos 100 primeiros dias de governo. Mas, mais de um ano depois, apenas 10 foram homologadas. “A morosidade na demarcação das TIs, associada à aprovação da lei 14.701/2023, fortalece a violência contra indígenas no Brasil”, afirma a Apib.
Dados do 38º Relatório Conflitos no Campo Brasil, lançado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) na segunda (22), mostram que indígenas foram os mais assassinados por conflitos no campo em 2023. Das 31 pessoas mortas nas disputas, 14 eram indígenas.
“Como vão se resolver conflitos nesse país se não se respeita minimamente os direitos dos povos indígenas? Se sem a suspensão dos efeitos dessa lei [do marco temporal] as terras continuam sem demarcação, a violência continua avançando sobre os territórios indígenas e pessoas indígenas continuam a tombar nesse processo? Nós não podemos ter um discurso de relativizar isso tudo”, defendeu Kari Guajajara.
Para Aléssia Tuxá, a mobilização indígena em espaços como o ATL é essencial para combater as ameaças aos direitos dos povos indígenas.
“O que vai fazer a lei do marco temporal cair e as demarcações de terras acontecer não são só os advogados indígenas ou nossos parentes que estão ocupando as instituições. É a força do nosso movimento. É a força das nossas lideranças, do nosso povo marchando esse Brasil todo para estar reunido aqui mais uma vez. É força dos nossos mais velhos, que estão entre nós e os que já ancestralizaram, e da nossa juventude que está aqui bebendo nessa fonte de luta e resistindo mais uma vez”, afirmou.
“Porque a gente já sabe que a história desse país é toda construída em cima do nosso sangue, ela é toda um processo de negação dos direitos dos nossos povos. Mas ela é, principalmente, e isso os livros didáticos não contam, um processo de luta e resistência dos povos indígenas”, completou a defensora pública.
Edição: Flávia Quirino